Opinião

A corresponsabilidade dos atores na decisão judicial segundo o novo CPC

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14 de fevereiro de 2016, 6h32

O novo CPC entra em vigor trazendo apreensão em torno dos efeitos da nova sistemática de fundamentação das decisões judiciais, principalmente diante do advento dos comandos contidos no artigo 489 e seus incisos e parágrafos.

Desde o debate legislativo, opuseram-se, de um lado, pressionando contra a prevalência do novo comando legal, as associações de classe da magistratura e, de outro lado, pressionando pela imposição do novo texto normativo, a Ordem dos Advogados do Brasil, juntamente com a parte majoritária da academia (com pronunciamentos de doutrinadores como Ada Pellegrini Grinover, Fredie Didier Jr., Lenio Streck e Dierle Nunes, dentre outros).

A contraposição de posicionamento entre magistratura e advocacia nesta matéria acaba por revelar, contudo, uma visão não cooperativa e distorcida acerca daquilo que deveria representar uma verdadeira relação processual fomentadora de uma interação propositiva entre os atores judiciais.

De um lado, a magistratura reage aos interesses de grandes corporações e de escritórios especializados em contencioso de massa, responsáveis pela maior parte dos mais de 100 milhões de processos hoje em curso no Judiciário. Trata-se de um perfil de advocacia que, em regra, acaba por instrumentalizar um poder da República para resistir, deliberadamente, ao cumprimento da legislação nacional, em perniciosa atuação meramente mercantilista e descompromissada com a ordem jurídica. São escritórios que normalmente fazem defesas “chapadas”, confeccionadas para o atacado. Tratam-se de empresas do contencioso, descompromissadas com a qualidade técnica do trabalho prestado, na medida em que seus próprios clientes já preveem a sucumbência. Isso porque esse perfil de cliente normalmente tem ciência, de antemão, do descumprimento deliberado da legislação pátria. São corporações e escritórios que planilham estatisticamente o número de cidadãos lesados que efetivamente recorrem ao Judiciário e mapeiam o ganho financeiro decorrente da demora do processo judicial, bem como decorrente da inércia daqueles prejudicados que não procuraram pela Justiça.     

As defesas padronizadas desses escritórios normalmente contêm centenas de laudas, nas quais são deduzidos inúmeros argumentos frágeis, insubsistentes ou ultrapassados pela jurisprudência reiterada. E esses escritórios agora enxergam, no novo CPC, a possibilidade de cavarem nulidades processuais, acaso algum desses argumentos superficiais deixe de ser considerado na sentença. Seria uma forma de eliminar, de vez, a celeridade processual e o princípio da duração razoável do processo.

Por outro lado, OAB e academia sustentam o dever de fundamentação exaustiva das decisões judiciais, e às mesmas socorre, inegável e efetivamente, a boa ciência processual. Não há como se sustentar, fora do viés pragmático contido nos parágrafos anteriores, e que sustentam a posição realista da magistratura, que em uma situação ideal o melhor não seria que toda sentença contivesse fundamentação de motivação abrangente, ou seja, que levasse em consideração cada nuance do debate travado sob o manto do contraditório. Os vetores axiológicos e deontológicos da ciência processual conduzem facilmente a essa conclusão. Se o objetivo do contraditório reside exatamente na formação do convencimento, o desprezo parcial à argumentação das partes poderia representar desprezo ao próprio contraditório, no qual reside a própria essência do processo judicial. É o próprio contraditório que distingue axiologicamente o processo de um mero procedimento, ou seja, é o valor que empresta essência e representa a própria natureza jurídica de um verdadeiro processo.

O Estado-juiz busca a reafirmação do ethos, garantindo o contraditório processual como a possibilidade do encontro de um litigante com o outro como encontro de natureza ética ou moral.

A teleologia do processo está atrelada, assim, à viabilização performativa de uma educação ética restaurativa do bem comum objetivado em lei, na medida em que a norma jurídica retrata a própria autodeterminação política das partes, eis que inseridas na comunidade que veio a estatuir o comando legal cuja aplicabilidade pretende-se ver resgatada com a atuação jurisdicional.

O processo deve ser assimilado como oportunidade que as partes têm para representar, eticamente, a conduta que defendem ser jurídica. Essa oportunidade de representação, perante um terceiro isento, deve servir como momento de reflexão acerca das condutas colocadas sub judice, pois quanto mais a representação em juízo revela interesses meramente individuais, em distanciamento do ethos, mais a parte poderá esperar um provimento jurisdicional desfavorável. Daí o escopo educacional do processo, de instigação da formação da consciência de si nos sujeitos, que se revela em todo o procedimento, e não apenas no provimento final.

