Opinião

Proibição a livro de Adolf Hitler ignora solenemente dispositivos constitucionais

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5 de fevereiro de 2016, 15h49

Na terça-feira (2/2), o juízo da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro proferiu decisão cautelar proibindo, temporariamente, a venda do livro Minha Luta (Mein Kampf, 1925), de Adolf Hitler, que recentemente ingressou em domínio público. O juiz acolheu o pleito do Ministério Público, baseado, em última análise, em tipo penal previsto no artigo 20, caput e parágrafo 2º, da Lei 7.716/89 (diploma que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor)[1]. A decisão pode ser lida aqui.

É de bom alvitre salientar que o objetivo dos autores deste texto não é o de bradar uma defesa do conteúdo da obra e/ou de qualquer “exemplo” que se queira seguir da vida de Hitler. Por honestidade intelectual (desvelamento ideológico), os autores consideram a doutrina do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) uma excrescência megalomaníaca e pseudocientífica. Entretanto, isso não impede questionamentos e análises de caráter objetivo (não solipsista) quanto à significação do referido pronunciamento judicial na ordem jurídica brasileira e, mais, à consistência epistemológica dos fundamentos apontados pelo respeitável juízo.

Este é o núcleo argumentativo que embasa a aludida decisão: o famigerado best-seller nazista, curiosamente escrito por Hitler durante sua confortável estada no cárcere, não pode circular em terras brasileiras porquanto seu conteúdo ideológico — darwinismo social, xenofobia, espaço vital etc. — afrontaria a “dignidade da pessoa humana” (CF, artigo 1º, III), a “prevalência dos direitos humanos” (CF, artigo 4º, II) e o “repúdio ao terrorismo e ao racismo” (CF, artigo 4º, VIII), em escala constitucional. Ao comercializar seus exemplares, configurar-se-ia, em tese, a prática, o induzimento ou a incitação da discriminação ou do preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Lei 7716/89, artigo 20, caput), em escala infraconstitucional.

Ora, basta um pouco de consciência filosófica para compreender a historicidade ou o valor historiográfico a ser atribuído a Mein Kampf: abranger sua significação axiológica no plano da história perfaz atitude completamente diferente do uso efetivo para o fim ilícito ou juridicamente reprovável. Com base na filosofia culturalista do saudoso professor Miguel Reale e em seu “criticismo ontognoseológico”, pode-se dizer que, em íntima relação dialética com sujeito cognoscente (que exerce um papel ativo nesse processo), existem diferentes tipos de objetos cognoscíveis, quais sejam: objetos naturais (físico-químicos e psíquicos), objetos ideais, valores e objetos culturais. Originam-se da dicotomia entre ser (objetos naturais e ideais) e dever ser (valores), e do ser enquanto deve ser (objetos culturais).

Sem maiores aprofundamentos, quer-se dizer que os indivíduos (sujeitos cognoscentes) podem ter diferentes aproximações valorativas sobre os objetos, sejam eles naturais — como uma pedra (rubi ou calcário), considerada bela ou feia (valores estéticos), bem como útil ou inútil (valores econômicos) — ou mesmo culturais, como o texto hitleriano. Afinal, de um valor não decorre sempre o mesmo e único dever ser, pois se “a experiência axiológica obedecesse às linhas de um determinismo de valorações, a História do homem, e a História do Direito, em particular, não apresentariam tantos contrastes e contradições”[2]; por sua vez, o “tempo histórico é caracterizado por seu conteúdo axiológico e, mais objetivamente, por sua significação, ou seja, por traduzir-se em sinais de prevalência de sentido[3].

Hodiernamente, à obra Mein Kampf são atribuídas as seguintes valorações: a) positiva, relacionada ao seu conteúdo ideológico e, portanto, deve ser divulgada ou comercializada para que haja a alteração na tábua axiológica predominante (objetivo de grupos neonazistas, por exemplo) com a realização do programa ali proposto; b) negativa, relacionada ao seu conteúdo ideológico e, portanto, não deve ser divulgada ou comercializada por contrariar a tábua axiológica predominante, evitando-se a realização do programa ali proposto; e c) positiva, relacionada não ao seu conteúdo, mas ao seu impacto na História da humanidade (significado historiográfico) e, portanto, deve ser divulgada ou comercializada a fim de produzir e adquirir conhecimento filosófico e científico — realização de outro valor positivo — e, também, evitar a realização do programa ali proposto depois de conhecê-lo — fundada na valoração negativa sobre o conteúdo mencionada anteriormente.

