Opinião

O processualista-procedimentalista, tal como o conhecemos hoje, deixará de existir

Autor

  • Eduardo José da Fonseca Costa

    é juiz federal mestre e doutor em Direito (PUC-SP) pós-doutorando pela Unisinos e presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Diretor da RBDpro. Membro do IBDP do IPDP do IIDP e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

29 de dezembro de 2016, 5h47

É notório que a ciência processual está em crise, pois ainda gira ao redor de temas que, embora fixados pela tradição, se encontram superados e mesmo sem sentido no horizonte atual. Aliás, nem mesmo a tradição é acatada, pois, no Brasil — onde as origens romanas, canônicas e mormente luso-medievais do seu processo são ignoradas pela grande maioria com olímpico orgulho —, as análises histórico-dogmáticas dos institutos são de triste pouquidade, como se cada novo texto jurídico-positivo estabelecesse um marco zero de sentido desenraizado de qualquer temporalidade; quando muito os livros descrevem protocolarmente no introito os antecedentes do instituto analisado, sem que dessa descrição solta se possa extrair qualquer subsídio material útil para as conclusões da obra. Daí por que a crise já se inicia na inconsciência da historicidade em que estão mergulhados os processualistas e os institutos processuais.

Essa crise se reflete claramente, outrossim, no tédio das constantes repetições que ocorrem em geral nos trabalhos teórico-acadêmicos, nas obras prático-profissionais, nas atividades professorais e até mesmo nas decisões judiciais sobre matéria processual. É inadmissível, por exemplo, que nos programas de especialização, mestrado, doutorado ou pós-doutorado não haja abertura para ensaios criativos de reengenharia sócio-jurídica, em que o estudioso do processo, funcionando como uma espécie de “assistente técnico da democracia”, possa metodologicamente arquitetar alternativas institucionais de lege ferenda e, com isso, espessar o estoque de projetos inteligentes à disposição do Poder Legislativo (o que decerto exigiria dele, dentre outras coisas, uma sólida formação em pesquisa empírica, que tanta falta fez aos respeitáveis artífices do novo CPC, perdidos em um achismo de soluções intuitivas sem corroboração empírico-científica).

Fugir dessa rasidade cotidiana que assolapa o país exigiria, porém, uma mudança de quem se ocupa com a processualística. Somente uma imersão no todo da cultura circunjacente e uma consciência do ambiente científico total poderão levar o processualista a mudar o seu comportamento e a ocupar novas funções.

Em parte, será das certezas de seu malfazejo ensimesmamento e de sua arrogante autossuficiência que ele poderá acordar para a necessária mudança. O próprio processo — tanto civil quanto penal — foi degradadamente independentizado do seu ser constitucional e, em consequência, de sua institucionalidade garantística, tendo sido reduzido à deprimente condição de instrumento dúctil a serviço da jurisdição; ou seja, embora o processo seja instituto de Direito Constitucional e, portanto, objeto de uma constitucionalística especializada, esse seu ser autêntico tem sido autoritariamente velado a fim de que seja ele desconhecido como garantia das partes contra excessos e desvios do poder jurisdicional. Logo, não pode haver processualística que não se anteceda de uma constitucionalística, nem processual que não se implique interdogmaticamente em um constitucional. Não se é um processualista se também não se é um constitucionalista, pois.

No entanto, mesmo que o processualista se descubra como um interjurista, como um constitucionalista-do-devido-processo-legal, é no reconhecimento interdisciplinar da validade de temas de outras ciências — jurídicas e não jurídicas, dogmáticas e não dogmáticas — que ele poderá sair do seu nicho confortável para ampliar receptivamente a sua informação. Afinal, o domínio do fenômeno processual é sustentado por camadas imbrincadas e profundezas subjacentes ao plano epidérmico da mera normatividade. Assim sendo, o jurista deverá colocar-se em um duplo desafio: de um lado, terá de arriscar-se em escolhas complementares que aumentem a sua forma de conhecimento; de outro, terá de lutar para que a pluralidade de conhecimentos adquiridos não lhe torne superficial o discurso (o que talvez lhe seja possível por meio de uma sólida formação filosófica, sempre unificadora e unificante, especialmente em matérias como epistemologia, lógica e linguística).

Nos dias atuais, é absolutamente impossível, por exemplo, enfrentar uma interrogação pelas causas e pelas consequências antidemocráticas do protagonismo judicial sem que os processualistas, na sadia pretensão de misturar-se com parceiros bem informados, dialoguem com constitucionalistas, jusfilósofos, cientistas políticos, sociólogos do Estado, economistas, parlamentares, administradores públicos etc., absorvendo irrecusavelmente repertórios linguístico-conceituais diferentes do usual, aumentando a sua carga de conhecimento, trocando resultados, somando competências e explorando oportunidades conjuntas. Tudo dentro de uma comunidade de diálogo, discussão e compartilhamento, que em longas etapas será produzida pela polêmica e pelas controvérsias interdisciplinares (interdisciplinares, mas não “transdisciplinares”, pois jamais se suprimirá, mediante qualquer síntese dialética superior, aquilo que constitui o “propriamente processual”).

