MP no Debate

Crimes contra a liberdade sexual e a necessidade de representação do ofendido

Autor

  • Plínio Gentil

    é procurador de Justiça no estado de São Paulo doutor em Direito (PUC-SP) e em Educação (UFSCar) e professor de Direitos Humanos (PUC-SP) e Direito Penal (Unip). Integrante do Movimento do Ministério Público Democrático é coautor do livro "Crimes Contra a Dignidade Sexual".

15 de fevereiro de 2016, 7h00

Segundo dispõem o caput e o parágrafo único do artigo 225 do Código Penal, a ação penal nos crimes contra a liberdade sexual (estupro, violação, assédio) e nos crimes sexuais contra vulnerável (estupro de vulnerável e outros) é pública condicionada à representação, sendo, entretanto, incondicionada se a vítima for menor de 18 anos ou pessoa vulnerável[1].

A razão de ser da ação condicionada à representação é haver casos em que se mostra socialmente mais adequado deixar ao critério da vítima a decisão de processar ou não o ofensor. Justamente porque são casos em que o crime produz um constrangimento mais acentuado que o usual, geralmente dentro da sua esfera de intimidade, que a vítima pode não querer ver reproduzido durante a colheita de provas. A lei então, excepcionalmente, lhe reconhece esse direito.

De fato, é determinante a vontade da vítima em tais casos. Se ela não representar, simplesmente não haverá processo, por mais que haja elementos que apontem a existência do crime. Faltará condição de procedibilidade. A punibilidade do autor do fato estará extinta no prazo de seis meses, por causa da decadência. Tão grande é a importância que se dá à vontade do ofendido, que, mesmo tendo ele representado, poderá se retratar da representação desde que não oferecida a denúncia pelo Ministério Público[2]. A falta da representação, instituto de Direito processual, repercute na punibilidade, que é tema de Direito material.

Pois bem. Ao deferir à vítima a possibilidade de escolher processar ou não o autor do fato nas hipóteses de crimes contra a liberdade sexual, a lei penal reconhece que mais danoso será um processo contra a vontade do ofendido do que simplesmente deixar a punibilidade se extinguir. Justamente porque o crime, dada sua natureza, é daqueles que expõem a intimidade de alguém a ponto de eventualmente ser mais razoável não formalizar a apuração dos fatos.

A existência de um processo, seja em autos físicos ou digitais, o seu manuseio por tantos, o tempo que demora o seu trâmite, a repetição em audiência pública dos fatos ocorridos, seja por parte das testemunhas, do réu ou da própria vítima, possivelmente levada a reencontrar o seu ofensor, configuram elementos naturalmente capazes de causar constrangimento e até vergonha para o ofendido. Daí porque o interesse público aqui cede lugar ao respeito à privacidade do particular, e é a ele que se entrega a decisão de pôr em movimento a máquina judicial. “O condicionamento da ação visa a evitar o chamado strepitus judicii, isto é, o alarde processual sobre fatos que envolvem a intimidade das vítimas de crimes sexuais”, conforme lembrado por Bruno Gilaberte[3].

Ora, essa máquina somente entrará em atividade se o promotor oferecer a denúncia a que foi autorizado por meio da representação do ofendido. O oferecimento da denúncia — seguida de seu recebimento — é, assim, o motor de partida do processo, no qual a prova se produzirá, e a vítima, eventualmente constrangida pela marcha processual, poderá até mesmo, em seu curso, desejar que não tivesse representado.

Se o interesse em proteger a privacidade da vítima é o que justifica a ação condicionada à representação, e se o oferecimento da denúncia é o que dá início ao processo, será no instante desse oferecimento que o promotor deve estar legitimado por meio da representação, no caso de o ofendido já ter completado 18 anos. A partir dessa idade, se torna válida a manifestação de vontade da vítima em processar ou não processar, representando, retratando-se da representação porventura feita, ou não representando.

Frequentemente, pensa-se que o momento determinante da espécie de ação penal nos crimes contra a liberdade sexual — se incondicionada ou condicionada — é o da ocorrência do crime. Note-se, a propósito, que aqui, diversamente do que sucede com outras hipóteses de ação condicionada à representação, a fixação do tipo de ação penal segue um critério exclusivamente temporal, relacionado com a vítima Se ela for menor de 18 anos, ação incondicionada; se for maior, ação condicionada. Ou seja, o decurso do tempo nesse caso é o único elemento capaz de converter uma ação que era incondicionada em condicionada. Por isso é que, no caso dos crimes contra a liberdade sexual, não pode ser o instante do crime que fixa a espécie da ação penal cabível, mas o correspondente à faixa etária do ofendido.

Já se vê claramente que um estupro, ou outro delito contra a liberdade sexual, pode ter sido cometido contra alguém menor de 18 anos e que tal pessoa, com o passar do tempo, um dia acabará completando essa idade, se não morrer antes. O que se pretende aqui sustentar é que, nessa hipótese, a vítima deverá representar a fim de possibilitar o oferecimento da denúncia e, assim, dar o primeiro passo para a instauração do processo. Isto porque a ação penal, que até a maioridade do ofendido era incondicionada, passou, com o advento dessa maioridade, a ser condicionada[4].

Veja-se que permanecem intactos os motivos que levaram a lei a prever a possibilidade de ação condicionada, sendo o principal deles a preservação da privacidade do ofendido. Ora, se este alcança uma idade na qual já pode validamente manifestar sua vontade — e não apenas na órbita penal —, parece claro que tal manifestação deverá constituir condição de procedibilidade, dado que à vítima é que se atribui a decisão acerca da conveniência e oportunidade de dar início ao processo. Decorre que, sem que o ofendido, por meio da representação, externe seu desejo de processar o ofensor, a ação penal não poderá ser instaurada, valendo dizer que o promotor não estará legitimado a oferecer a denúncia.