A decisão do juízo da 33ª Vara Criminal do RJ, claramente, desconsidera tal perspectiva axiológica e impõe um desfecho único a todos os jurisdicionados: todo historiador, por exemplo, necessariamente estaria sofrendo a imputação de causar um dano com o estudo sobre o livro: qualquer tese de doutorado envolvendo Mein Kampf seria necessariamente censurada, porque — na visão do juízo que prolatou a decisão — a tese giraria em torno de um objeto estático. É como se o livro valesse por ele mesmo (o objeto pelo objeto): o Judiciário, assim, teria a última palavra e a espada da racionalidade para dizer, afinal de contas, o que leitores de Mein Kampf extrairiam desse objeto.

Seguindo essa mesma linha argumentativa, mutatis mutandis, deveriam ser submetidos à censura ou abarcados pelo “index jurisdicional” outros textos que agridem flagrantemente a dignidade humana e outros princípios jurídicos (argumento ad absurdo), por exemplo: a) o Antigo Testamento, pois a “lei mosaica” tem disposições normativas sobre a pena de apedrejamento de “filho obstinado e rebelde” (Deuteronômio, cap. 21, v. 18-21), de açoitamento ao que for condenado em uma ação judicial (Deuteronômio, cap. 25, v. 1-4), canibalismo entre pais e filhos no caso de desobediência a Deus (Levítico, cap. 26, v. 27-29), a justeza da escravidão (Êxodo, cap. 21, v. 1-11) etc.; b) a Política, de Aristóteles, na qual este afirma que certos indivíduos são naturalmente escravos, nascidos somente para obedecer e servirem de instrumentos no governo doméstico (economia)[4]; c) os textos de G. Hegel que declaram a superioridade da civilização germânica sobre as demais[5].

Mais além, considerando que a ordem constitucional brasileira deve ser democrática (CF, artigo 1.º, caput), o juízo deveria ter sopesado as demais variáveis axiológicas a fim de tomar a decisão mais congruente com a Constituição da República. Com base em H. Kelsen, ao considerar tão somente um ponto de vista, sem ao menos analisar os demais, a decisão adquiriu um caráter filosófico absolutista (que pressupõe a existência de valores absolutos), cuja weltanschauung (visão de mundo) é inerente a regimes autocráticos. Os regimes democráticos, por sua vez, estão filosoficamente calcados na concepção relativista, cujo princípio fundamental é o da tolerância[6].

Deslocando do âmbito jurídico-filosófico para o jurídico-dogmático, constata-se que os “fundamentos” do decisum também apresentam outro problema, uma vez que o juízo invoca, basicamente: a) o artigo 1º, inciso III, da CF (dignidade da pessoa humana); b) o artigo 4º, incisos II e VIII, também da CF (objetivos republicanos de prevalência dos direitos humanos e de repúdio ao racismo e ao terrorismo); e c) o precedente do Supremo Tribunal Federal envolvendo o HC 82.424/RS.

Veja que a decisão solenemente ignora outros dispositivos constitucionais: o artigo 5º, IX, garantia a livre expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação; o artigo 218 garante a promoção e o incentivo a pesquisa; o artigo 220, por exemplo, veda qualquer restrição sobre a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação. Nenhuma ponderação a respeito dessas cláusulas constitucionais foi feita. Nada[7].

Além disso, o próprio Estado brasileiro se comprometeu, com a Lei 10.753/03 (Lei da Política Nacional do Livro) a assegurar aos indivíduos o pleno exercício do direito subjetivo de acesso e uso do livro, a fomentar e apoiar a produção, a edição, a difusão, a distribuição e a comercialização do livro, a apoiar a livre circulação do livro no país e a propiciar aos editores e livreiros as condições necessárias ao cumprimento da referida lei (artigo 1º, incisos I, III, VIII e XI). Esta lei foi, ao menos, ventilada na decisão? Absolutamente, não.

