Parte das críticas — com as quais concordamos — apontam que a corte criou um perigoso precedente. Sob o argumento de enfrentar a impunidade, admitiu a prisão do réu sem que ele seja considerado culpado.
Vejamos.
A Constituição Federal dita que “ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, artigo 5º, LVII, sem grifos). Para alguns, tal dispositivo consagra a presunção de inocência. Para outros, a presunção de não culpabilidade. Nomes a parte, o texto constitucional é claro ao dispor que sem trânsito em julgado não há culpa.
No plano legal, o artigo 283 do Código de Processo Penal expressa que “ninguém poderá ser preso senão em virtude de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Não se trata de dispositivo antigo. A atual redação do artigo 283 do CPP foi aprovada em 2011. O anteprojeto que lhe deu origem foi subscrito, ainda em 2001, por ninguém menos que Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Sacarance Fernandes, Petrônio Calmon Filho, Miguel Reale Jr., Luiz Flávio Gomes, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rogério Lauria Tucci e Sidney Beneti. Na Exposição de Motivos, consta o seguinte trecho:
“O projeto sistematiza e atualiza o tratamento da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória, com ou sem fiança. Busca, assim, superar as distorções produzidas no Código de Processo Penal com as reformas que, rompendo com a estrutura originária, desfiguraram o sistema (…) Nessa linha, as principais alterações com a reforma projetada são (…) d) impossibilidade de, antes da sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar” (sem grifos).
A justificativa do Poder Executivo à época (2001) para o projeto também é clara:
“Finalmente é necessário acentuar que a revogação, estabelecida no projeto, dos artigo 393, 594, 595 e dos parágrafos do artigo 408, todos do Código de Processo Penal, tem como propósito definir que toda prisão, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, terá sempre caráter cautelar. A denominada execução antecipada não se concilia com os princípios do Estado constitucional e democrático de direito” (sem grifos).
Assim, lei e Constituição eram — e ainda são — harmônicas. Somente há culpa, e portanto, prisão como execução de pena, com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, com o fim do processo, após o julgamento de todos os recursos. Chega-se a isso com a interpretação literal, com a interpretação histórica e com a interpretação sistemática.
Por isso, antes do julgamento definitivo, é possível restringir direitos do réu diante de tumulto processual (destruição de provas, aliciamento de testemunhas), da reiteração de condutas delitivas, ou de indício concreto de possibilidade de fuga. Fora disso, ele é inocente — ou não culpado — e como tal deveria ser tratado.
Deveria, porque a decisão judicial ora em comento dispõe que a pena do réu condenado em segundo grau será aplicada imediatamente, mesmo que existam recursos pendentes. Ora, se existem recursos pendentes, a condenação não transitou em julgado, o processo não está encerrado, a decisão não é definitiva. E, pela Constituição, nesses casos, o réu “não será considerado culpado”.
Portanto, admitiu-se a prisão de alguém não culpado, assim considerado pela Constituição Federal, e negou-se vigência ao citado artigo 283 do Código de Processo Penal, sem declaração formal de sua inconstitucionalidade[1].
Há quem diga — e muitos o fazem — que a decisão é importante porque os réus usam recursos demais, postergam o final do processo e, com isso, geram impunidade pela prescrição. Aqui, duas ponderações:
Uma: se os recursos estão previstos em lei, devem ser usados. Se não o forem, o advogado infringe seus deveres profissionais por assistir de forma inepta ao seu cliente. Duas: a mesma legislação prevê filtros para o exagero recursal, como a necessidade de demonstrar a repercussão geral do recurso extraordinário e a possibilidade de decisão monocrática no recurso especial quando a tese já esteja sedimentada em sentido contrário ao pretendido.
Porém, ainda que se insista que existem recursos demais, esse é um problema da lei. Poderia o legislador restringir as hipóteses de recursos especiais e extraordinários, ampliar seus requisitos, dificultar sua interposição, como propôs o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso em anteprojeto de emenda constitucional. Assim, o processo terminaria mais cedo e seria possível executar a pena sobre culpados, sobre decisões transitadas em julgado.
No entanto, não houve alteração legal. A suprema corte — com todo o respeito — atribuiu-se o papel de legislador.
Para além da questão dogmática e principiológica, porém, há aspectos práticos decorrentes da decisão que merecem reflexão:
1. Das decisões de tribunais que expressamente rechaçam as orientações do STF
Muitos tribunais expressamente deixam de aplicar orientações do STF já sumuladas em matéria penal, como, por exemplo, aquelas sobre o regime inicial mais brando para o início do cumprimento da sentença — ou a possibilidade de substituição da prisão por penas alternativas — em determinados crimes, como no tráfico de drogas.
Nesses casos, a decisão do STF em comento tem violento impacto. Tratam-se de réus que jamais seriam presos — ao menos em regime fechado — se as recomendações da corte constitucional fossem seguidas, mas o serão e aguardarão detidos até que os recursos pertinentes sejam julgados.
Pode-se argumentar que nesses casos é cabível o Habeas Corpus.
