Opinião

Estados em calamidade e a necessidade de um colegiado de governadores

Autores

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

  • Tarcísio Diniz Magalhães

    é professor de Direito e Política Tributária e pesquisador pós-doutor na Faculdade de Direito da Universidade McGill.

  • Marina Soares Marinho

    é sócia do Coimbra & Chaves Advogados professora de Direito Tributário e Financeiro da UFMG e da IEC/PUC/MG doutoranda e mestre em Direito Tributário pela UFMG.

28 de dezembro de 2016, 14h38

Como já noticiado, se algo não for feito urgentemente, nossa frágil federação chegará à sua completa exaustão (ver aqui, aqui, aqui e aqui). Como muitos advertem[1], já se caminhava a passos largos, desde a Constituição de 1988 (contrariamente ao seu intento democrático-descentralizador)[2], para a supressão da autonomia de estados e municípios, frente ao poderio autoritário da União. Uma crise fiscal sem precedentes[3] está a escancarar o fato de que entes federados menores foram colocados de joelhos, à mercê de um poder central que não tem (nem nunca teve) interesse algum em promover a coesão interfederativa.

A ideia constitucional de uma “união de Estados” vem sendo substituída pela contraditória imagem de uma “nuvem de poder”, que promove, por vezes, a “desunião” (“dividir para conquistar”). Basta ver que o governo federal, distante da realidade do país, enclausurado em Brasília, simplesmente optou por se manter impávido e assistir de camarote ao Nordeste e ao Sudeste se digladiarem em uma guerra fiscal rumo ao fundo do poço. Bem assim, ao quebrar estados e municípios, a União cria relações de dependência e subordinação, no claro propósito de preservar sua eterna posição de supremacia, colocando-se como única saída para aqueles que querem se salvar. Às subunidades, resta nada mais do se socorrerem nos braços da “mãe-madrasta”, implorando de pires na mão.

Exemplos não faltam de como a União promove, a todo tempo, desequilíbrios federativos, o que já pudemos mencionar em textos anteriores, aqui na ConJur. Para afastar dúvidas, cabe mencionar três cases recentíssimos, julgados pelo STF: (1) a tentativa frustrada da União de se apropriar dos recursos obtidos com a “multa de regularização” (lei de repatriação)[4]; (2) índices exorbitantes de correção da dívida dos estados com a União (Selic capitalizada); e (3) a histórica e inconstitucional mora na compensação dos estados pelo deficit gerado pelas exonerações concedidas ao ICMS (principal fonte arrecadatória estadual) no que tange à exportação de produtos semielaborados (defasagens da Lei Kandir).

Com relação às defasagens da chamada Lei Kandir, mesmo segundo as estimativas mais pessimistas, o valor das perdas impostas pela União ao estado de Minas Gerais ultrapassa a cifra dos R$ 80 bilhões. Mesmo assim, a União insiste em cobrar uma pretensa dívida do estado de cerca de R$ 70 bilhões e, para coagir, chega a ameaçar reter repasses constitucionais[5].

Tal quadro deplorável se agrava ainda mais quando consideramos que os serviços mais essenciais à população, e que também são os mais dispendiosos (saúde, segurança e educação) ficam, em grande parte, a cargo dos estados e municípios, cujos servidores auferem remunerações sensivelmente inferiores àquelas pagas ao funcionalismo federal. Em alguns casos, há ainda dívidas financeiras que se arrastam de um governo a outro[6]. Se mesmo em tempos de “vacas gordas”, isto é, durante a alta das commodities, ficaram obrigações pendentes do governo anterior, o que dizer do atual cenário de turbulência econômico-financeira que atinge o país?

Desde 2008, a economia mundial sofre com aquela que é reconhecida como a maior crise do capitalismo desde 1929[7]. Esse processo catastrófico se deve a uma multiplicidade de fatores, residindo sua principal causa no colapso do sistema financeiro americano e seus efeitos em cascata, irradiados pelo globo[8]. Vários países sofrem até hoje as consequências, como a recessão, a estagnação ou o crescimento baixo. Basta correr os olhos pelos noticiários, que retratam o péssimo quadro econômico ou mesmo social/político de nações vizinhas (como a Argentina)[9] ou pertencentes à Europa (Grécia, Portugal, Itália)[10].

Por certo período, o Brasil conseguiu se esquivar de alguns efeitos da crise internacional. No entanto, a dependência do mercado de commodities nas exportações nacionais (mercado que, durante muito tempo, contou com cotações infladas de seus produtos)[11], aliada a uma política monetária expansionista, fez com que a economia nacional não conseguisse resistir ao horizonte de recessão.

E qual foi a resposta da União? Honrando nossa tradição centralizadora, o governo central optou, mais uma vez, por se desincumbir de suas responsabilidades como ente maior da federação, jogando a conta nos ombros dos demais. Ao conceder inúmeros benefícios fiscais, a União promoveu uma drástica redução das receitas estaduais e municipais, o que foi apontado, recentemente, por José Maurício Conti (colunista da ConJur).