Mais: o precedente do STF (HC 82.424/RS) invocado oferece, de fato, respaldo jurisprudencial ao caso sub judice? Há que se fazer a distinção (distinguishing) da ratio decidendi: salvo engano, no caso tratado no mencionado Habeas Corpus, o paciente havia sido penalmente responsabilizado pelo tipo do artigo 20, caput e parágrafo 3º, da Lei 7.716, porque editava e publicava frequente e sistematicamente livros de conteúdo antissemita, o que configuraria o dolo ou a vontade consciente dirigida ao fim de praticar, instigar ou incitar práticas discriminatórias. Bem diferente é a publicação de uma única obra cuja relevância historiográfica é ímpar, porquanto é uma espécie de “manifesto” do Führer da ideologia nazista. A conduta, neste contexto, é atípica por absoluta ausência de dolo. Inclusive, sem a incidência das normas jurídico-penais, a competência deveria ser deslocada para o juízo cível, porque envolve, segundo consta na própria decisão, “interesses difusos”. É bem verdade que a medida cautelar aqui aplicada é prevista pelo artigo 20, parágrafo 3º, da Lei 7.716/1989. Entretanto, ousamos asseverar que não há crime. Se não há crime, a natureza jurídica da medida — eminentemente processual penal — acaba ganhando contornos ontológicos idênticos ao de uma tutela coletiva ou difusa… O meio cautelar processual penal é, na verdade, travestido de uma questão puramente civil: o fim atingido é completamente estanque ao limite da competência destinada ao juízo criminal.

O historiador e biógrafo I. Kershaw salienta a importância do livro, que “trazia, por mais confusa que fosse a narrativa, uma declaração intransigente de seus princípios políticos, sua ‘visão de mundo’, o sentido de sua ‘missão’, sua ‘visão’ da sociedade e seus objetivos de longo prazo. Não menos importante, estabelecia a base do mito do Führer, pois Hitler se retratava com qualificações incomparáveis para conduzir a Alemanha de sua miséria de então para a grandeza”[8]. Mein Kampf é uma valiosa fonte de pesquisa sobre o domínio ou autoridade de tipo “carismático” de Max Weber — tal qual ocorre com “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, e sua genial descrição de Antônio Conselheiro e da Guerra de Canudos.

Kershaw ainda diz: “Mein Kampf é o elemento fundamental para compreender o pensamento de Hitler em meados da década de 1920”[9]. Quão infelizes são os professores de historiografia: podem ser penalmente responsabilizados por lecionarem sobre o nazismo e ousarem a recomendar a leitura da referida obra de Hitler…

No plano da efetividade, a decisão judicial padecerá da fraqueza inerente a todas as normas proibitivas desarrazoadas ou irracionais: no máximo, ela mesma incentivará os indivíduos que desconhecem o livro a procurá-lo e conhecê-lo; no mínimo, será mera flatus vocis, uma vez que, mesmo sem “incentivar”, as pessoas que desejarem ler a obra poderão encontrá-la fácil e livremente na internet.

Não obstante tudo o que a doutrina vem construindo hodiernamente (por todos, lembremos de Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck), é triste constatar que, no plano pragmático, ganha ares de verdade a teoria kelseniana sobre a criação e aplicação de normas jurídicas (teoria dinâmica ou nomodinâmica): ao fim e ao cabo, o Direito transparece como técnica social que se manifesta em uma ordem normativa da conduta humana, ou em um sistema de normas que regula o comportamento humano de uma forma sui generis, qual seja, pela organização e monopólio da força pela sociedade, ordem esta que é criada e aplicada por atos de vontade humana[10]. A “interpretação” feita pelos órgãos aplicadores do Direito não é mero fruto da cognição e intersubjetividade, mas, desgraçadamente, da volição; um ato de poder[11], em suma[12].

