Ideias do Milênio

"Através da História, nós, judeus, nunca nos sentimos em casa no mundo"

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31 de dezembro de 2016, 9h00

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Entrevista concedida pelo escritor e pacifista israelense David Grossman ao jornalista Edney Silvestre, para o programa Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

Israel era um país recém-criado, ainda no eco de 6 milhões de mortos no Holocausto, quando ali nasceu o escritor e pacifista David Grossman. A obra dele reflete os sonhos, as guerras, as decepções, as dores e a esperança, desse país e desse povo. David Grossman veio ao Brasil a convite do Fronteiras do Pensamento e do editor Luiz Schwarcz.

Edney Silvestre — O título de seu novo livro em português é O Inferno dos Outros, e ele é bem diferente do título original, que é qual?
David Grossman —
É algo que pode ser traduzido como Um cavalo entra num bar.

Edney Silvestre — Que é uma piada.
David Grossman —
Sim, é o começo de uma piada muito famosa, mas meu editor disse que ela não é muito conhecida aqui, então sugeriu esse título, O Inferno dos Outros, que eu achei adequado à história apesar de preferir o início da piada, porque o livro é sobre um comediante de stand-up. O livro inteiro é uma apresentação de humor num clube decadente em Israel. O comediante é muito agressivo, brutal, sagaz, engraçado… Ele sabe cativar a plateia muito bem, flerta com ela, a elogia, a provoca, e é uma interação muito sofisticada e as regras são conhecidas tanto pelo ator como pelo público. Depois de 20 ou 30 minutos de uma apresentação padrão, com piadas e provocações, de repente alguma coisa explode nele. Isso acontece quando aparece uma mulher muito baixa, quase uma anã, na plateia. Talvez ela tenha até algum transtorno mental. E ela conheceu Dovale na infância num bairro de Jerusalém. Ela olha para ele e não consegue acreditar. E ele, que não a reconhece, começa a sentir que na plateia há alguém mais pesado que os outros, alguém que não o deixará agir livremente. Ele vira para ela e pergunta: “Por que não ri das minhas piadas? Elas são ruins?” E ela responde que sim, que elas são maldosas. Depois ela revela que o conheceu na infância e diz as palavras: “Mas você era um garoto bom.” E essas palavras simples, ingênuas e até inocentes provocam uma reação nele, o fazem explodir como uma rocha explode se você aquecê-la no ponto certo. E, de repente, a verdadeira história da vida dele, a história de algo que aconteceu com ele aos 14 anos, um acontecimento muito incomum, entra em erupção como um vulcão e ele começa a contá-la para a plateia. A história não faz parte da apresentação, ela é sobre o que aconteceu com Dovale quando ele tinha 14 anos numa espécie de acampamento semi-militar para jovens pelo qual todos os israelenses passam. Eu também fui quando tinha 15 anos. Você recebe uma espécie de treinamento militar, como rastejar, se camuflar, atirar… Sei que parece a Coreia do Norte, mas não é tão terrível assim. E, de repente… Foi a primeira vez que Dovale saiu de casa. Ele morava com a mãe e o pai e eles formavam um trio muito simbiótico, que ele chama de Triângulo das Bermudas. De repente, quando ele está pela primeira vez nessa base militar no sul de Israel, um soldado diz que o comandante da base quer falar com ele. Ele corre atrás do soldado, e o comandante da base diz que ele precisa estar às 16h num enterro em Jerusalém. Ele compreende que um de seus pais morreu, mas ninguém lhe diz se foi a mãe ou o pai. Então a história é sobre as quatro longas horas nas quais aos poucos Dovale começa a acreditar que é ele quem vai decidir quem morreu.

Edney Silvestre — Como você vê essa trajetória? Essa estrada trilhada por você e seu país?
David Grossman —
Como posso explicar? O fato de termos um Estado é quase um milagre. O fato de que, três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e, para nós, o fim do genocídio de judeus, nós já tínhamos um Estado independente e soberano com um exército para protegê-lo, economia, cultura, agricultura, indústria e mais tarde alta tecnologia. Eu nunca deixei de dar importância a isso. Sempre achei que foi um milagre oferecido a nós pela História. Não sei se hoje, se a ONU tivesse que votar, aprovaria a criação de Israel.

Edney Silvestre — A fundação do Estado de Israel aconteceu em maio de 1948. Uma resolução da ONU dividiu o então território da Palestina em dois Estados, um árabe e um judeu. A reação árabe foi imediata. Começava o primeiro dentre os diversos conflitos e perdurariam por décadas. A vitória de Israel nesse primeiro embate garantiu a sobrevivência do novo país, mas o resultado acabou semeando mais violência na região, violência que dura até os dias de hoje.
David Grossman —
Apesar de receber vários convites para morar em outros lugares, não quero ir porque Israel é um lugar relevante para mim, e eu quero viver num lugar relevante. Eu poderia facilmente viver nos EUA, na Itália, na Inglaterra… Eu gosto desses lugares, mas eles não são relevantes para mim como Israel é. Talvez por causa dessa relevância eu tenha me tornado mais crítico, porque acho que, principalmente depois da guerra de 1967, quando Israel ocupou territórios imensos, maiores do que a área do próprio Estado, principalmente territórios palestinos, nós nos vimos numa situação que se torna cada vez mais perigosa para a existência de Israel e também para a democracia, para a nossa dimensão democrática. E eu vejo… Não é fácil expressar, mas eu vejo como viver toda a sua vida, geração após geração, em guerra limita sua visão e como o deixa desesperado, apático e até fanático, porque, quando a situação se torna muito complicada, as pessoas apelam a soluções fanáticas, que são muito simples e simplificam a realidade.

