Senso Incomum

O fator stoic mujic, a juíza Kenarik e o papel dos advogados, hoje!

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11 de fevereiro de 2016, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]O filme recente chamado Bridge of Spies (Ponte dos espiões), estrelado por Tom Hanks merece ser passado em sala de aula. Para estudar várias coisas: o que é ser um advogado, o que é princípio e o que é isto — a Constituição. Sem dar “ispoiler”, há algumas coisas que merecem ser aqui comentadas e se encaixam no comportamento de Pindorama (imaginário social, mídia e comunidade jurídica). No filme, Donavan, interpretado por Hanks, é um advogado de seguros. Por questões políticas, é indicado para defender um espião soviético que fora preso. O ano é 1960, em plena guerra fria. O establishment resolve dar o melhor devido processo legal para o espião, para mostrar o funcionamento da democracia americana. Julgamento de fachada. Donavan sabe que isso lhe trará antipatias. Até a sua mulher e seu filho são contra a que ele “pegue” a causa. A empresa diz que seria bom para o país que Donavan fizesse a defesa.

Donavan aceita. E vai falar com o juiz. Que lhe diz que já estava tudo decidido. Em nome de uma espécie atualizada de Razão de Estado, 3.0 e seis cilindros… American Way of Life. E o juiz argumenta no melhor estilo solipsista. Por outro lado, na empresa de advocacia, lhe questionam a dedicação, uma vez que ele indo “fundo demais”. Afinal, Donavan queria saber do mandado de busca e outras questões relativas aos direitos fundamentais previstos da 5ª Emenda. Pressionado pela CIA, cujo agente lhe diz que, nesses casos, não se seguia nenhum livrinho de regras, Donavan responde: “Você é descendente de alemães e eu de irlandeses. Sabe o que faz de nós, americanos? Só uma coisa: uma, uma, uma — o livro de regras. Chamamos a isso de Constituição. Concordamos com as regras e é isso que nos faz americanos. E não me perturbe mais, seu filho da mãe”. Ele não disse “bingo”. Mas digo eu.

Ele invoca um precedente da US Supreme Court, que tratava da ilegitimidade das provas. O juiz diz que o réu não é cidadão americano. É soviético. Logo, a Constituição não se aplica a ele. E Donavan saca o caso de um imigrante chinês, que teve seu direito reconhecido no caso Yick Wo contra Hopkins (1886) e o juiz lhe passa uma carraspana. O júri condena o espião por cinco delitos. Com o aplauso do juiz.

Você é comunista, papai? Estou apenas fazendo o meu trabalho, filho!
Donavan decide, então, recorrer à Suprema Corte. É vaiado nas ruas. Sua casa é atingida por disparos. Sua família se vira contra ele. E lá vai Donavan para a Suprema Corte dizer dos direitos do espião. E das garantias que foram violadas. Por escore apertado (5×4), a Corte nega o recurso. Donavan chega em casa e seu filho de 10 anos lhe pergunta: “Por que você está defendendo um comunista? Você é comunista”? E Donavan responde: “Apenas estou fazendo meu trabalho”. Hoje em Pindorama está assim: você defende alguém acusado de corrupção? Então é corrupto.

Há um momento em que, falando com o cliente (espião), este estranha que Donavan nunca lhe tenha perguntado se era inocente. Donavan respondeu: não me importa. O que importa é que o Estado é que deve provar isso. E não o contrário. Permito-me mais um bingo. Presunção da inocência!

Para coroar isso, há uma cena que é o exemplo que confirma o conceito de princípio. Com a condenação, Donavam diz que recorrerá. E que não desistirá, contra tudo e contra todos. Então o espião conta a seguinte história para Donavan: quando menino, na Rússia, seu pai tinha um amigo. Seu pai dizia: preste atenção nesse homem. Ele não tinha nada de especial. Mas um dia agentes invadiram sua casa, quando lá estava esse amigo. Bateram na sua mãe, no seu pai e no amigo. Que cada vez que caia, surrado e chutado, levantava. E lhe batiam de novo. Caía e levantava. E disse o espião: “E por isso sobreviveu”. O espião fez entender, então, que Donavan lembrava a ele esse amigo de seu pai. E disse porque: aquele homem, amigo de seu pai, era um stoik mujic, que quer dizer “o homem que fica em pé” (ou o homem estoico, que sofre, mas não cai). Perdão, mas cabe mais um bingo aqui!

O resto do filme você tem de ver. Interessa-me essas questões relacionadas ao direito e não à espionagem, esta, sim, questão central do filme (são os primeiros minutos que tratam do direito). Por isso não estou cometendo “ispoiler” — afinal, em alemão o nome do filme é O Negociador (Der Unterhändler).

O livrinho de regras — a Constituição
O direito vale… mesmo para o inimigo. Contra tudo e contra todos. Por que? Por uma questão de princípio. Princípio é um padrão de comportamento. É deontológico. E o livrinho de regras? Ele vale. Contra tudo e contra todos. Constituição é um remédio contra maiorias. Eis o livrinho. A Constituição e a doutrina vigilante são os mecanismos externos para conter o solipsismo. Por isso o direito tem um grau de autonomia.

O que é fazer a coisa certa? É fazê-la baseada em princípio(s). E não em consequências. Advogados deveriam ser como Donavan. Não recuar. Quando aqui escrevo que direito não é moral, não é política, não é economia, devemos falar do “fator Donavan”. E do “fator stoic mujic. Odiado nas ruas, em crise com a família, acuado na empresa e tendo o juiz contra si: eis um homem de princípio. Como o personagem Coronel Vitorino, do Romance Fogo Morto, de Lins do Rego. Lutou contra os policiais que agiram arbitrariamente contra o seu maior inimigo. E este lhe perguntou: Por quê? Ele respondeu: porque sou contra injustiças, mesmo contra meu maior inimigo.

