Segunda Leitura

Direito não dá solução para os problemas atuas da realidade brasileira

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

14 de fevereiro de 2016, 11h13

Spacca
O Direito, na lição de Miguel Reale, “corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade” (Lições Preliminares de Direito, p. 2).

Com a Constituição de 1988 o Direito sofreu expressivas mudanças. A Carta Magna, de forma extensa e minuciosa, se propôs a solucionar todos os problemas da nacionalidade. Assegurou a todos um detalhado rol de direitos individuais, coletivos e sociais (artigos 5º e 6º).

A partir dela desenvolveu-se rica doutrina, dissecando os múltiplos direitos de cada brasileiro, tendo por fundamento a observância do princípio da dignidade humana (art. 1º, II). Nesta linha, os princípios passaram a ter relevância muito superior à que lhes dava a antiga Lei de Introdução ao Código Civil, para a qual eles deveriam ser aplicados apenas quando a lei fosse omissa (art. 4º).

André Ramos Tavares disseca o assunto nos mais variados aspectos, como desenvolvimento nacional e separação de poderes (Princípios Constitucionais, em Tratado de Direito Constitucional, v. 1, p. 396-432). Luís Roberto Barroso lembra que “aos princípios cabe, além de uma ação imediata, quando diretamente aplicáveis a determinada relação jurídica, uma outra de natureza mediata, que é a de funcionar como critério de interpretação e integração do Texto Constitucional” (Interpretação e aplicação da Constituição, p. 142). Marçal Justen Filho complementa, lembrando que além dos princípios previstos na Carta Magna há os que nela se acham implícitos, dando como exemplo o da proporcionalidade (Curso de Direito Administrativo, 10ª ed., p. 133).

Mas, se de um lado os mais reconhecidos autores são unânimes em proclamar os inúmeros direitos a que nós brasileiros fazemos jus, do outro temos uma realidade que se mostra muito distante do mundo idealizado pelos constituintes e pelos estudiosos do Direito.

Direcionando o foco para a administração pública, cabe lembrar que a Constituição determina que ela, entre outros, submeta-se ao princípio da eficiência (art. 37). José Afonso da Silva ensina que tal dispositivo “orienta a atividade administrativa no sentido de conseguir os melhores resultados com os meios escassos de que se dispõe e a menor custo” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 26ª. ed., p. 671).

Porém, como é na realidade atual a eficiência nos serviços públicos? A resposta vem das pessoas que estão à nossa volta e da mídia. Os que precisam valer-se das repartições não são tão otimistas quanto os doutrinadores da área jurídica.

A educação pública padece de graves deficiências. Professores de escolas públicas sentem-se intimidados em exigir notas ou disciplina. Enfraquecidos na sua autoridade, fato que alcança os diretores de forma até mais acentuada, deixam de exigir o mínimo. No âmbito universitário, greves se repetem anualmente, com ou sem razão, sendo a reposição de aulas uma mera ficção que agrada a todos. Os resultados não são visíveis com facilidade, mas vão se revelando ao longo do tempo. Cai o nível cultural, muitos não conseguem colocar no papel o que pensam.

A Segurança Pública é desastrosa. Delegacias de Polícia fechadas à noite, com plantões cujo acesso é no mínimo difícil. Policiais Rodoviários desapareceram das rodovias. Homicídios levam 15 anos para serem julgados, valendo-se os réus de dezenas de recursos interpostos em quatro instâncias. Homicidas condenados saem sorrindo do Tribunal do Júri. A descrença impera e não é de se admirar que muitos optem por pedir justiça a organizações criminosas (https://www.youtube.com/watch?v=XVs9y1lXfZQ).

A saúde é uma sucessão de crises, os que se valem do SUS penam nos corredores dos hospitais. Os que precisam de uma consulta médica no INSS aguardam, por vezes, um ou dois meses, com todas as consequências da demora. Na área da Previdência Social, deficiência de servidores ou greves atrasam a concessão de auxílio doença e outros benefícios. Quando eles chegam, às vezes, já perderam o objeto.

O recolhimento do FGTS e contribuições previdenciárias das empregadas domésticas (eSocial), tornou-se uma difícil tarefa para os empregadores, pois não há informações precisas por parte dos órgãos da Previdência, CEF ou da Receita Federal. Já surge, inclusive, consultores na área, lucrando com a burocracia.

Manifestações populares, forma de participação da sociedade absolutamente legítima, abrigam destruidores do patrimônio público e privado sem que nenhuma sanção lhes seja imposta. Quem ressarce o comerciante que tem sua loja destruída?

O Judiciário, submerso em milhares de processos e submetido a tantos recursos que nada chega ao fim, atravessa crise de credibilidade de graves proporções. O CNJ fixa metas, estimula a conciliação, mas o sistema padece da preocupação excessiva com a ampla defesa, sem dar-se conta que para que haja eficiência ela tem que ter limites.

Mas o que leva a tal estado de coisas? Não há uma só razão, mas sim várias. A descoberta de casos de corrupção envolvendo quantias inimagináveis ao cidadão comum (Lava jato e outros), incluindo pessoas na mais alta hierarquia dos Poderes de Estado, levam os servidores de menor graduação a um estado de desesperança e desânimo no cumprimento de suas funções. É da natureza humana.

Além disto, a frustração com a insatisfação de anseios salariais ou de outra ordem levam as chefias administrativas a conceder, informalmente, vantagens indevidas. Por exemplo, reduz-se o número real de horas trabalhadas ou concede-se compensações sob os mais variados motivos, como trabalhar em área inóspita.

Bem, então estamos diante de dois mundos distintos, incomunicáveis. O dos estudos e argumentos acadêmicos ou forenses, recheados de frases bem postas, com argumentos de rara inteligência, e o da realidade diária de milhões de brasileiros, que sofrem as agruras de serviços públicos deficientes.

Richard A. Posner, que enfrenta este tipo de conflito com a experiência de ser juiz e professor, critica os que optam por teorizar sem dar solução aos problemas jurídicos práticos. Corajosamente, afirma que a maioria dos filósofos analíticos não se sente confortável no plano dos fatos (Para além do Direito, p. 492). É dizer, gostam da discussão e não da realidade.

Se o Direito não serve para dar à sociedade, como afirma Reale, um mínimo de ordem, de direção e solidariedade, então qual a sua utilidade?

Não se trata de tema que admita resposta fácil. Todavia, o primeiro passo seria a doutrina preocupar-se com o além da discussão abstrata das grandes questões. Em outras palavras, analisar o que vem depois.

Da mesma forma o Judiciário. Por exemplo, o STF, ao decidir em 25.10.2007 que aos servidores públicos se aplicava o direito de greve na mesma forma que aos trabalhadores do setor privado, por falta de regulamentação por parte do Legislativo, criou uma indefinição do assunto.

O Congresso não regulamentou coisa alguma e atualmente não se sabe quais são os limites de uma paralização. Disto resultam greves sucessivas, com as quais ninguém sabe exatamente como lidar, ficando os órgãos do Judiciário a dar soluções sem uniformidade e que, muitas vezes, não são obedecidas. Este tipo de tema exigiria fixação de limites, por mais complexa e árdua que seja esta tarefa. Lógico que não em todos os detalhes, o que seria impossível. Mas, sim, nas premissas principais. Por exemplo, policiais civis podem fazer greve?

Em suma, o Direito precisa mais ser instrumento efetivo de solução dos conflitos e menos ser palco de discussões filosóficas abstratas, que pouco ou nada servem à realidade social. 

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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