Insiste-se que não é o momento da prática do delito que determina a espécie de ação penal porque, nesse caso, o tipo de ação não tem relação direta com o crime, mas com a idade da vítima, o que é um dado móvel. Em outras hipóteses de ação pública condicionada à representação, nenhuma importância tem a idade do ofendido[5]. Vejam-se os casos dos crimes de ameaça, violação de comunicação telefônica, perigo de contágio venéreo, divulgação de segredo, subtração de coisa comum, ou os crimes contra o patrimônio cometidos contra o cônjuge separado, o irmão, o tio e outros[6]. Para ficar com exemplos tirados do Código Penal, desprezada a legislação extravagante.

Também não é admissível o argumento de que é a gravidade abstrata do delito que fixa o modelo de ação, supondo-se que a determinação legal da ação incondicionada aqui se explicasse em razão de uma hipotética maior gravidade do crime porque cometido contra menor de 18 anos. É, aliás, num dos exemplos acima oferecidos que se encontra caso de delitos de relativa gravidade — receptação e furto qualificados, com penas de até 8 anos de reclusão — que, todavia, não deixam de ser crimes de ação condicionada se praticados contra o cônjuge separado, o irmão ou o tio.

A tese de que o oferecimento da denúncia fica subordinado à representação do ofendido pode levar à objeção de que, no momento em que este completar 18 anos, o prazo decadencial já poderá terá escoado. Tal observação, contudo, não merece acolhimento: ponderável entendimento teórico sustenta, com razão, que, no caso da ação privada, o direito de queixa, se não exercido pelo representante legal do menor de 18 anos, poderá ser exercido por este a contar do instante em que completar a maioridade e no prazo de seis meses, que para ele só começa a correr a partir de seu 18º aniversário. Esse posicionamento, que congrega Norberto Avena, Frederico Marques, Julio Mirabete, Cezar Bitencourt e Paulo José da Costa Jr., ainda encontra algum apoio no texto da Súmula 594 do Supremo Tribunal Federal[7]. Cuida-se, como visto, de uma exceção à regra geral quanto ao termo a quo do lapso decadencial, como, por exemplo, também ocorre com o caso do crime definido no artigo 236 do Código Penal, em que o prazo para oferecimento da queixa só flui, nos termos legais, “depois de transitar em julgado a sentença” anulatória do casamento. A possibilidade de analogia com a hipótese de ação pública condicionada, nas situações aqui abordadas, parece inquestionável.

Em suma, e de lege ferenda, porém em consonância com a sistemática do Direito brasileiro em tema de ação penal, conclui-se que: 1) nos casos de crimes contra a liberdade sexual, para legitimar o oferecimento de denúncia pelo promotor, é necessária a representação do ofendido que venha a completar 18 anos depois do delito, pois a ação penal converteu-se de incondicionada para condicionada; 2) o prazo decadencial para representar, nessa hipótese, começa a fluir da data do 18º aniversário do ofendido, que, durante ele, pode representar e até mesmo se retratar da representação, neste caso desde que ainda não oferecida a denúncia; 3) a falta de representação impede o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público e, no caso de ter sido oferecida e o feito prosseguido sem representação do ofendido, haverá nulidade, que será insanável se já transcorrido o lapso decadencial de seis meses.

* Registro que este texto se inspirou na análise de um caso concreto e que a reflexão do autor foi enriquecida com a contribuição das opiniões de colegas da Procuradoria Criminal do Ministério Público de São Paulo, especialmente Beatriz Helena R. Amaral, José Luiz Alicke, Josely M. Litrenta O. Donato, Marco Antônio Ferreira Lima, Newton Reginato, Regina Célia Ribeiro, Wálter P. Sabella e Wálter Tebet Filho, os quais, informalmente consultados, de pronto atenderam, com respeitáveis argumentos, à instigação feita pelo autor. Anoto, por fim, que esses diletos colegas não têm qualquer responsabilidade em relação às conclusões deste trabalho.


[1] O que significa, na verdade, que os delitos contra vulnerável, previstos no capítulo II do título VI, serão sempre de ação incondicionada.
[2] De conformidade com os artigos 102 do Código Penal e 25 do Código de Processo Penal.
[3] http://brunogilaberte.blogspot.com.br/2013/10/acao-penal-nos-crimes-contra-liberdade.html (acesso em 8.nov.2015).
[4] Por idêntica razão, se a maioridade advir no curso do processo já instaurado, pode-se pensar na necessidade de a vítima representar para que o feito possa ter seguimento. Porém, essa é uma extensão que aqui não se pretende dar ao tema.
[5] Salvo a hipótese do artigo 183, III, do Código Penal.
[6] Código Penal, artigo 182, ressalvadas as hipóteses do artigo 183.
[7] Confira-se em Irving Marac Shikasho Nagima, A decadência no direito criminal, em http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7151/A-decadencia-no-direito-criminal (acesso em 6.nov.2015).

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    é procurador de Justiça no estado de São Paulo, doutor em Direito (PUC-SP) e em Educação (UFSCar) e professor de Direitos Humanos (PUC-SP) e Direito Penal (Unip). Integrante do Movimento do Ministério Público Democrático, é coautor do livro "Crimes Contra a Dignidade Sexual".

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