Limite Penal

Juízes pagos para condenar jovens: quem aplaude ou se omite também prende

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23 de dezembro de 2016, 7h00

Spacca
Juízes recebendo dinheiro dos “centros de recuperação de crianças e adolescentes” é o tema do documentário Kids for Cash (Crianças por Dinheiro, disponível na Netflix). Nele se narra a história do ex-Juiz Mark Ciavarella Jr, aplaudido pela população por aplicar decisões duras em nome da “lei e ordem” e da “tolerância zero”, em que jovens eram mandados para centros de reabilitação privados, dos quais recebia dinheiro indiretamente.

Foram vários anos e muitas vidas dilaceradas em nome do “bom mocismo” e da menina “bela, recatada e respeitadora”, atributos de gente (que se acha) de “bem”. Durante muito tempo suas práticas se aliaram a policiais, políticos e empresários, todos em nome do “bem comum”. A firmeza, rapidez e cinismo eram amplamente aplaudidos pela comunidade refém do discurso do medo e que, na ausência de compreensão do fenômeno violência, só sabe pedir mais penas, penitenciárias e exclusão.

Antes que os retóricos do “está com dó, leva pra casa” se arvorem em criticar, respeito a escolha democrática da punição. Só não me iludo que punir gente possa gerar, especialmente pelo modo como é implementada, os efeitos prometidos. Mas isso é papo para outra coluna.

Mark Ciavarella foi condenado a 28 anos de prisão, enquanto o também ex-juiz Michael Conahan, a 17,5 anos de prisão por se terem associado ao grupo que construiu o estabelecimento para onde eram enviados os “jovens infratores”. A lógica do mercado é simples: a) cria-se o discurso do medo’; b) elegem-se os ‘bodes expiatórios’, descritos por René Girard; c) promove-se o consenso sobre a punição imediata e dura; d) os aparentemente bons e fiéis cumpridores da lei, portanto, não criminosos, e iludidos com a punição, “lavam” suas culpas; d) corporações e agentes públicos espertos lucram; e) o coro aplaude e sorri.

Claro que no meio há muita gente instrumentalizada, doutrinada e que acredita, piamente, que é um grande servidor público, prendendo, acusando, condenando, como faziam todos que trabalhavam com Mark Ciavarella. É bem interessante que se é muito mais manipulado quando não se sabe o que se faz. Alguns sabem e por isso mesmo fazem, enquanto a maioria não sabe o que faz.

O tema já foi retratado nesta ConJur por João Ozório de Melo. Os empresários (Robert Mericle e Roberte Powell, também advogado) que lucraram também foram condenados e o sistema passou por parcial modificação.

No Brasil do “estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário”, como foi declarado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 347, acrescido do congelamento dos investimentos pela Emenda Constitucional 241 ou 55, as condições para privatização foram asfaltadas, abrindo-se o caminho para que se amplie cada vez mais o uso predatório do sistema penal com lucros. Afinal de contas, hóspedes não faltarão, especialmente no ambiente de exclusão em que o furto de um relógio significa uma pena maior do que a das homologações milionárias de delatores/colaboradores da “lava jato”. Claro que o cínico responderá que o crime patrimonial é mais grave e o iludido não entenderá nada, enquanto todos cumprem leis. Feitas por quem? Vale a pena perguntar-se? Melhor não?

Enfim, preso é dinheiro. A expressão pode parecer anacrônica quando se fixa na imagem reduzida de pessoas atrás das grades. A manutenção do regime de prisão mantido pelo Estado é cara e ineficiente. A prisão privatizada atenderia, a primeira vista, aos anseios de diminuição de custos e melhoria do serviço. O marketing da eficiência do serviço é cada vez mais sedutor e violador de postulados básicos da Democracia. É claro que visitando um presídio privado e um público tenhamos a sensação de que o privado é melhor. A questão esconde, todavia, o interesse ideológico e comercial. Lucra-se muito. Quem se presta a explorar a prisão quer lucros e maior mercado.

O volume de dinheiro que se pode alavancar com o aumento do sistema penal, flexibilização do processo e garantia de ocupação de vagas, no contexto ocidental, já demonstrou os êxitos no encarceramento em massa operado nos EUA a partir da década de 1970 (Nixon, Reagan, Bush, Clinton, Obama, Trump…). O mercado americano entra em colapso, fazendo com que o discurso populista da Lei e da Ordem desembarque em outros países, no caso, o Brasil. Sob esse viés, Antony Thiesen, em Monografia da UFSC, apresenta o panorama dos desafios de se pensar as bases de um sistema penal que não se seduz pelas jogadas de marketing político, populista e que lucram muito nos obscuros labirintos da privatização da pena. Mais crimes, mais populismo, mais prisões, mais violência. O sistema é cínico e se retroalimenta.

Subjetividades foram dilaceradas, jovens se suicidaram, tudo ao preço do lucro. Há material online que pode ser consultado. Recomendo, sinceramente, assistir ao documentário.

Como destacado por Justin Jones, da American Civil Liberties Union (ACLU) e sublinhado por João Ozório de Melo: “o sistema de prisões com fins lucrativos só tem um objetivo: o lucro; e ninguém se importa com o interesse público, com a segurança da população, nem com a legalidade ou a Justiça”. Nem Papai Noel acredita em prisões privadas. Lúcifer, pai da mentira que é, talvez curta. Ainda falta uma semana para acabar o inesquecível e horroroso 2016. Bom Natal. A esperança se renova. Só não se iluda. Muito.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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