Importa ao contraditório, assim, a garantia e a oportunidade de representação, por meio da qual a parte tenta convencer, ou acaba se convencendo. O contraditório, enquanto garantia de igual oportunidade de representação da realidade, no processo, constitui ponto nodal para a justiça do processo, compreendida esta como a eficácia endoprocessual do procedimento de viabilizar às partes o encontro com a própria consciência.

Só por meio do contraditório é que se viabiliza a interlocução de duas razões (dia-logos) no processo. O contraditório constitui o veio de estímulo à relação de reconhecimento (educação ética), a ser alcançado de uma forma reflexiva, pelos litigantes.

Portanto, a fase final da relação processual, ou seja, o momento de prolação da decisão judicial, efetivamente não pode ignorar aquilo que foi construído por todos os atores, no curso de todo o procedimento dialógico. Em termos: a decisão judicial não é feita, de forma estanque, no final da marcha processual. A decisão é construída a várias mãos, no curso de todo o procedimento, sendo representativa da persuasão racional consoante ao contraditório verificado desde o início da demanda, observando-se que as partes “devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” (artigo 6º do CPC), e que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar” (artigo 10 do CPC). O juiz deve decidir “o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte” (artigo 141 do CPC).

Nesses termos, a construção da fundamentação da decisão judicial não representa obrigação monocrática imposta ao magistrado, porquanto o próprio CPC determina a colaboração das partes para se obter, em tempo razoável, uma decisão justa.

Respeitado o caráter dialógico do processo, a todos compete colaborar com a construção da decisão judicial, por meio do contraditório, pelo que o comando contido no artigo 489 do CPC mostra-se aplicável não somente ao juiz, mas também às partes, e a forma de se impor às mesmas uma conduta colaborativa e efetivamente delineadora do âmbito de abordagem de uma sentença encontra guarida na fase de saneamento prevista no artigo 357, do CPC, que prevê que o juiz deverá delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, bem como as questões de direito relevantes para a decisão do mérito. Obviamente, estas delimitações determinadas no artigo 357 do CPC devem supor uma prévia provocação das partes pelo juízo, em conduta inclusiva das mesmas no delineamento do contraditório do processo.

Nesse sentido é que consideramos salutar que, com o advento do novo CPC, a fase de saneamento processual seja otimizada, com a adoção de decisões interlocutórias que orientem logicamente a marcha processual, de forma a delinear a expectativa das partes acerca da abordagem a ser emprestada pelo juízo na prolação da sentença. Um exemplo desta decisão interlocutória:

Considerando-se o disposto no artigo 357, incisos II e IV, do CPC, determina-se às partes que delimitem as questões de direito relevantes para a decisão do mérito, bem como as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória.

A especificação das questões de direito relevantes para a decisão do mérito deverá observar os deveres da parte de: a) não formular pretensão ou defesa destituída de fundamento (artigo 77, II, do CPC); b) de não deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei; c) de não opor resistência injustificada ao andamento do processo, e de não provocar incidente manifestamente infundado (artigo 80, I, II e III do CPC).

A especificação das questões de direito relevantes deverá observar, ainda, o dever de agir de boa-fé (artigo 5º do CPC), além do dever de colaborar para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva (artigo 6º, do CPC), velando-se pela duração razoável do processo e pela prevenção contra postulações meramente protelatórias (artigo 139, II e III c/c 370, parágrafo único do CPC).

Registra-se que não será considerada especificada a questão de direito relevante quando a parte, sem pontuar os dados da litiscontestação sub judice, com detalhamentos das circunstâncias narradas na inicial, na defesa e na réplica do caso concreto específico: a) se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; b) quando empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; c) quando invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer decisão; d) quando se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajustaria àqueles fundamentos; e) quando a matéria especificada deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. (artigos 357, IV c/c 489, parágrafo 1º, do CPC).

A especificação a ser feita pelas partes, no cumprimento do comando sugerido, emprestará organicidade lógica ao contraditório, com a indicação precisa das questões de direito que remanesceram controvertidas, ou seja, as questões acerca das quais o diálogo processual em contraditório não se mostrou suficiente para sanar o dissenso. O pronunciamento do juízo, na decisão judicial, deve ser dirigido especificamente para essas questões que remanescem controvertidas. Eventual omissão das partes no atendimento à determinação do juízo ensejaria, assim, preclusão lógica no que tange à possibilidade de se questionar a extensão de abordagem da decisão judicial.

Concluímos, assim, que o comando contido no artigo 489 do novo CPC dirige-se a uma dimensão subjetiva que transcende à figura do magistrado, implicando em esforços a serem despendidos não apenas pelo juiz, mas também pelas partes e advogados, devidamente instados com base no artigo 357, do mesmo diploma. 

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