Opinião

STF pode levar 10 anos para zerar estoque da repercussão geral

Autor

  • Gabriel Dias Marques da Cruz

    é mestre e doutor em Direito do Estado pela USP professor visitante da Universidade Sorbonne (Paris) e professor de Direito Constitucional e Ciência Política da UFBA e da Faculdade Baiana de Direito.

8 de fevereiro de 2016, 9h53

Recentemente o Supremo Tribunal Federal divulgou dados relativos à apreciação, ao longo do ano de 2015, da repercussão geral em recursos extraordinários examinados pela corte. Foram julgados 43 casos de repercussão geral no recurso extraordinário, viabilizando, por consequência, a fixação de inúmeras teses, a serem aplicadas em processos sobrestados nos mais diversos tribunais brasileiros.

Os 43 temas acima mencionados repercutiram, segundo o STF, em 28 mil processos, que até então aguardavam sobrestados[1]. São números respeitáveis, e que evidenciam notório esforço do STF no sentido de promover maior celeridade nos julgamentos.

A repercussão geral no recurso extraordinário foi criada como uma ferramenta de racionalização dos trabalhos do Supremo Tribunal Federal. Ela surgiu a partir do advento da Emenda Constitucional 45/2004, passando a incorporar um §3º ao artigo 102 da Constituição Federal de 1988 para exigir que o tema versado no recurso extraordinário passasse a ter a sua transcendência comprovada.

Em síntese, a repercussão geral no recurso extraordinário serve para que o STF tenha a chance de realizar uma filtragem de teses que, por sua relevância econômica, política, social ou jurídica, transcendam o caso concreto e mereçam a devida apreciação da corte, repercutindo em processos com assunto correlato, que aguardam a posição do Supremo nos tribunais de instância inferior.

O Supremo, então, diante de um recurso extraordinário qualquer, precisa apreciar, preliminarmente, se o tema possui ou não repercussão geral. Caso haja, a tese em si, alvo do recurso, será posteriormente examinada pelos ministros, sendo que a decisão final repercutirá nos demais processos que envolvam a mesma tese, que aguardam sobrestados nos tribunais inferiores. Contudo, caso o STF rejeite a existência de repercussão geral no recurso extraordinário – o que exige, ressalte-se, votação pelo quórum elevado de 2/3 dos seus membros –, o recurso extraordinário não é admitido, restando obstada a análise do seu mérito pela corte.

Uma vez tendo sido criada pela EC 45/04, a repercussão geral no recurso extraordinário veio a ser regulamentada pela Lei 11.418/06. Tem sido alvo, ainda, de diversas mudanças regimentais no STF, com o objetivo de tornar o seu procedimento de apreciação mais eficaz.

Os julgamentos de casos de repercussão geral no recurso extraordinário têm obtido ótimos resultados. Usando dados da Secretaria-Geral da Presidência do STF, efetuando-se comparação entre o 2º semestre de 2007 e o 1º semestre de 2014, foram devolvidos 108.770 processos, operando-se a redução na distribuição dos processos recursais em 64%, bem como a redução no estoque de processos recursais em 58%[2].

Ocorre que, por mais que os números de apreciação da repercussão geral sejam admiráveis, eles nem de longe são aptos a resolver o problema central do excessivo acúmulo de temas a serem apreciados pelo tribunal. Segundo informações obtidas pelo ministro Luís Roberto Barroso em 2014, levando em consideração a média anual de julgamento de casos de repercussão geral reconhecida, o STF pode levar mais de 12 anos para zerar o estoque[3].

Atualizando os dados consultados à época pelo ministro, e também usando como fonte de pesquisa a Assessoria de Gestão Estratégica do STF, é possível alcançar os seguintes resultados[4]:

Situação

Quantidade

Processos sobrestados em razão da repercussão geral

1.334.209

Processos leading case com repercussão geral reconhecida e com mérito pendente de julgamento

325

Logo, mesmo tendo sido concebida como instrumento a serviço da redução, nas mais diversas instâncias, da grande quantidade de processos versando sobre questões idênticas, é paradoxal que ainda existam, no STF, tantos casos de repercussão geral com mérito pendente de julgamento. Tendo por base o ritmo atual de operação do tribunal, ainda podemos aguardar mais de uma década para o que estoque seja zerado.