Diante de uma crise que abrange o mercado financeiro e setores da economia muito vinculados a exportações, competia ao governo federal definir os caminhos a serem trilhados para que a economia do país continuasse crescendo, dada sua competência constitucional. O que se constatou, porém, foi que as medidas colocadas em prática se mostraram desastrosas, colaborando para agravar o quadro internacional de estagnação.

Tudo isso explica por que os entes menores passaram a experimentar um declínio vertiginoso em seus ingressos, notadamente naquilo que é repassado através dos Fundos de Participação, e que constitui grande parcela das receitas de estados e municípios. É importante lembrar que, por expressa disposição constitucional (artigo 173, caput), a exploração direta de atividade econômica pelo poder público só é permitida em casos de segurança nacional e interesse coletivo, restando estreitada a obtenção de receitas originárias. Tomando as receitas derivadas, estados e municípios possuem reduzido poder de tributar, já que não podem fazer como a União, que simplesmente “cria” novas exações, por meio do exercício de sua competência tributária residual (artigo 154, I; artigo 195, parágrafo 4º). Nem mesmo a emissão de moedas está disponível aos governos estaduais e municipais (artigo 21, VII) e a obtenção de empréstimos claramente não se mostra adequada, nem é legalmente possível, à luz das restrições postas pela Lei de Responsabilidade Fiscal. O somatório geral revela que os entes subnacionais se encontram imobilizados pelos efeitos de um cenário que não causaram, sequer podendo fazer algo a respeito, a não ser cortar despesas fundamentais, sacrificando sua própria capacidade operacional.

Foi exatamente o que tiveram de fazer muitas unidades, reféns das políticas econômicas da União. O Rio de Janeiro, por exemplo, já não tem condições de pagar pensões, e hoje muitos fluminenses passam necessidades. Isso levou o então governador em exercício a expedir o Decreto 45.692/16, para tornar pública a existência de um “estado de calamidade pública, no âmbito da administração financeira”. Pela mesma estrada, seguiu o Rio Grande do Sul, que soltou há pouco tempo o Decreto 53.303/16, declarando o “estado de calamidade financeira no âmbito da Administração Pública Estadual”. Em último lugar, veio Minas Gerais, cujo governador também se viu forçado a reconhecer, por meio do Decreto 47.101/16, o inelutável: uma “situação de calamidade financeira no âmbito do Estado”. Mas não só. Noticia-se que outros 14 estados, dos mais diversos partidos políticos, manifestaram intenção semelhante (ver aqui, aqui e aqui), e muitos são os municípios que já o fizeram[12].

É patente a situação de penúria enfrentada pelas unidades federadas, que, por um lado, encontram-se obrigadas a obedecer limites fiscais rígidos e prestar serviços fulcrais à comunidade e, por outro, estão impossibilitadas de gerar novas fontes de receita, tendo suas verbas constantemente diminuídas por comportamentos da União.

Nesse contexto, uma possível alternativa estaria na constituição de um colégio de governadores, por meio do qual os estados federados poderiam procurar dirimir suas diferenças, construindo consensos e explicitando dissensos[13]. Uma espécie de plataforma para que pudessem alinhar posições, articulando-se politicamente, para, só então, conseguirem fazer frente ao imenso poder federal. A vantagem está em protagonizar algo histórico para este país, que tanto precisa de soluções inovadoras e audaciosas. A oportunidade que hoje em dia se apresenta é única, seja em razão do acirramento da crise e das disputas, seja pelo exitoso alinhamento alcançado pelos estados nas últimas batalhas travadas contra a União. Vem muito bem a calhar a criação de tal fórum, para afirmação plena de gestores e procuradores estaduais, com vistas à retomada do ideal igualitário, fraterno e solidário do federalismo cooperativo.