Edney Silvestre — E você é pacifista.
David Grossman —
Essa é a questão. Pacifista é alguém que nunca portará uma arma. Eu portei armas. Participei de guerras, assim como meus filhos e meu pai. Eu não ia querer estar em Israel sem um exército forte para me proteger, mas acho que só o exército não dá conta da complexidade de nossa presença lá. Precisamos de um exército forte e precisamos desesperadamente de paz. Apenas um exército forte não será suficiente, porque mais adiante haverá um poder mais forte do que o nosso, ou mais astuto, ou mais louco ou fanático, sei lá. Precisamos de um exército forte, mas também precisamos neutralizar a volatilidade da situação e criar uma situação na qual Israel e Palestina convivam como vizinhos sem um muro separando os dois. Se precisar do muro, tudo bem, mas quero o maior número de portões possível, para permitir o intercâmbio de ideias, pessoas e mercadorias, porque somente se nos integrarmos ao Oriente Médio, somente se encontrarmos uma forma de respeitar nossos parceiros palestinos, só se eles sentirem que sua vida não corre perigo e é limitada pela ocupação, só se eles recuperarem sua dignidade enquanto seres humanos e enquanto povo, só assim teremos Israel como deveria ter sido. Israel deve ser o lar do povo judeu, nossa nação. Através da História, nós, judeus, nunca nos sentimos em casa no mundo. Mesmo nos lugares mais hospitaleiros. Sempre corremos o risco de sermos expulsos, perseguidos e massacrados. Israel deve nos dar essa sensação de existência sólida. Talvez seja difícil para você como brasileiro entender isso, porque você nasceu numa nação gigantesca. Por São Paulo, onde estamos, passam cerca de 20 milhões de pessoas por dia! Israel inteiro tem oito milhões de habitantes. Portanto a fragilidade desse país e a falta de confiança no futuro são tão dominantes que talvez por isso sejamos tão agressivos quando somos ameaçados, porque achamos que vivemos na beira do abismo. A paz nos permitirá ser mais confiantes, mais concentrados em nossa vida, em nossa casa. E tenho certeza de que assim a relação entre nós e nossos inimigos atuais e parceiros do futuro, os palestinos, vai melhorar muito. Não faltam motivos para acreditarmos que esses dois povos, israelenses e palestinos, possam colaborar e trabalhar juntos como vizinhos.

Edney Silvestre — Nesse cenário, os assentamentos seriam uma situação ou condição positiva para a paz ou uma das condições mais difíceis para a paz?
David Grossman —
Os assentamentos são um erro histórico. Além de sua existência ser um ponto de interrogação, eles fazem com que todo o país seja visto como um ponto de interrogação. Eles põem em dúvida a legitimidade de Israel e foram criados deliberadamente pelo falecido Ariel Sharon em lugares que impedem qualquer possibilidade de paz viável ou razoável entre os dois Estados. Acho que a maioria dos assentamentos continuará onde está. Eles não serão removidos. Não há apoio suficiente da opinião pública para uma remoção maciça de mais de 15 mil colonos das áreas mais marginais e afastadas. Nem são assentamentos, são colônias pequenas. Elas terão de ser removidas em qualquer acordo futuro. Mas os grandes assentamentos vão permanecer. Não sei como funcionarão em tempos de paz. Serão embaixadores da boa vontade ou um obstáculo? Eu não sei. Não é ceticismo. Eu realmente não sei como o clima de paz os afetará e qual será o interesse deles. Hoje eles são um grande obstáculo à paz, mas também há obstáculos do outro lado. Os palestinos exigem até hoje a implementação do que chamam de direito de retorno de milhões de palestinos ao território atual de Israel, o que também é uma sugestão impossível, pois levaria ao colapso de Israel. Israel não pode receber tantos palestinos que são hostis a Israel. A razão nos mostra que isso não vai funcionar. Então há muitos problemas e motivos para desespero, e eu combato esse desespero pessoalmente e também numa escala mais ampla. Pessoalmente, eu acho humilhante ficar desesperado, declarar que você não pode fazer nada, que é apenas uma vítima passiva da situação. Não somos passivos. Temos um exército forte, espaço para manobra, somos um país próspero, nós podemos iniciar. E, na escala mais ampla, se você não age como fazemos há tantos anos… São 50 anos ocupando terras palestinas, algo inimaginável. Cinquenta anos. Se você não age e vai ficando cada vez mais desesperado, mais apático, começa a se sentir vítima da situação. Mas o objetivo da criação de Israel era que nunca mais nos tornássemos vítimas. Isso estava no cerne da criação de Israel: nunca mais sermos vítimas.