Da mesma forma, é inaceitável hoje crer que as ideologias político-sociais têm um programa funcional incompleto de relação entre o Estado e a sociedade, ou seja, um projeto de Estado-administração para os administrados, um projeto de Estado-legislação para os legislados, mas não um projeto de Estado-jurisdição para os jurisdicionados. A jurisdição e, por conseguinte, o processo jurisdicional não são bacteriologicamente assépticos. Uma boa parte do que se plasma nos discursos doutrinário, legislativo e jurisprudencial em temas processuais não deflui de concepções pretensamente “técnicas”, mas de indisfarçáveis opções político-ideológicas, as quais, em maior ou menor medida, são determinantes para a configuração de um juiz mais ou menos ativo probatoriamente. É plenamente possível identificarem-se uma “direita” e uma “esquerda” entre os processualistas e, em meio a eles, portanto, correntes de pensamento rotuláveis de “socialismo processual” (do juiz-Robin-Hood), “fascismo processual” (do juiz-general-linha-dura), “liberalismo processual” (do juiz-convidado-de-pedra), “social-liberalismo processual” (do juiz-manager), “social-democracia processual” (do juiz-democrático-igualitarista") etc. Daí a ingente necessidade de desenvolvimento de uma ciência política do Direito Processual, que auxilie no desmascaramento de visões de mundo parciais e manipuladoras ocultadas em discursos dissimuladamente científicos e imparciais.

Logo, o processualista deixará de ser apenas um especialista com alguma titulação em ciência jurídica em sentido estrito e desenvolverá um modo epistemológico mais complexo de produzir e confrontar as suas razões. Mais: desenvolverá uma maneira mais ativa de interlocução acadêmica, tornando-se um verdadeiro “poliperito” (Ernildo Stein), capaz de agregar informações e emitir juízos mais integrados sobre questões jurídico-processuais.

No caminho para essa inovação omniabrangente, os juristas do processo observarão, de um lado, que o estilo de trabalho no universo das ciências humanas e sociais passou por transformações devidas principalmente ao surgimento de novos instrumentos da era da informação e da tecnologia, que permitem uma circulação informacional ilimitada em velocidade vertiginosa; de outro, notarão uma multiplicação de novos espaços teóricos e temas que foram surgindo na cultura, em especial a partir de novas formas de integração trazidas pela globalização.

Tem-se percebido, por exemplo, que, em maior ou menor medida, todos os países têm desafios em relação à morosidade na entrega da tutela jurisdicional e têm se inspirado em experiências vizinhas para o enfrentamento desse problema, o que tem gerado uma espécie de “globalização dogmático-processual” ou “mundialização dos problemas judiciários”. Não sem razão blocos de integração continental como a comunidade europeia editam resoluções sobre políticas organizativo-judiciárias e jurídico-processuais. Isso tem provocado, dentre outras coisas, um aumento no interesse pelo Direito Comparado, no fluxo de intercâmbios internacionais entre juízes, na importância das associações internacionais de processualistas (Instituto Pan-Americano de Direito Processual, Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, Associação Internacional de Direito Processual, Unidroit etc.) e em um engajamento transnacional de experimentação de práticas judiciárias gerencialmente exitosas. Tudo isso sem falar do crescimento de importância tanto do Direito Processual Internacional (como cooperação judiciária internacional) quanto do Direito Processual Internacional (caso do processo junto às cortes internacionais), o que obriga o processualista a inteirar-se, por exemplo, dos Direitos Internacionais Público e Privado. Aliás, em tempos de glorificação jurisprudencial, cumpre estar atento ao futuro grau de vinculatividade que os precedentes dos tribunais internacionais fatalmente exercerão sobre os tribunais e os direitos internos nacionais, mormente em matéria de direitos humanos processuais e de garantias processuais de direitos humanos (o que colidirá com a forma flexível — quase desdenhosa! — como lidam com o problema da imparcialidade os tribunais brasileiros, os quais ainda toleram irresponsavelmente que o juiz do inquérito instrua o processo, que a sentença seja proferida pelo juiz que presidiu a instrução, colheu a prova ilícita ou ordenou a prova de ofício etc.). Disso tudo se percebe que o jurista do processo há de ser cada vez mais um cosmopolita, capaz de comunicar-se com os demais concidadãos do mundo em diversos idiomas e sob um código teórico-linguístico homogeneizado.