Ser jurista exige um grau de ortodoxia. Façam o teste para saber o que é um princípio. Se você é contra a pena de morte por princípio, você é contra a pena de morte sempre ou “depende”? Se você é favor a presunção da inocência, deve sê-lo sempre. Se você diz “depende”, é porque você não está diante de um princípio e, sim, de uma “regra”. Simples regra. Porosa. Dúctil. Se um princípio como a presunção da inocência está escrita no livrinho, não tem “depende”. É o não necessário. Os juristas não entendem o que é um princípio (como o da presunção da inocência).

Princípio da colegialidade? O que é isto? O caso da juíza Kenarik
Vou dar um exemplo: Inventaram um tal “princípio da colegialidade”. O Direito, por aqui, é uma fábrica de princípios. Ora, como pode ser um princípio, se, por vezes, a decisão pode ser monocrática? Em regra (viram? “regra”), decidir por colegiado é melhor. Mas há exceções. Se a lei (ou o regimento interno) diz que a decisão, por vezes, pode ser monocrática, das duas, uma: ou a colegialidade não é um princípio e é apenas um standard retórico ou a lei ou o regimento não valem. Saiam dessa: se uma lei diz (por exemplo, no STF, a Lei 9.868) que se decide, em regra, por colegiado, mas admite que, em determinadas circunstâncias, é possível decidir monocraticamente, estamos diante de duas regras. Correto? Corretíssimo. Nenhuma delas é um princípio. Cada uma (regra) tem a sua incidência. Bingo. Então a colegialidade (traduzindo: exigência de decisão pelo coletivo) não passa de uma regra. Tão porosa como a que permite decisão monocrática. É quase acaciano isso. Por isso, a juíza Kenarik de São Paulo tem total razão ao decidir pela soltura daquelas pessoas. Não dá para gastar mais que algumas linhas para dizer isso. Ela não violou nada. Cumpriu uma das regras. Não houve violação de princípio, pela simples razão de que a tal “colegialidade” não é um princípio (um princípio é um padrão; funciona no código lícito-ilícito; é deontológico — caso contrário, é tudo, menos um princípio). Vamos dar nome às coisas: a “colegialidade” faz parte do largo rol de pamprincípios que assolam o direito pátrio.[1] Se substituirmos o seu nome por canglingon, nada muda. Não vamos confundir conceitos: na verdade, a juíza agiu por princípio (no sentido de que fala Dworkin) e não por política ou consequencialismo. E o fez cumprindo uma regra do regimento para fazer vários princípios constitucionais. Não é bonito isso? Eis o fator stoic mujic, que se fez presente na decisão da juíza.

Sigo. Até que ponto você age por princípio? E até que ponto você se entrega ao consequencialismo? Eis o busílis da questão. Que deve ser respondida pelos juristas, mormente em países recentemente saídos de regimes autoritários. A tentação do “depende” sempre é grande. Não dá para brincar com os direitos. Nas mínimas coisas. Mesmo se se tratar da metade da herança para a amante. Ou fazer como o juiz de Pelotas (RS), que mandou registrar duas mães ao filho de uma delas (as duas vivem juntas) (ler aqui). É fofo, simpático conceder. Mas a resposta é “não”. Coragem não é só dizer sim. Coragem é dizer o não necessário. Doa a quem doer. Ah: você é a favor, mesmo sendo contra a lei e a Constituição? E se amanhã esse juiz for para uma vara penal e “pegar você”, “tipo” “mesmo que a lei lhe dê direito ao Habeas, eu acho que o réu não merece”? Afinal, no caso das duas mães, ele também não “achou”? Ah: no caso do habeas, vai ser ruim, certo? Mas você não aplaudiu quando o juiz descumpriu o Código Civil? E assim por diante. Entendem a minha chatice epistêmica? De novo: “fazer direito” (com a ambiguidade da expressão e tudo o mais) exige um grau de ortodoxia!

Por isso insisti com a coerência e a integridade no novo Código de Processo Civil (além de outras conquistas). Esse é o trabalho da dou-tri-na. Constranger. Dizer: “você está errado”. “A Suprema Corte errou”. “Você violou uma lei”. “Você julgou contra a jurisprudência”. “Por isso, por aquilo, por aquele outro”. Esse é o papel do “fator Julia Roberts”: constranger epistemicamente. Na próxima coluna, explicarei o que é isto — o constrangimento epistemológico de modo mais detalhado.

1 De certo modo, impressiona-me o fato de que parcela dos juristas que dá razão à juíza não questiona o fato de a colegialidade ser um princípio. Parece normal que se diga “principio da colegialidade”… Ora, parece-me que este o cerne “dogmático” do problema. De fato, temos de revisar o nosso conceito acerca do que seja um princípio. É a confiança do juiz da causa, a rotatividade, afetividade, conectividade…O que mais vão inventar? Por que (e para quê) fazer leis, se os juristas podem construir/inventar “princípios” no atacado? E os próprios juristas não se dão conta disso. Um princípio não é um valor. Valor é coisa contingente. Princípio não é o canal para a moralização do direito. E nem para a desmoralização, se me entendem a ironia. Princípio é norma. E não algo à disposição do intérprete.


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