Diário de Classe

Por um processo penal com menos fanatismo de coxinhas e mortadelas em 2017

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24 de dezembro de 2016, 7h00

Spacca
Em 2016, assistimos e participamos, mesmo passivamente, do espetáculo do fanatismo. Entre “coxinhas” e “mortadelas”, qualquer opinião proferida em artigos, palestras, enfim, nas reuniões familiares, tão logo emitida, era taxada com uma das etiquetas. Defender garantias virou sinônimo de ser favorável à corrupção, como se as questões fossem antagônicas. A simplicidade do maniqueísmo (bem x mal) cobrou o preço de diversas amizades que se desfizeram em 2016.

O desafio é pensar, em 2017, o jurídico e o político com certa dose de ceticismo, sem perder a esperança. Quem sabe buscar um pouco de afastamento dos juristas do embate político consiga proporcionar uma leitura de autonomia do Direito Penal, do processo penal e do momento atual do país.

Amos Oz[1] argumenta que perseguir um punhado de fanáticos nas montanhas do Afeganistão é uma coisa bem distinta de lutar contra o fanatismo. Até porque o fanatismo se liga a outros motivos, nem todos racionalizáveis, a saber, inconscientes. De qualquer forma, caso se não o possa findar, pelo menos se pode buscar o controle dentro de limites democráticos. Esse é o desafio. Isso porque o pensamento fanático é maniqueísta. Escolhe uma posição se fincando com total rigor em suas predileções, aniquilando todo o demais, nem sequer ouvindo os demais. O discurso é fechado em sua própria verdade (eterna), não se combinando com outros campos do social.

Giorgio Agamben, por seu turno, aponta que o poder encontra-se na exceção, a saber, a possibilidade de que se exclua a regra de aplicação geral e se promova, para o caso, uma outra decisão. Esse poder encontra-se indicado pela estrutura, segundo a qual existe um lugar autorizado a escolher, o qual se encontra, ao mesmo tempo, dentro e fora do sistema jurídico, conforme o pensamento de Carl Schmitt[2], na interseção entre o jurídico e político. Esta distinção, todavia, entre jurídico e político precisa ser problematizada, não se podendo colocar, em absoluto, dissociados, apesar de ocuparem lugares diversos (Zizek). Neste pensar, segundo Agamben, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”[3].

Nesse sentido, aquele que denuncia o discurso do mestre (Lacan) acaba sendo tachado de traidor, justamente por ousar divergir da verdade dita e estabelecida, sem que muitos sequer se deem conta do caráter de exceção — econômica — que se estabeleceu no país. Para romper com este estado de coisas, é preciso trair, tomando o cuidado de não se tornar um fanático contra outros fanáticos.

Amos Oz afirma que somente o que ama é capaz de se converter em traidor, justamente por ser capaz de mudar aos olhos de quem não consegue mudar, odeiam quem muda e não podem conceber, portanto, a mudança de opinião. Em síntese: aos olhos do fanático, traidor é qualquer um que muda de opinião. Também reconhece que é dura a opção entre se tornar um traidor ou permanecer como um fanático. Este lugar de fanático, longe de precisar de vestes especiais, encontra-se adornado no lugar da verdade-senso-comum-da-punição, ou seja, no paradigma punitivista vigente, o qual adota uma postura de superioridade em relação aos demais que pensam diferente (com boas razões, ou não).

Que possamos trair nossas certezas, aceitar o dissidente, sem perder a ternura. Até porque diria uma vez mais Amos Oz: “Conozco a muchos vegetarianos que te comerían vivo por comer carne”.


[1] OZ, Amos. Contra o Fanatismo. Trad. Daniel Sarasola. Barcelona: Siruela, 2005.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
[3] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 12.

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  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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