[1] Cf., por todos, ARRETCHE, Marta. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2012.
[2] Cf. FORTES, Gabriel Barroso; MORAES, Filomeno. Federalismo e democraciaRevista de Informação Legislativa, v. 53, n. 211, p. 199-226, jul./set. 2016. 
[3] A crise fiscal em âmbito estadual não é, nem de longe, um privilégio do Brasil, sendo também verificada e estudada como um dos mais difíceis desafios enfrentados por Estados federais na contemporaneidade. A propósito dos EUA, ver When States Go Broke: The Origins, Context, and Solutions for the American States in Fiscal Crisis (Cambridge: Cambridge University Press, 2012), organizado por Peter Conti-Brown e David A. Skeel Jr.
[4] Por meio de uma eficiente atuação coordenada entre várias procuradorias estaduais, foi possível obter, em pouco tempo, liminares determinando à União que fizesse o depósito em juízo dos valores em disputa, conforme bem relatado pelo procurador-geral de Pernambuco, César Caúla, em artigo publicado na ConJur.
[5] A LC 87 (Lei Kandir) estipulou um sistema de ressarcimento que vigorou até 2003 (incluindo alterações da LC 102 e LC 115). A partir de 2004, os valores a serem entregues aos Estados seriam consignados na lei orçamentária, vale dizer, não foram previamente definidos. Com isso, os Projetos de Lei Orçamentária relativos aos exercícios de 2004, 2005, 2006 e 2010 foram enviados pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional sem previsão de recursos para essa finalidade, os quais somente foram incluídos durante a tramitação no Congresso Nacional. A EC 42, de 19/12/2003, inseriu o artigo 91 do ADCT e previu que, até que fosse editada lei complementar tratando do ressarcimento, ficaria valendo o sistema de entregas previsto na Lei Kandir. A partir de 2004, as transferências foram feitas de forma conjugada, dando cumprimento à transição definida no parágrafo 3º do artigo 91 do ADCT e, ainda, por meio de auxílio financeiro com o objetivo de fomentar as exportações no país (leis próprias editadas). O STF, no julgamento da ADO 25, no dia 30/11/2016, declarou a mora da União quanto à edição da lei complementar de que trata o artigo 91 do ADCT, fixando o prazo de 12 meses para que seja sanada a omissão, estabelecendo também que caso isso não ocorra, caberá ao Tribunal de Contas da União apurar o montante devido anualmente a ser transferido aos Estados.
[6] Como ocorrido em Minas Gerais, onde o cancelamento de mais de R$ 1 bilhão de empenhos, sem fundamentação (para evitar a ultrapassagem do limite de “restos a pagar” da Lei de Responsabilidade Fiscal), provocou o correspondente enxugamento de liquidez em 2015. O balanço geral foi aprovado pelo Tribunal de Contas local, uma vez que seria inadmissível responsabilizar o atual gestor por atos que não deu causa (princípio da intranscendência). Diante das dificuldades financeiras, mesmo em um período de alta das commodities (e Minas Gerais é, sobretudo, um Estado exportador de commodities), o governo anterior, ainda, para pagar a folha de pagamentos, levantou mais de R$ 3,5 bilhões que estavam depositados nos fundos de previdência dos servidores públicos.
[7] O que foi admitido até mesmo pelos mais ferrenhos defensores do capitalismo de livre mercado, como é o caso do jurista e economista liberal clássico Richard A. Posner, em seus livros sequenciais A Failure of Capitalism: The Crisis of ‘08 and the Descent into Depression (Cambridge: Harvard University Press, 2009) e The Crisis of Capitalist Democracy (Cambridge: Harvard University Press, 2010).
[8] Nesse sentido, vale a leitura do excelente texto do ex-ministro das finanças da Grécia Yanis Varoufakis, no instigante The Global Minotaur: America, Europe and the Future of the Global Economy (2ª ed. Londres: Zed, 2013.
[9] Dados do FMI preveem um decréscimo de 1,76% do PIB este ano.
[10] De acordo com o Banco Mundial, a Grécia encontra-se em recessão desde 2008, com exceção do ano de 2014 em que houve um crescimento de meros 0,7% do PIB, mas com uma retração de -4,3% em 2009, -5,5% em 2010, -9,1% em 2011, -7,3% em 2012, -3,2% em 2013 e -0,2% em 2015; a Itália decresceu -5,5% em 2009, cresceu 1,7 em 2010, 0,6% em 2011, voltou a decrescer -2,8% em 2012, -1,7% em 2013, -0,3% em 2014 e voltou a crescer míseros 0,8% em 2015; Portugal decresceu -3,0% em 2009, cresceu 1,9% em 2010, voltou a decrescer -1,8 em 2011, -4,0% em 2012, -1,1% em 2013, e cresceu 0,9% em 2014, e 1,5% em 2015.
[11] Vide preços do açúcar, ferro e soja, conforme levantamento do Banco Central Europeu.
[12] A exemplo de Divinópolis (MG), que decretou “estado de calamidade financeira” (Decreto 12.350/16), e Sete Lagoas (MG) e Cubatão (SP), que decretaram “calamidade financeira na área da saúde pública” (Decreto 5.518/16 e Decreto 10.483/16, respectivamente).
[13] A proposta se aproxima do esquema federal em vigor na Alemanha, o qual tem apresentado resultados infinitamente superiores aos nossos. No Brasil, o órgão representativo da federação, o Senado Federal, inspirado nos EUA, é integrado por senadores eleitos que, não raras vezes, sequer possuem alguma ligação partidária ou proximidade ideológica com o governante estadual. Diferentemente, na Alemanha, nos deparamos com um Conselho Federal, que desempenha funções análogas a de um Senado, porém sendo composto de representantes dos governos dos estados. De fato, os alemães rejeitaram a implementação de uma casa legislativa nos moldes do Senado americano (ou brasileiro), preferindo um modelo institucional fundado na ideia de “condomínio cooperativo”, segundo a qual busca-se a formação de uma política conjunta, a partir da concretização da igualdade entre estados e União. Para um profundo estudo comparado entre esses dois modelos, cf. DERZI, Misabel Abreu Machado; BUSTAMENTE, Thomas da Rosa de. O princípio federativo e a igualdade: uma perspectiva crítica para o sistema jurídico brasileiro a partir da análise do modelo alemão. In: DERZI, Misabel Abreu Machado; BUSTAMENTE, Thomas da Rosa de. Federalismo, justiça distributiva e royalties do petróleo: três escritos sobre Direito Constitucional e o Estado federal brasileiro. Belo Horizonte: Arraes, 2016.

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