Edney Silvestre — Uri era filho de David Grossman. Morreu na guerra contra o Líbano em 2006. O rapaz comandava um tanque e completaria 21 anos. Um míssil atingiu o veículo duas semanas antes do aniversário. O pai, muito abalado, leu um texto na cerimônia em que sepultou o filho. “Nós, nossa família, perdemos esta guerra. O Estado de Israel fará agora um exame de consciência. Nós nos dobraremos na dor envolvidos em um imenso amor que sentimos de tantas pessoas que em sua maioria, não conhecemos. O impacto da morte do seu filho durante a guerra teve que efeito em você e em seu ponto de vista sobre a paz?
David Grossman —
Eu já era pacifista décadas antes de Uri morrer na guerra contra o Líbano há dez anos. Isso não mudou minhas ideias, mas me fez mudar como pessoa. Mas minhas ideias não mudaram, e eu insisto que as pessoas argumentem com minhas ideias, não com meus sentimentos. Eles são pessoais.

Edney Silvestre — O que um intelectual, um escritor em Israel, pode fazer pela paz?
David Grossman —
Os acordos finais serão redigidos por advogados, não por poetas ou escritores, mas o que nós podemos fazer talvez seja, através da forma como escrevemos, lembrar que toda realidade consiste em diferentes pontos de vista e não só na forma como nós vemos a situação. Se quisermos estar em contato com a realidade, temos que ver a nossa forma, que é natural, mas também a forma como o inimigo vê o conflito. Sem isso não estaremos em contato com a realidade, mas em contato com nossos pesadelos ou desejos, o que não basta. Os escritores, com sua diversidade de estilos, com sua capacidade de escolher diferentes pontos de vista, ao insistir em nuances, o que talvez seja o mais vital na literatura — insistir nas nuances de toda situação humana… Quando se está numa situação política de impasse, você vai aos poucos apagando as nuances, começa a pensar de forma muito rígida, sem nuances, sem delicadezas. Então, mesmo sem escrever sobre política, mesmo escrevendo uma história totalmente íntima, que envolva um homem e uma mulher, uma história de amor, ciúmes, paixão e tal, com o simples ato de escrever algo preciso e com nuances num mundo tão rígido, um mundo que está cerrado como um punho, acho que já estamos fazendo algo para lembrar as pessoas que há outra opção, que não estamos fadados a viver a vida congelada que vivemos.

“Eu escrevo. Eu imagino. O ato de imaginar me alivia. Já não fico paralisado frente ao predador. Eu invento personagens. Quando vejo, estou cavando histórias do gelo que rodeia as pessoas. Mas, no fim, talvez seja a mim que desenterro.” – David Grossman

David Grossman — Pertenço a um pequeno grupo de escritores em Israel que estão envolvidos na política. Nós não pertencemos a nenhum partido, mas nós reagimos à situação e escrevemos artigos políticos nos jornais. Nos artigos políticos que eu escrevo, tento insistir nas nuances para lembrar que há outra forma de enxergar essa situação e que, como exercício mental, também temos de ver nosso conflito com o olhar de nosso inimigo, porque é o inimigo que vê em nós coisas que preferimos não ver. Não queremos saber quais são os processos destrutivos pelos quais passamos. E dizemos que todos os defeitos dos guerreiros, dos invasores, são coisas que adquirimos apenas durante a guerra. Mas talvez o inimigo veja antes de nós até que ponto esses defeitos do guerreiro, do invasor, se infiltraram em nossos órgãos internos.

Edney Silvestre — E, para terminar, qual é a esperança que você tem para si mesmo, para a sua vida e para a vida de seus filhos, de seus netos e de seus bisnetos?
David Grossman —
Eu desejo que eles vivam numa realidade melhor do que a atual. Desejo que eles vivam e sintam o gosto da paz. Sou muito realista em relação à minha visão da paz. Não tento retratar uma imagem de israelenses e palestinos andando de mãos dadas em direção ao pôr do sol. Não é um filme de Hollywood. Mas eu acredito em pequenos passos em direção à paz. Haverá pequenas iniciativas privadas, como um mecânico israelense e um palestino abrindo uma oficina em algum lugar, ou haverá escolas para crianças israelenses e palestinas, uma orquestra, um teatro, um time de futebol conjunto ou Israel jogará contra a Palestina e de preferência ganhará. Essas pequenas coisas da vida que formularão de uma maneira muito simples o poder do bom senso, da conciliação e das coisas boas que existem em boas vizinhanças. Todas essas coisas que nós nunca vivenciamos. Acho que só então nós teremos a chance de viver, não apenas sobreviver entre uma catástrofe e outra, mas viver uma vida plena com todas as suas camadas, sem o medo constante do futuro. Ter uma vida. Isso é pedir muito? Não. Acho que é possível. 

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