Possibilidade de vida

Decisão do STF sobre aborto de anencéfalo não se aplica a feto com microcefalia

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5 de fevereiro de 2016, 16h25

A decisão do Supremo Tribunal Federal de autorizar a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não pode ser aplicada a casos de microcefalia, uma vez que essa doença nem sempre impede a vida do bebê após o nascimento. Essa é a opinião majoritária de juristas ouvidos pela revista Consultor Jurídico.

O Brasil assiste a um aumento de casos de bebês com microcefalia, e há a suspeita de que eles estejam sendo causados pelo vírus zika. Este agente é transmitido principalmente pelo Aedes aegypti, o mesmo mosquito transmissor da dengue, mas há indícios de que ele também pode se espalhar por saliva e relação sexual. A situação se espalhou para outros países, especialmente para os tropicais, e fez a Organização Mundial da Saúde decretar emergência internacional.

A microcefalia, que também pode ser causada por uso de drogas durante a gravidez, rubéola, toxoplasmose e citomegalovírus, é uma condição neurológica que torna o cérebro e a cabeça menores do que a média. Alguns efeitos da doença são cegueira, surdez, déficit intelectual e morte — mas não existem dados confiáveis sobre o percentual de óbitos.

Com medo de terem filhos com tais sintomas, muitas mulheres vêm praticando abortos, mesmo ilegalmente. O ato só não é considerado crime no Brasil se não houver outra forma de salvar a vida da gestante (artigo 128, I, Código Penal), se a gravidez resultar de estupro (artigo 128, II, Código Penal), ou se o feto for anencéfalo.

A medida neste tipo de situação foi autorizada pelo STF em 2012, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde. Na ocasião, por oito votos a dois, os ministros entenderam que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo não é aborto, porque não há possibilidade de vida fora do útero. Assim, a corte decidiu que gestantes que optam pelo procedimento e médicos que fazem a cirurgia não cometem crime.

Baseados nesse precedente, alguns grupos passaram a argumentar que a interrupção da gravidez em casos de microcefalia seria legal. A antropóloga e professora da Faculdade de Direito na Universidade de Brasília Debora Diniz, uma das cabeças por trás da ADPF sobre anencefalia, articula levar a questão ao STF.

STF
Permitir que gestantes abortem fetos com problemas seria uma forma de eugenia, diz ministro aposentado Velloso.
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No entanto, especialistas ouvidos pela ConJur discordam dessa análise. Para o ministro aposentado do Supremo Carlos Velloso, o fato de a anencefalia ter efeitos diferentes da microcefalia impede que as duas condições sejam tratadas da mesma forma: “Seria uma brutalidade sem nenhuma justificativa eliminar uma vida porque a criança vai nascer com problema cerebral. Então, se tiver também problema coronariano, pulmonar, vamos autorizar o morticínio?”.

Nessa mesma linha, o professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo José Levi Mello do Amaral Júnior sustenta que a condição supostamente causada pelo vírus zika não impede a vida, e que autorizar o aborto desses fetos seria uma manobra jurídica. “A microcefalia típica não implica impossibilidade de vida extra-uterina e os exemplos concretos são numerosos, inclusive de pessoas nesta condição que superaram limitações e, até mesmo, colaram grau em curso superior. Por isso mesmo, admitir aborto no caso de microcefalia seria vulgarizar algo que é excepcional no Direito brasileiro”, avalia.

Embora em certos casos essa condição faça com que o bebê deixe o útero da mãe já sem vida, não é possível determinar previamente, via ultrassom, quando haverá impossibilidade de sobrevivência, ainda que dê para se confirmar a microcefalia, explica o neurologista Paulo Henrique Ferreira Bertolucci, professor da Universidade Federal de São Paulo.

Por essa razão, essa discussão não é apenas sobre aborto, mas também sobre a forma como a sociedade trata deficientes e apoia suas famílias, afirma a professora de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ana Paula de Barcellos, sócia do Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados.

Assim, permitir que gestantes abortem fetos com problemas seria uma forma de eugenia, opinam Amaral Júnior e Velloso. Segundo o ministro aposentado, a ideia de um mundo sem deficientes se aproxima das visões do ditador alemão Adolf Hitler.

Carlos Humberto/SCO/STF
Sofrimento da grávida por saber que seu filho terá graves limitações justificaria aborto, diz Marco Aurélio.
Carlos Humberto/SCO/STF

Dano psíquico
Na contramão dos outros juristas ouvidos pela ConJur, tal como costuma se posicionar com relação aos seus colegas no STF, o ministro Marco Aurélio enxerga a possibilidade de grávidas de microcéfalos interromperem a gestação. Contudo, o argumento dele é diferente do usado no julgamento sobre anencéfalos. Este precedente, a seu ver, não pode ser automaticamente estendido a fetos com crânio e cérebro menores pela mesma razão destacada por Velloso, Amaral Júnior e Ana Paula: a chance de vida que eles têm.  

O fundamento do ministro está na interpretação do conceito de dano à mulher, uma das hipóteses de aborto legal. Aos seus olhos, essa definição pode incluir não apenas o prejuízo material, à saúde física da gestante, mas também o moral, que afetaria a saúde mental. Com base nessa premissa, o sofrimento da grávida por saber que seu filho terá graves limitações justificaria, para Marco Aurélio, a interrupção da gravidez.  

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