Desse modo, o processualista é empurrado para uma “destruição criadora” de si próprio, para uma nova plasticidade intelectual quase renascentista, para uma ampliação cognitiva de caráter combinatório, que lhe vai impondo um tipo de especialização agressiva, na qual se agregam saberes contemporâneos de áreas antes desconsideradas por desprezo ou ignorância. Exemplo relevante são a Psicologia Cognitiva e a Economia Comportamental, que, fusionadas a partir dos estudos pioneiros dos psicólogos israelense Daniel Kahnemann e Amos Tversky, hoje revolucionam no mundo anglo-saxão a teoria da decisão, radiografando empiricamente irracionalidades e quase racionalidades decisórias sistêmicas [cognitive biases] e desenvolvendo pragmaticamente tecnologias de evitação ou mitigação desses desvios cognitivos [debiasing methods]. Isso tem gerado novíssimas e empolgantes disciplinas: no plano do Direito em geral, a chamada Behavioral Law & Economics (que tem se espalhado como disciplina autônoma nos cursos de graduação e pós-graduação das principais universidades inglesas e norte-americanas pelas vozes de eminentes pesquisadores como Jeffrey J. Rachlinski, Chris Guthrie e Cass R. Sunstein); no plano do Direito Processual, a chamada Behavioral Economics of Procedure Law, cujo aporte metodológico tem se mostrado promissor no estudo do comportamento judicial, na detecção de suas quebras inconscientes de imparcialidade e em uma engenharia procedimental desenviesante, que tem demonstrado os acertos do sistema adversarial.

Mas nada adiantará se o diálogo não começar pelos próprios processualistas entre si, fora das suas trincheiras de ortodoxia e das suas presumidas fortalezas universitárias, aparentemente democráticas, mas em cujos programas de mestrado e doutorado só ingressam o candidatos-papagaio que reproduzem o discurso esperado sempre igual (aliás, essa é uma das fontes-mor de perpetuação da trivialidade: em troca de títulos acadêmicos, pós-graduandos vendem as suas almas a professores inseguros ávidos por fidelidade acrítica).

Por isso, talvez seja esse, antes de qualquer interdisciplinaridade, o primeiro e inadiável diálogo: uma aproximação simples e desarmada entre antagonistas no processo (hermeneutas-transcendentalistas, garantistas-ativistas, pontianos-barboseanos, direitistas-esquerdistas, anglófilos-eurocentristas etc.), a qual já provocaria uma intensa atividade de revisão de problemas, de análise de formas de abordagem, de comparação de posições, de aproximação de repertórios conceituais e de comparação de linguagens teóricas (o que — reconheça-se — não é fácil, pois exige a superação de egos, orgulhos, vaidades, hábitos, convicções, ideologias, temperamentos, rancores, preconceitos, biografias, fidelidade a autores, regionalismos, lógicas departamentais etc.).

É de mister ressaltar que esse movimento centrípeto de diálogo interposicional não deslegitima o movimento centrífugo de proliferações associativas ao qual se assiste hoje no Brasil. Em um país de dimensões continentais, é tão inevitável quanto desejável que novas entidades congreguem sub-interesses dogmático-processuais singulares, os quais jamais poderiam ser adequadamente aprofundados em um espaço tão amplo quanto o glorioso e pioneiro Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Nesse sentido, são muito bem-vindos os institutos de processualistas locais — por exemplo, Instituto Potiguar de Direito Processual Civil (IPPC), Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) —, de interessados em processo constitucional — por exemplo, Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (ABDPC) —, de refratários ao hiperpublicismo processual — como a Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) —, de estudiosos de sub-ramos do processo — por exemplo, Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal (IBRASPP). De qualquer forma, o imprescindível é que todas essas associações não se tornem irmandades fechadas em circunscrições bem delimitadas e passem a relacionar-se interinstitucionalmente a bem do engrandecimento da ciência processual brasileira.

De tudo o que se expôs, uma coisa é certa: o processualista-procedimentalista, tal como o conhecemos hoje, deixará de existir. É bastante provável que em futuro não muito distante se tenha de proceder nas faculdades de Direito a uma divisão docente de tarefas: 1) um processualista-prático, profissional experimentado, que ensine pragmaticamente as fórmulas bem-sucedidas de uso estratégico-forense das microgarantias procedimentais infraconstitucionais (o que nada tem a ver com os burocráticos núcleos de prática forense, que se cingem a uma “cartilha Caminho Suave” de redação de peças); 2) um processualista-teórico, cientista embasado, que ensine os pilares analítico-hermenêuticos do processo a partir de sua macroinstitucionalidade garantístico-constitucional. Todavia, este cientista, polifencudado, terá de expelir de si mesmo algo novo: talvez mais do que um constitucionalista-processualista, para além de um interjurista, um verdadeiro humanista-polímata do devido processo legal.

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