Tal assertiva seria correta se os Habeas Corpus substitutivos de recursos especiais e extraordinários fossem admissíveis sem restrições nas cortes superiores e no STF. Porém, não o são. Inúmeros julgados não conhecem do remédio nesses casos[2]. Se tal orientação for mantida, da decisão condenatória de segundo grau só caberá recurso especial ou extraordinário, a não ser que o tribunal, de ofício, reconheça a ilegalidade. Uma “sinuca de bico” jurídica na qual a liberdade paga o preço da imprecisão legislativa e jurisprudencial.
Por outro lado, uma questão prática. Caso os Habeas Corpus sejam conhecidos, haverá uma corrida em sua direção de parte de todos aqueles condenados em segundo grau. Se a pauta do Superior Tribunal de Justiça já verga sob o grande número de Habeas Corpus que aguardam julgamento, o processamento e julgamento dos novos será lento, em velocidade incompatível com a urgência das pretensões. Assim, se o excesso de recursos foi identificado como um problema, a decisão ora discutida não será sua solução. Pelo contrário.
2. Ações penais originárias
Um dos argumentos usados no acórdão para justificar a execução provisória da pena foi o duplo grau de jurisdição. Sua existência garantiria que a condenação foi vista e revista pelo juiz singular e pelo colegiado superior. Segundo o entendimento da corte, é na decisão de segundo grau “que se concretiza, em seu sentido genuíno, o duplo grau de jurisdição em sua inteireza, mediante ampla devolutividade da matéria deduzida na ação penal, tenha sido ela apreciada ou não pelo juízo a quo”.
Isso é verdade na grande maioria dos casos, mas não naqueles em que existe prerrogativa de foro, onde o réu é julgado originariamente por tribunais, em contextos nos quais são possíveis decisões injustas, porque não submetidas à revisão de instância. Nesses casos, não existe o duplo grau de jurisdição, de forma que a aplicação imediata da pena ou bem cristalizará injustiças, ou bem não ocorrerá, criando-se uma exceção, uma diferença entre esses réus e os condenados comuns, de duvidosa constitucionalidade.
3. Reparação posterior
Há quem argumente que a decisão do STF não inova, mas apenas aplica as regras do processo civil ao penal. Se naquele a execução provisória é admitida, com a possibilidade até mesmo de medidas assecuratórias logo após a decisão de primeiro grau, seria justificado aplicar os mesmos preceitos a este.
No entanto, o processo civil tem por objeto — no mais das vezes — o patrimônio, recursos e valores. Com isso, caso a execução provisória seja revista, é sempre possível a restituição, a reparação, a tentativa de retorno ao status quo ante. Nem são necessárias muitas linhas para demonstrar que isso é inviável na seara penal, onde a liberdade é o bem submetido ao escrutínio judicial, e o tempo dela privado não é passível de reparação — de qualquer espécie.
4. Prescrição da pretensão executória
Por fim, a decisão impacta a prescrição da pretensão executória da pena.
O Código Penal diz que o prazo dessa espécie de prescrição é contado da data em que a decisão condenatória transita em julgado para a acusação (CP, artigo 112, I). A partir desse momento, o Estado tem o dever de iniciar a execução da pena. Findo tal prazo, está extinta a punibilidade porque o poder público não exerceu seu poder de sanção no período estipulado[3].
Com a decisão do Supremo, o Estado passa a ter o direito/dever de iniciar a execução da pena a partir da decisão de segundo grau, exista ou não recurso da acusação ou da defesa, independente de trânsito em julgado para a primeira. Parece criada aqui uma situação, no mínimo, incoerente. Se a lei busca com a prescrição sancionar o poder público omisso, que não inicia o cumprimento da pena quando autorizado para tal, o prazo deve contar a partir do momento em que é admissível a prisão como sanção. Se esse momento foi antecipado para a decisão de segundo grau, também deve ser a partir daqui contada a prescrição.
Enfim, são algumas e primeiras reflexões sobre o tema. A decisão em comento ainda será publicada, disponibilizada, e outras considerações serão tecidas. Há muito ainda a tratar sobre o tema.
Porém, independentemente disso, vale trazer à tona a advertência de Eros Grau ao julgar o HC 84.078-7/MG, quando tratava da mesma execução provisória da pena no Supremo Tribunal Federal:
“A prevalecer o entendimento que só se pode executar a pena após o trânsito em julgado das decisões do RE e do Resp, consagrar-se-á, em definitivo, a impunidade. Isso — eis o fecho de outro argumento — porque os advogados usam e abusam de recursos e de reiterados Habeas Corpus, ora pedindo a liberdade, ora a nulidade da ação penal. Ora — digo eu agora — a prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete! Não recuso significação ao argumento, mas ele não será relevante, no plano normativo, anteriormente a uma possível reforma processual, evidentemente adequada ao que dispuser a Constituição. Antes disso, se prevalecer, melhor recuperarmos nossos porretes…” (grifos nossos).
Compartilhamos a perspectiva e os receios do então ministro Eros Grau.
[1] Como bem apontou Lenio Luiz Streck em artigo na ConJur intitulado Teori do STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declará-la inconstitucional.
[2] STF, HC 123822, AgR, j. 30.09.2014 (1a Turma) — a 2a Turma tem entendimento contrário. No STJ: STJ, HC337321, j.20.10.117.12.2015 (6ª Turma); STJ HC 339922, j.17.12.2015 (5ª Turma)
[3] Sobre o tema, ver nosso artigo publicado na ConJur: A legalidade em xeque: a discussão no STF sobre prescrição penal