Expoente conservador

Scalia deixa legado de defesa intransigente de suas ideias, mesmo contramajoritárias

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15 de fevereiro de 2016, 17h13

Para a imprensa identificada com o lado liberal de esquerda da política nos Estados Unidos, a morte do justice Antonin Scalia, a principal voz conservadora da Suprema Corte dos EUA, deixou o tribunal órfão de um grande personagem. No Brasil, no entanto, a comunidade jurídica comentou a morte de um defensor convicto de suas ideias e de importância inquestionável para a interpretação constitucional.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, por exemplo, destaca as “convicções pessoais fortes, com relação às quais nunca transigia”, do justice Scalia. “Defendeu-as sempre com energia e rigor jurídico, mesmo se estivessem eventualmente integrando a corrente minoritária na Suprema Corte”, comentou.

O ministro Gilmar Mendes concorda com o colega. “Cuida-se da figura mais marcante da Suprema Corte americana das últimas décadas”, afirmou, mas acrescentando sua “decisiva contribuição no âmbito da interpretação constitucional”.

De fato, era um juiz polêmico, sem medo de defender ideias conservadoras até dentro do Partido Republicano. Ainda em 2015, causou espanto numa discussão sobre ações afirmativas contra a segregação racial quando defendeu que estudantes negros procurassem faculdades de Direito “que não sejam tão exigentes, que sejam mais fáceis”.

O discurso foi chamado de “ofensivo e racista” pela imprensa americana. Para se justificar, explicou a um repórter que ele mesmo já foi rejeitado por duas escolas, uma de ensino médio e uma faculdade. E disse que sua declaração sobre os negros veio de um conselho que ouvira do pai, para procurar escolas em que os estudantes não fossem “tão cheios de qualificações e cerebrais”. Ele seguiu o conselho e foi aprovado em primeiro lugar para a faculdade.

Em março de 2005, a revista The New Yorker escreveu que, embora assistir a uma palestra de um juiz da Suprema Corte sempre fosse comparável a ir a um show de rock, só Scalia poderia oferecer “o equivalente jurisprudencial a quebrar uma guitarra no palco”.

Isso significava que ele podia falar algo que o constrangesse com os colegas de corte, como ridicularizar quem defendesse o uso da expressão “sob a proteção de deus” dos juramentos falados por testemunhas em tribunais. Depois, o caso chegou à Suprema Corte, e Scalia teve de se declarar suspeito.

Scalia veio ao Brasil em 2009, para uma série de compromissos acadêmicos, e participou de um debate com o ministro Luís Roberto Barroso na Faculdade de Direito da UnB, a convite da então diretora, Ana Frazão. Ela conta que ele não se demonstrou muito disponível a conversar, mas foi “de uma gentileza enorme em nos ceder duas horas para falar de suas posições e ideias”.

Em sua visita ao Supremo Tribunal Federal, ficou muito bem impressionado com a TV Justiça e com a estrutura dos estúdios. Gostou especialmente da ideia dos programas educativos, de ensinar Direito em linguagem acessível a um público amplo. Mas não gostou – nem um pouco – da ideia de se transmitir os debates ao vivo pela televisão. “Disse que isso nunca funcionaria lá”, relata o então secretário de imprensa do STF, Renato Parente.

Barroso tem boas lembranças da passagem de Scalia pelo Brasil. “Como era previsível, tivemos um debate com muitas discordâncias, mas que foi academicamente instigante”, conta. “A divergência não nos impediu de estarmos juntos e de conversarmos socialmente em duas ocasiões posteriores ao debate. Ele me convidou para ir ao seu gabinete quando eu fosse a Washington, mas a vida não me levou por lá nos últimos tempos.”

Questão de interpretação
A divergência era previsível porque Scalia era defensor de uma tese que ficou conhecida como “textualismo”, uma tese “prima” do originalismo, como explica o ministro Barroso. Originalismo foi desenvolvido por Robert Bork nos anos 1970 e pregava o apego à intenção dos autores da Constituição dos EUA quando a escreveram. O textualismo é um tanto mais radical, pois entende que o limite da interpretação deve ser o que diz o texto constitucional, e não suas interpretações ou a intenção de quem escreveu.

Barroso explica que essas teses foram desenvolvidas nos anos 1970 em contrapartida à virada liberal que a Suprema Corte tomara durante a presidência de Ear Warren, que foi de 1953 a 1969. Tanto Scalia quanto Bork eram expoentes do pensamento conservador norte-americano e ambos foram indicados pelo presidente Ronald Reagan, republicano, à Suprema Corte. Scalia, confirmado pelo Senado, foi indicado e nomeado em 1986. Bork, indicado em 1987, foi rejeitado pelos senadores — mas muito por conta de sua posição segregacionista e contra os direitos civis das mulheres.

Tanto o originalismo de Bork quanto o textualismo defendido por Scalia eram teses mais políticas que jurídicas, que fizeram sucesso durante o movimento antiliberal dos EUA. São teses que se opõem à “Constituição viva”, segundo a qual a interpretação constitucional deve levar em conta o contexto social em que o juiz está.

Para Scalia, a tese da “Constituição viva” dava ao juiz muita “envergadura interpretativa”. Quando veio ao Brasil, ele disse em palestra que “juiz expressa a vontade do juiz, e não do povo. Decisões morais devem ser do povo e do Legislativo”. “A única maneira de decidir uma questão moral é pelo processo democrático. Um juiz não sabe mais do que um cidadão comum”, vaticinou. “Trabalhamos em um palácio de mármore.”

Um exemplo desse pensamento foi lembrado pela reportagem de 2005 da New Yorker. A Oitava Emenda da Constituição americana proíbe punições “crueis e atípicas”. E, ao aplicar a tese da “Constituição viva”, o Judiciário deve considerar “a evolução dos padrões de decência que marcam o progresso de uma sociedade em amadurecimento”, conforme decidiu a Corte em 1958.

Em 2002, uma discussão a respeito da Oitava Emenda chegou ao tribunal novamente, e Scalia leu esse trecho do acórdão com voz de criança, debochando da decisão, para concluir: “Todos os dias estamos ficando cada vez melhores em todos os sentidos. Sociedades apenas amadurecem. Nunca apodrecem”. Mas ficou vencido.

No entanto, nos dizeres do próprio presidente da Suprema Corte dos EUA, John G. Roberts, Scalia foi o responsável por dar fim a certo marasmo que dominava o tribunal. Por causa dele, disse Roberts ao New York Times, a corte tornou-se um colegiado em que "talvez os juízes falem demais, interrompendo uns aos outros e aos advogados".

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