Opinião

Blefe nos acordos de delação premiada: pode o MP barganhar com o que não tem?

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5 de fevereiro de 2016, 6h22

Em tempos de midiáticos escândalos envolvendo políticos e o alto empresariado nacional, a delação — ou, como alguns preferem, “colaboração” — premiada tem se mostrado a mais nova coqueluche da Justiça criminal. Muito embora a Lei 12.850/2013 tenha, de certa forma, estimulado o seu uso, é certo que o instituto não é novo, remontando, inclusive, à Idade Média, época em que dogmas sacros influenciavam o Direito Penal, e o colaborador era chamado de pentito (arrependido).

A verdade, no entanto, é que a figura do colaborador começou a ser mais difundida no início do século XX, com o ressurgimento da Justiça penal negociada em solo americano. Foi nesse ambiente que a delação premiada passou a ser uma vertente importante da Justiça negociada (plea bargaining) no combate ao crime organizado. Na Itália, ganhou força a partir da década de 1970, sendo utilizada a figura do delator para o desmantelamento da máfia, por meio do instituto do patteggiamento, que albergou o chiamata di correo (a colaboração premiada)[1].

Deixando de lado os marcos históricos que pautaram a evolução do instituto no âmbito internacional, cabe a nós, neste breve ensaio, fomentar a reflexão sobre o uso da delação premiada no ordenamento jurídico nacional. Importante pontuar, de início, que não se pretende sustentar a imprestabilidade do instituto da delação premiada em si, mas trazer à baila discussão sobre a constitucionalidade de um dispositivo específico, introduzido pela Lei 12.850/2013, que não se coaduna com sistema acusatório arquitetado pelo constituinte.

O dispositivo a que nos referimos é o artigo 4ª, parágrafo 4º, da Lei 12.850/2013, que faculta ao Ministério Público a possibilidade de deixar de oferecer denúncia contra o colaborador, quando este não for o líder da organização criminosa e for o primeiro a prestar efetiva colaboração. Daí porque se dizer, conforme melhor detalharemos a seguir, que ao utilizar o dispositivo legal em questão para não propor ação penal em face do criminoso delator, o dominus litis acaba por dispor, indevidamente, de múnus inerente à sua função pública, que lhe é constitucionalmente imposto.

Apenas para que fique bem claro, a situação ora analisada não se refere à hipótese de o órgão acusador requerer o arquivamento do procedimento investigativo, mas a aventada possibilidade de deixar de oferecer denúncia, com base no artigo 4º, parágrafo 4º, da Lei 12.850/2013, sendo esta manifestamente inconstitucional, na exata medida em que fere o sistema acusatório estabelecido em nosso ordenamento jurídico.

Diga-se isto, pois, conforme se observa do texto constitucional, é dever do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal pública (artigo 129, I, da Constituição Federal). Assim, é incontroverso que o parquet é o titular da ação penal, salvo os raríssimos casos de ação penal privada. Em perfeita harmonia com o que estabelece a Carta Política, o Código de Processo Penal, em seu artigo 24, dispõe que a ação penal “será promovida por denúncia do Ministério Público”.

Portanto, uma interpretação sistêmica do arcabouço jurídico nos leva a inexorável conclusão de que o parquet, uma vez verificadas presentes as condições da ação, tem a obrigação (e não faculdade) de apresentar denúncia em relação aos fatos tidos como criminosos. Este é, exatamente, o consagrado princípio da obrigatoriedade que norteia a ação penal pública.

Nesse sentido, cabe trazer à baila a lição de Gustavo Badaró[2], estabelecendo que o “princípio da obrigatoriedade, também denominado princípio da legalidade, significa que, quando o Ministério Público recebe o inquérito policial ou quaisquer outras peças de informação, e se convencer da existência de um crime e de que há indício de autoria contra alguém, estará obrigado a oferecer denúncia. O artigo. 24 do CPP dispõe que a ação penal ‘será promovida’ por denúncia do Ministério Público. Não há, pois, campo de discricionariedade. O Ministério Público não poderá concluir que há justa causa para a ação penal, mas optar por não exercer o direito de ação mediante o oferecimento da denúncia”.  

Não por outro motivo, inclusive, o professor Jorge de Figueiredo Dias[3] afirma que o “MP está obrigado a proceder e dar acusação por todas as infracções de cujos pressupostos — factuais e jurídicos, substantivos e processuais — tenha tido conhecimento e tenha logrado recolher, na instrução, indícios suficientes”.

Deste modo, dúvida não há de que, em nosso ordenamento jurídico (assim como em Portugal), a atuação do parquet submete-se ao princípio da legalidade, o que não deixa espaço para uma menor severidade na análise dos fatos em benefício do acusado, ou seja, para a realização de uma Justiça penal negociada[4].