É necessário perceber que este alerta já foi dado anteriormente, e não apenas a partir da manifestação do ministro Barroso. Cabe aqui lembrar de artigo da autoria do ministro Marco Aurélio Mello, publicado em 2012[5], ocasião em que alertou que já havia, à época, mais recursos extraordinários tramitando do que a própria capacidade do STF de ter condição de examiná-los apropriadamente.

Há diversas causas para a dificuldade de lidar com tamanha quantidade de processos em julgamento. Tais causas são plurais, e demandam reflexão bastante aprofundada. Elas envolvem desde a própria previsão, na Constituição, de amplo e diversificado rol de competências para o STF, passando, ainda, por questões culturais de excesso de litigância e do formato das deliberações tomadas pela corte. Evidentemente, é impossível tratar todas as causas de imediato e com efeitos rápidos; contudo, também não é possível deixar de contemplar possíveis soluções para resolver quadro tão complicado de acúmulo de trabalho[6].

O que é necessário notar é a urgência de reflexão sobre o processamento da repercussão geral no recurso extraordinário, o que demandará um raciocínio verdadeiramente estrutural sobre o próprio funcionamento do instituto.

Aumentar a quantidade de teses de repercussão geral apreciadas significa feito a ser celebrado. Contudo, mesmo que os índices sejam superados nos próximos anos, não resolverão o problema estrutural maior, ante a persistência da sistemática de votação atual, que inviabiliza o término do estoque de causas aguardando julgamento.

Vale dizer, ainda, que os problemas relativos ao processamento das causas não se limitam aos recursos extraordinários e representam tema de preocupação acadêmica significativa[7], a exigir a adoção de atitudes eficazes no sentido do alcance de um processo deliberativo de maior qualidade.

Apesar de todas as críticas, temos, no Brasil, um dos tribunais de maior operacionalidade do mundo[8], mas que precisa, com urgência, dedicar energia maior à tarefa de refletir sobre a sua própria forma de julgar. O problema não é novo, e faz lembrar a advertência de Pontes de Miranda, formulada em 1946[9], quando mencionou que a realidade “(…) obriga-nos, quase sempre, a pôr o problema duplo: decidir já, e decidir bem. A lei há de ter os seus dois valores”.

É necessário, portanto, que o Supremo perceba a relevância de refletir, com maior profundidade, sobre a qualidade do seu próprio processo deliberativo, em nome de maior operacionalidade da corte e da vitalidade de suas decisões.

No caso da repercussão geral no recurso extraordinário, em particular, podem ser poupadas décadas de expectativa.

 


[1] Fonte: Portal do STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=307734. Acesso em: 21/01/2016.

[2] Fonte: Portal do STF, Secretaria-Geral da Presidência. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaRepercussaoGeral&pagina=numeroRepercussao. Acesso em: 21/01/2016.

[3] BARROSO, Luís Roberto. Reflexões sobre a Competência e o Funcionamento do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/palestra-ivnl-reflexoes-stf-25ago2014-1.pdf. Acesso em: 21/01/2016.

[4] Fonte: Portal do STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=sobrestadosrg. Acesso em: 21/01/2016.

[5] MELLO, Marco Aurélio. Cinco anos de repercussão geral: reflexões necessárias. Revista de Direito do Estado. Ano 7. N° 24. Julho-Setembro de 2012, p. 149.

[6] O Ministro Barroso apontou algumas possíveis soluções sobre o tema, que podem ser conferidas na matéria a seguir: “Ministro Barroso propõe limitar reconhecimento de repercussão geral”. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-26/roberto-barroso-propoe-limitar-repercussao-geral-supremo. Acesso em: 21/01/2016.

[7] Neste sentido, cf., por exemplo: MENDES, Conrado Hübner. Onze Ilhas. Folha de São Paulo, 01/02/2010.

[8] Sobre os mecanismos de deliberação usuais do Supremo, incluindo a menção a diversos dados estatísticos, cf. VERÍSSIMO, Marcos Paulo. A Constituição de 1988, Vinte Anos Depois: Suprema Corte e Ativismo Judicial “à brasileira”. Revista Direito GV, Jul-Dez 2008, pp. 421-422.

[9] MIRANDA, Pontes de. Defesa, Guarda e Rigidez das Constituições. Revista de Direito Administrativo. Vol. 4. Abril de 1946, p. 6.

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