Opinião

Operação "lava jato" recebe herança do julgamento do processo do mensalão

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17 de fevereiro de 2016, 7h35

Foi em um fim de tarde no Rio Vermelho que um colega professor de Direito me relatou ter recebido uma chamada de um repórter do NY Times. Ele buscava informações sobre o julgamento do “mensalão” para uma matéria.

Naquela altura o caso já estava encerrado e o jornalista queria confirmar se o julgamento, de fato, tinha transcorrido segundo o que havia compreendido dos vídeos no Youtube, o que o meu colega prontamente confirmou.

Assim procedia por recomendação de um juiz da Suprema Corte americana. Confrontado pelo repórter com a publicidade conferida ao “mensalão” e tudo o mais, ele custava a acreditar que aquele juízo tivesse ocorrido em um país democrático e ainda perante um supremo tribunal. Transmissões intermitentes e ao vivo em rede nacional pareciam incompatíveis com um julgamento justo. “Confirme isto no Brasil!”, teria lhe dito o magistrado.

Ocorre que, já nos 1960, aquela Suprema Corte havia anulado um julgamento criminal em decorrência da publicidade opressiva. “O devido processo requer que o acusado tenha um julgamento por um júri imparcial, livre de influências externas. Dada a penetração das comunicações modernas e a dificuldade de apagar a publicidade prejudicial das mentes dos jurados, os tribunais de primeira instância devem tomar medidas fortes para assegurar que o desequilíbrio nunca pese contra o acusado. E tribunais de apelação têm o dever de fazer uma avaliação independente das circunstâncias. Claro, não há nada que proíba a imprensa de relatar eventos que ocorrem na sala de audiências. Mas, onde há uma probabilidade razoável de que a notícia prejudicial antes do julgamento impeça um julgamento justo, o juiz deve suspender o caso até que a ameaça diminua, ou transferi-lo para outra comarca não tão contaminada pela publicidade”, disse o tribunal em Sheppard versus Maxwell (384 US 333).

Na mesma toada, a Corte Europeia de Direitos Humanos considerou adequada a punição aplicada a um jornalista austríaco que tentou influenciar um julgamento criminal por meio de uma campanha midiática pela condenação de um réu. (Worm versus Austria – Application 22.714/93).

O que diriam juízes europeus ou americanos acaso lhes caíssem nas mãos jornais e revistas da época ou assistissem ao bombardeio radiotelevisivo, sensacionalista em sua maior parte, nada imparcial, nunca dantes visto durante o julgamento do “mensalão”? E se julgadores, no calor do julgamento, prefaciassem livros de jornalistas ideologicamente comprometidos com as condenações?

Em meu curso de mestrado na Universidade de Coimbra, um professor e por muito tempo também magistrado do Tribunal Constitucional de Portugal objetou-me em sala de aula: não compreendia como o STF podia dispor da serenidade necessária para julgar temas constitucionais delicados e complexos em sessões transmitidas ao vivo pela TV.

Notem que nem lhe passava pela cabeça que tamanha exposição pudesse ocorrer também em julgamentos criminais, nos quais os juízes atuam (ou deveriam atuar) como moderadores do arbítrio estatal (Zaffaroni); como fatores de contenção da turba na aplicação do estatuto das minorias, ou seja, dos direitos e garantias fundamentais.

Não convém que juízes emitam sentenças diante do pelotão de fuzilamento, seja ele formado por tenentes, aiatolás ou pistoleiros armados com a próxima pauta. Não se pode contar que todos os magistrados, mesmo experimentados juízes de uma suprema corte, tenham a mesma tenacidade e a envergadura moral e intelectual de um Lewandowski, certo?

Em um mundo ideal, juízes não deveriam se preocupar com a impunidade ou com a impopularidade. Isto é um pilar do Estado de Direito. Por isso existem as garantias da toga, que se prestam essencialmente a proteger o indivíduo e a sociedade da própria sociedade.

As excentricidades tanto de forma quanto de conteúdo do julgamento da AP 470 marcarão a vida jurídica do país por muitos anos, como uma espécie de AI-5 destes tempos; a travessia do Rubicão.

Quem não se recordará das fatias de julgamento servidas à matilha esfomeada ou da extravagante tropicalização da teoria do domínio do fato questionada até por Roxin? Da desconsideração de provas importantes (vide Inquérito 2.474, por exemplo)? Quem poderá esquecer a célebre frase proferida durante um voto de ministra “não tenho provas, mas a literatura jurídica me permite condenar”, quase um aggiornamento da histórica oração de Passarinho, “às favas, senhor presidente, com os escrúpulos de consciência”? Quem se olvidará dos spots ao vivo no Jornal Nacional com juízes rubicundos, tão apaixonados pela causa (e pela condenação) que as veias pareciam lhes saltar do pescoço, prenúncio de um transe xamânico? (Um belo dia, um desembargador antigo do Tribunal de Justiça de São Paulo me disse que o bom juiz se apaixona pelo Direito, jamais pela causa.)

O respeitável e culto ministro Luís Roberto Barroso declarou que esse julgamento foi “um ponto fora da curva”. Talvez mais adequado seria dizer que o ponto inaugurou uma nova curva.

Como quem sai aos seus não degenera, a interminável operação "lava jato" é a herança mais presente desse novo tracejado. Se o exemplo vem de cima, as aparências e semelhanças não decepcionam nem o observador menos perspicaz, pois os cacoetes são basicamente os mesmos, apesar de potencializados como a doença que se torna mais agressiva em recidiva: “flexibilização”/supressão de direitos; espetacularização do processo penal; voluntarismo e messianismo de funcionários públicos, que deveriam se limitar a cumprir a lei e a Constituição; investigações arbitrárias e desproporcionais sobre pessoas em busca obsessiva por crimes; prisões como regra, e, essencialmente, a simbiose entre Justiça e mídia, a tal ponto que já fica até difícil saber quem julga e quem noticia.

É pitoresco imaginar juízes recorrendo à plateia para pedir apoio para judicar contra a “impunidade”, seja lá o que isso signifique, quase como o capitão do time que solicita o comparecimento da torcida ao jogo decisivo de domingo à tarde. E ai de alguém ousar dizer que isto é uma fanfarronice!

Bordieu, com base em estudo de Remi Lenoir, afirmava que “[…] no universo Judiciário, certo número de juízes, que nem sempre são os mais respeitáveis do ponto de vista das normas internas do campo jurídico, pôde servir-se da televisão para mudar a relação de forças no interior de seu campo e provocar um curto-circuito nas hierarquias internas”.

No caso da "lava jato" não se trata propriamente de um curto-circuito, mas de um apagão constitucional, que se inicia na formação de um juízo universal criminal — o buraco negro jurídico que atrai a matéria e a luz — e transita pela confusão entre investigador, acusador e julgador.

Na penumbra desse calabouço em que são lançados direitos e garantias fundamentais (pelo menos até que assinem a delação…) remanesce, no entanto, a certeza de que uns gatos são mais pardos do que outros.

Em tempos de exceção, nem sempre objeções contramajoritárias são bem recebidas. Talvez já seja até imprudente fazê-las, mais ou menos como na época do “pra frente Brasil”. Por isso, vis-à-vis as críticas que certamente virão, nem todas acima da linha da cintura, este escrevinhador quer registrar que não tem nenhuma simpatia especial pelos investigados ou réus da "lava jato". Também não acredita que a supressão de direitos de quem quer que seja possa contribuir para civilizar as instituições. Não se constrói o império do Direito destruindo as bases dos direitos.

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