Percebe-se, diante do cenário constitucionalmente estabelecido, que é múnus do parquet o oferecimento de denúncia, uma vez verificadas as condições da ação penal. A obrigatoriedade (ou legalidade), por sua vez, encontra sua antítese nos princípios da oportunidade e conveniência (estes não adotados no Brasil, porém amplamente difundidos por deitarem raiz no Direito norte-americano), “em que caberia ao Ministério Público ponderar e decidir a partir de critérios de política criminal com ampla discricionariedade”[5].  

Logo, ainda que a Lei 12.850/2013 pretenda autorizar o dominus litis a negociar a propositura da ação penal em sede de delação premiada, a Lei Maior impõe o dever de o órgão acusador oferecer denúncia sobre os fatos criminosos e todas as pessoas a eles relacionadas.

Daí justamente se dizer ser inconstitucional o artigo 4º, parágrafo 4º, da Lei 12.850/13.

É certo que nosso ordenamento jurídico prevê hipótese de exceção ao princípio da obrigatoriedade, sob a denominação de princípio da discricionariedade regulada por lei. Porém — e é imprescindível que isto fique registrado —, é a própria Constituição Federal que estabelece uma única exceção, ao prever os juizados especiais, com a possibilidade de transação, para as infrações de menor potencial ofensivo (artigo 98, inciso I, da Constituição Federal).

Portanto, a regra constitucional estabelece que o agir do Ministério Público, no caso de ação penal pública, se pauta pelo princípio da obrigatoriedade, sendo que a única exceção constitucionalmente prevista refere-se às infrações de menor potencial ofensivo, ocasião única em que o dominus litis, “mesmo concluindo pela ocorrência do crime, deixa de oferecer denúncia, e se limita a formular proposta de transação penal”[6].

Assim, considerando que o constituinte não facultou ao parquet a possibilidade de deixar de apresentar denúncia no caso de celebração de acordo de delação premiada, é patente a inconstitucionalidade do artigo 4º, parágrafo 4º, da Lei 12.850/13. Isso porque, quando a Carta Política excepciona o princípio da obrigatoriedade, o faz em seu próprio texto e, justamente por isso, qualquer norma infraconstitucional que estabeleça restrição ao princípio em questão não se adequa a moldura constitucional de nosso sistema acusatório (dito de modo mais claro: é inconstitucional).

Logo, ao utilizar o artigo 4º, parágrafo 4º, da Lei 12.850/2013, o Ministério Público barganha com uma faculdade que jamais possuiu, qual seja, a de não apresentar denúncia. Não se pode aceitar que o órgão acusador transacione com o agente “colaborador”, dispondo, para tanto, de um dever que lhe é explicitamente imposto na Carta Magna (logo, indisponível). Em realidade, verifica-se que falta pressuposto contratual ao acordo de delação premiada firmado nestes termos (o que o torna nulo, inclusive sob a ótica do Direito Civil), na medida em que seu objeto não se mostra possível, vez que o dominus litis, por imposição constitucional, não pode deixar de oferecer denúncia.

É inaceitável, portanto, o acordo de delação premiada celebrado nos termos do artigo 4º, parágrafo 4º, da Lei 12.850/2013. Acordos de colaboração firmados sob a promessa de não oferecimento de denúncia são no todo imprestáveis, pois o dispositivo legal que lhes serve de sustentáculo é manifestamente inconstitucional por ferir o sistema acusatório, em especial o princípio da obrigatoriedade que pauta o agir do dominus litis.  

Repita-se, por derradeiro, que a intenção deste ensaio não é atacar ou maldizer o instituto da delação premiada, mas apenas jogar luz sob a inconstitucional hipótese de barganha introduzida, indevidamente, pela Lei 12.850/2013, até como forma de adequar o instituto à realidade jurídica brasileira.


[1] MARQUES, Antonio Sergio Peixoto. A colaboração premiada: um braço da Justiça penal negociada in “Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal”. Porto Alegre: Magister, 2004 – Bimestral. Coordenação: Damásio E. de Jesus, Fernando da Costa Tourinho Filho, Luiz Flávio Borges D'Urso, Elias Mattar Assad e Marco Antonio Marques da Silva. V. 60 (jun./jul.2014), p. 35.
[2] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. – 2. Ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 120.
[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, v. 1. Coimbra: Coimbra editora, 1974, p. 126.
[4] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Processo Penal, t. I. – 2. Ed. – Coimbra: Almedina, 2009, p. 201.
[5] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. – 10. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 381.
[6] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. – 2. Ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p. 120.

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