Opinião

Lei da repatriação de divisas ainda deixa muitas dúvidas

Autor

  • Maíra Beauchamp Salomi

    é advogada criminalista sócia fundadora do Escritório Salomi Advogados especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP membro da Comissão de Prerrogativas da OAB-SP.

2 de fevereiro de 2016, 8h23

Como bem se vê atualmente, o Brasil não é um país de economia que se diga muito estável. Pelo contrário, o cenário sempre foi de altos e baixos, grandes oscilações e nenhuma previsibilidade. Tivemos cinco diferentes moedas em menos de dez anos (1986-1994), múltiplas indexações, congelamentos, confisco de poupança e até tabelamentos. 13,3 trilhões por cento foi a inflação acumulada nos 15 anos que antecederam o Plano Real. De fato, não fomos privilegiados pela segurança de uma economia planejada e previsível.

Sobretudo por conta disso, paralelamente a outros motivos um tanto mais egoístas, grande parte dos brasileiros vem remetendo há anos seus recursos para o exterior. Seja como forma de poupança para as gerações vindouras, seja para escapar do Fisco, seja para obter melhores resultados com investimentos mais rentáveis ou até mesmo para garantir rendimentos obtidos de modo não tão ortodoxo. Não importa o exato objetivo, mas fato é que grande parte da renda desses brasileiros foi parar em terras estrangeiras.

E por meio dessas práticas vimos inúmeros delitos serem cometidos — muitas vezes por quem nem mesmo deles tinham plena consciência. Para dizer o mínimo, fizeram-se presentes os crimes de evasão de divisas e manutenção de conta no exterior previstos no artigo 22, caput e parágrafo único, da Lei 7.492/85, quase sempre acompanhados do delito de sonegação fiscal, previsto na Lei 8.137/90. Obviamente que, por estarem fora da lei, os cidadãos brasileiros donos da pecúnia sequer cogitavam trazê-la de volta sob pena de serem, de imediato, processados pelos delitos cometidos. 

Bem por isso, e em especial pelo momento econômico depressivo que enfrenta mais uma vez, o governo brasileiro viu-se incentivado a recuperar seus bilhões perdidos. Nessa ambiência, foi promulgada, com veto presidencial a doze dispositivos, a novel Lei 13.254 em 13 de janeiro de 2016, que dispõe sobre o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) para anistiar tributos e crimes relativos à manutenção de ativos não declarados no exterior.

Muito embora já se esperasse ansiosamente, na seara penal,  por esta anistia, não se sabia ao certo de que modo seria ela concretizada. Destacamos aqui algumas considerações para melhor compreensão do diploma legal e para reflexões sobre os seus aspectos penais.

Primeiramente, cumpre dizer que o RERCT poderá ser aplicado aos residentes ou domiciliados no Brasil na data de 31 de dezembro de 2014 que tenham sido, ou ainda sejam, proprietários ou titulares de ativos, bens ou direitos no exterior. É certo que não poderão aderir ao regime os detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, o respectivo cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data da publicação da Lei.

De acordo com o texto legal, poderão ser anistiados recursos, bens ou direitos de origem lícita, incluindo movimentações anteriormente existentes, remetidos ou mantidos no exterior, bem como aos que tenham sido transferidos para o Brasil, e que não tenham sido declarados ou tenham sido declarados de maneira incorreta.

Apenas o que se sabe sobre a adesão, enquanto não se tem regulamentação específica, é que basta a pessoa física ou jurídica apresentar à Secretaria da Receita Federal do Brasil declaração única de regularização específica contendo a descrição dos recursos, bens e direitos com o respectivo valor em reais, sendo necessária cópia da declaração ao Banco Central do Brasil. E, claro, recolher integralmente o imposto de 15% e a multa no mesmo valor do imposto sobre os recursos declarados.

Especificamente na hipótese de inexistência de saldo ou título de propriedade na data de 31 de dezembro de 2014, a descrição das condutas praticadas pelo declarante e dos respectivos bens e recursos que possui se faz necessária. Ou seja, somente em caso de ausência de saldo ou possibilidade de comprovação de propriedade de tal saldo, o declarante deverá fazer a descrição pormenorizada das condutas criminosas que praticou. Caso contrário, não!

É importante notar que a lei requer conste na declaração, além da identificação do declarante, das informações necessárias à identificação dos recursos, bens e direitos, e de seu valor, uma confirmação do contribuinte de que tais recursos têm origem em atividade econômica lícita, entendida esta, nos termos do artigo 2º, inciso II, desta Lei,  como recursos provenientes de atividades permitidas ou não proibidas por lei ou, ainda, o objeto, produto ou proveito dos crimes previstos no  §1º do artigo 5º desta mesma norma.

Vale conferir que não é obrigatória a repatriação dos valores. Todavia, se este for o caminho, a remessa deverá ocorrer por intermédio de instituição financeira autorizada a funcionar no país e a operar no mercado de câmbio.

Como principais efeitos da adesão ao RERCT — e aqui chegamos ao ponto mais esperado — temos, afora a extinção de todas as obrigações de natureza cambial ou financeira para com a Administração Pública decorrente da titularidade dos ativos declarados, a extinção da punibilidade de diversos crimes, notadamente aqueles de natureza tributária.

Com efeito, os crimes sujeitos aos efeitos da lei estão listados em um rol taxativo previsto no artigo 5º, sendo eles: crimes contra a ordem tributária, sonegação previdenciária, falsidade de documentos público e particular, falsidade ideológica, uso de documento falso, manutenção de depósitos no exterior, evasão de divisas e lavagem de dinheiro, este último apenas quando o objeto do crime forem bens, direitos ou valores provenientes dos demais crimes mencionados.