Infelizmente, percebe-se que as decisões judiciais — mas não somente estas, como também outros pronunciamentos estatais — valem exacerbadamente mais pelo poder que a impõe (órgão ou agente competente) do que pela racionalidade — i.e. a congruência com as demais normas da ordem jurídica — de seus fundamentos. O neoconstitucionalismo, a hermenêutica pós-positivista ou, em termos jocosos, este constitucionalismo dos Ursinhos Carinhosos, com seus belos e poéticos termos, tais como “Constituição do por vir”, “constitucionalismo fraternal” ou “da verdade”, “Constituição como valor em si” etc., serve como fachada para o exercício cruento da autoridade calcada no subjetivismo.

No fim, e voltemos a Kelsen, vem a calhar a seguinte reflexão: “[Atrás do Direito positivo] não há a verdade absoluta da metafísica e nem a justiça absoluta do Direito natural. Quem levantar o véu e não fechar os olhos, encontrar-se-á frente a frente com a cabeça do poder, com a Górgona”[13]. Por parte dos juristas, restam-lhes a crítica filosófica e jurídico-científica, bem como a realização de uma “engenharia jurídica” de controle das decisões estatais.


[1] A decisão equivocadamente sustenta que a tutela jurisdicional cautelar deveria ser concedida para evitar “a prática de crime definido no artigo 20, parágrafo 3º, inciso I, da Lei 7.716/89 (sic)”. Todavia, a referida norma prevê a tutela cautelar de “recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo” para evitar a continuidade do crime previsto no caput e parágrafo 2º do artigo 20.
[2] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 550.
[3] REALE, Miguel. Experiência e Cultura. 2. ed. rev. Campinas: Bookseller, 2000, p. 247, grifos no original.
[4] ARISTÓTELES. Política. Tradução de Pedro Constantin Tulens. São Paulo: Martin Claret, 2006.
[5] HEGEL, Georg. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997; REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2005, v. 5.
[6] “[…] É a exigência de compreender com benevolência a visão religiosa ou política de outros, mesmo que não a compartilhemos, e, exatamente porque não a compartilhamos, não impedir sua manifestação pacífica. Obviamente, de uma visão de mundo relativista não resultado o direito à tolerância absoluta, somente à tolerância no âmbito de um ordenamento jurídico positivo, que garanta a paz entre os submetidos a essa Justiça, proibindo-lhes qualquer uso da violência, porém não lhes restringindo a manifestação pacífica de opiniões” (KELSEN, Hans. O que é a Justiça? In: ______. O que é Justiça? 3. ed. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 24).
[7] Há contradição nos termos no pronunciamento. Em um primeiro momento, o juízo assevera: “Diante do conflito existente entre os fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil, especificamente, a defesa da pessoa humana, evidenciado está que qualquer manifestação de pensamento apto a ensejar o fomento a qualquer forma de discriminação à pessoa humana, contraria os mais basilares valores humanos e jurídicos tutelados pela República Federativa do Brasil”. Posteriormente, diz: “[…] Não há que se falar em conflito de direitos fundamentais, ou seja, o direito à informação sem o crivo da censura versus a dignidade da pessoa humana”. Afinal, há ou não há conflito principiológico?
[8] KERSHAW, Ian. Hitler. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 181.
[9] Idem, ibdem.
[10] KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. Tradução de Anders Wedberg. Cambridge: Harvard University, 1945.
[11] KELSEN, Hans. Pure Theory of Law. Tradução de Max Knight. Berkeley: University of California, 1967; KELSEN, Hans. The Law of the United Nations: a critical analysis of its fundamental problems. London; New York, 1950; PASSOS, J. J. Calmon de. Revisitando o Direito, o Poder, a Justiça e o Processo: reflexões de um juris que trafega na contramão. Salvador: Juspodivm, 2013.
[12] Lenio Streck, desde sempre, critica o problema da interpretação do Direito tal qual descrito por Kelsen no capítulo oitavo da sua Teoria Pura do Direito. Essa seria a “maldição kelseniana”, que deu impulso a um voluntarismo judicial sem precedentes — afinal, para Kelsen, a interpretação feita pelos juízes é meramente um ato de vontade. Conferir: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, Hermenêutica e teorias discursivas. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
[13] EBENSTEIN, William. La Teoría Pura del Derecho. Tradução de J. Malagón e A. Pereña. [S. l.]: Fondo de Cultura Economica, 1947, p. 131, tradução nossa.

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