Abra-se aqui um parêntesis para uma breve reflexão. Salta aos olhos, já à primeira vista, a ausência de um tipo penal que não apresenta qualquer motivo para da lista não constar: o crime de descaminho, previsto no artigo 334 do Código Penal. Por que estaria ele de fora do rol se pela sua essência se assemelha em demasia aos crimes tributários? Se em outras searas recebe tratamento similar ao delito de sonegação, assim como a própria sonegação previdenciária que lá se encontra, por qual motivo não foi inserido na lista?

A resposta vem ao descobrirmos que ele constava do projeto de lei originário mas seu dispositivo, ao lado de outro que contemplava o artigo 21 da Lei de Colarinho Branco, fora vetado pela Presidência tendo em vista que “ampliaria as hipóteses de extinção de punibilidade, acabando por alargar em demasia os efeitos penais da adesão ao Regime”.[1]

Ora, compreende-se tal justificativa no que se refere ao crime previsto na Lei 7.492/86, que em nada se relaciona com os demais; não, contudo, ao crime de descaminho. Pecou em coerência a lei nesse aspecto.

Aliás, no veto presidencial foi excluído também inciso que estendia os efeitos da lei a outros participantes da conduta criminosa no seguinte sentido: “aplica-se [a extinção da punibilidade] a todos aqueles que, agindo em interesse pessoal ou em benefício da pessoa jurídica a que estiver vinculado, de qualquer modo, tenham participado, concorrido, permitido ou dado causa aos crimes previstos no § 1º”. Tal veto foi justificado da mesma maneira por alargar demais os efeitos da lei e ainda por gerar “insegurança jurídica ao beneficiar indiscriminadamente terceiros, destoando dos objetivos da medida”.

É inequívoco que sem essa previsão legal eventuais partícipes ou coautores da conduta criminosa torna-se-ão, de imediato, alvos de investigação tão logo o contribuinte envolvido nos fatos adira ao RERCT. Não há dúvidas de que a Secretaria da Receita Federal fará comunicação da confissão do contribuinte às autoridades competentes para posterior investigação e punição dos demais participantes.

Também para fomentar o debate, vale ressaltar que o legislador previu acertadamente no artigo 10, §2º, que “na hipótese de exclusão do contribuinte do regime, a instauração ou a continuidade de procedimentos investigatórios quanto à origem dos ativos objeto de regularização somente poderá ocorrer se houver evidências documentais não relacionadas à declaração do contribuinte. Isto significa que, na linha de consolidada jurisprudência no que tange à denúncia anônima, a mera declaração do contribuinte com a descrição das condutas supostamente ilícitas e documentos nela contidos não poderão, em caso de exclusão do contribuinte do regime, dar início à inquérito policial ou procedimento investigativo criminal que vise apurar a origem dos valores, exceto se outras provas documentais existirem. 

Seguiu o mesmo raciocínio e foi bem intencionado o legislador ao preceituar que a declaração de regularização do RERCT “não poderá ser, por qualquer modo, utilizada como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal”. Não obteve, contudo o mesmo sucesso, pois deixou de expressamente vedar a utilização da declaração, como única prova, para a instauração de inquérito policial ou procedimento investigativo criminal.

Faltou cuidado, também, ao prescrever sobre os limites de aplicação da lei. Ao início do texto legal, tem-se a informação de que os seus dispositivos não se aplicarão aos sujeitos que tiverem sido condenados em ação penal (artigo 1º e 5º). Por termos tomado conhecimento do veto presidencial no dispositivo legal em comento, consideramos aqui a condenação em primeira instância e não àquela transitada em julgado[2]. Ocorre que mais à frente na lei, o legislador insere como condição para a extinção da punibilidade dos crime ali referidos “o cumprimento das condições antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória. Logo, temos situação esdrúxula em que um acusado pode ver extinta sua punibilidade mesmo se apresentar a declaração logo antes da condenação e o procedimento perante a Secretaria da Receita Federal se encerrar somente na fase recursal de seu processo.

Chama atenção, também, o fato de a novel lei nada falar sobre o procedimento da declaração da extinção de punibilidade dos crimes nela referidos. Será que todo o processamento se limitará à Secretaria da Receita Federal? Qual autoridade será responsável por analisar se o declarante preenche todas as condições a fim de obter a tão esperada extinção de sua punibilidade?

Note-se que não há previsão alguma de participação do Poder Judiciário nesse procedimento, seja mediante uma análise prévia das condições, seja por meio de uma homologação judicial posterior. Pelos ditames legais, a decretação dos efeitos penais da declaração do RERCT não provém de uma decisão judicial. O legislador, de fato, não pretendeu que o Poder Judiciário tomasse sequer conhecimento da suspensão da decisão de extinção da punibilidade. Todo o procedimento, aparentemente, deve ocorrer perante órgão administrativo, sob a orientação de autoridades administrativas, em franca violação ao princípio da reserva de jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Magna). 

Como se vê não são poucas as dúvidas que pairam sobre a nova legislação. Como usualmente ocorre, os dispositivos legais carecem de clareza e maiores detalhes. Por enquanto aconselha-se nada fazer até que a Receita Federal regulamente os dispositivos dentro do prazo previsto de 15 de março do presente ano, para que, com a devida segurança jurídica e distante do campo arenoso que hoje a sustenta, se consiga atingir os tão desejados efeitos da chamada “Lei de anistia”.


[1] http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Msg/VEP-21.htm

[2] http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2016/Msg/VEP-21.htm

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!