Processo Familiar

Sistema de adoção no Brasil é cruel com as crianças e os adolescentes

Autor

  • Rodrigo da Cunha Pereira

    é advogado presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil e autor de vários artigos e livros em Direito de Família e psicanálise.

18 de dezembro de 2016, 7h00

O sistema de adoção no Brasil é cruel com as crianças e os adolescentes. São os números que dizem isso: mais de 46 mil estão em abrigos à espera de uma família. Pior que isso são os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário parecerem achar tudo normal. É perverso! Todos fazem de conta que não veem essa violência de os menores não poderem ter uma família para acolhê-los. O aforismo de Lacan, “A mulher não existe”, pode ser ampliando também para “A criança não existe”. Elas se tornaram invisíveis e não há nenhuma política pública séria para tratá-las como verdadeiros sujeitos de direitos. Elas não fazem parte da engrenagem política. Não dão voto. Elas não têm voz nem vez.

Por que tem tantas crianças e adolescentes em abrigos esperando serem adotados? A primeira resposta é que a maioria dos adotantes pretendem crianças até três anos de idade, e grande parte delas já passou dessa faixa etária. É claro que se pode incentivar a chamada adoção tardia, isto é, de crianças que não estejam nesse perfil preferencial. Mas antes disso é preciso se perguntar porque elas demoram tanto em abrigos, e o porquê de a adoção ser tão emperrada. Há quem passe toda sua infância e juventude nos abrigos à espera de uma família que nunca chega. Há ações isoladas de alguns operadores do Direito pelo Brasil afora que fazem a diferença com o seu trabalho para interceder neste perverso ciclo de crianças que não têm famílias. Mas são casos isolados. É preciso muito mais.

A raiz do problema está, inclusive, em uma interpretação equivocada e preconceituosa da lei, no sentido de que deve-se buscar a qualquer custo que a criança seja adotada pela família extensa, ou seja, pelos seus parentes. Um verdadeiro culto ao biologismo, incentivado equivocadamente inclusive por dogmas religiosos. Ainda não temos um Estado verdadeiro laico. Esta procura pelo adotante “preferencial” costuma durar anos e, quando é encontrado, na maioria das vezes o parente adota não por amor, mas por culpa. O consagrado princípio constitucional do melhor interesse da criança fica longe do que seria realmente melhor para ela. Grande parte dos juízes e membros do Ministério Público ainda está paralisada na ideia de que família é da ordem da natureza, e não da cultura, ignorando toda a evolução do pensamento psicanalítico e antropológico. Isso por si só já leva o processo a atrasar anos.

Seria irresponsabilidade fazer um processo de adoção em apenas um  ou dois meses. Mas demorar anos como tem acontecido na maioria deles é compactuar com o sistema que mais violenta essas crianças e esses adolescentes do que os protege. Quem aceita essa situação justifica que é culpa do sistema e que deveria ter mais profissionais no quadro das varas de infância e juventude, para dar conta do volume enorme de processos etc. Seja como for, se cada um dos profissionais envolvidos na adoção não parasse de se indignar com as crianças depositadas nos abrigos, certamente teríamos mais adoções no Brasil. Não há valor jurídico, moral ou religioso que justifique essa cruel realidade.

O sistema de adoção brasileiro precisa ser revisto urgentemente. Todos os governos em início de mandato prometem mudanças, mas nunca levaram isso a sério. O Ministério da Justiça do atual governo elaborou um bem intencionado anteprojeto de lei para desemperrar as adoções. O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) vê com bons olhos a iniciativa e tem dado contribuição para seu aperfeiçoamento, pois entende que serão necessários ajustes, tais como simplificação e redução dos prazos processuais e a suspensão do poder familiar, que deve ser feita tão logo constatada a impossibilidade de permanência no núcleo familiar originário.

O melhor desse anteprojeto é que ele toca em pontos nevrálgicos da adoção e abre brechas para enfrentar o preconceito que ronda e impede que crianças tenham uma família. Nele, as adoções internacionais poderão ser vistas sem preconceito. Afinal, em uma era globalizada, a transnacionalidade é uma realidade. E, se considerarmos que os estrangeiros são os que menos exigência fazem para adoção, certamente muitas crianças sairão do abrigo, e nós, advogados, deixaremos de ser vistos como vendedores de crianças para o exterior. Outro preconceito enfrentado é o da adoção intuitu personae, ou dirigida. Há pessoas que querem entregar o filho para adoção, mas só se dispõem a fazê-lo se for para determinada pessoa. No atual sistema, isso, a rigor, não é possível, (exceção para doação unilateral, isto é, de padrastos), pois toda criança adotável deve entrar em uma lista oficial criada no início de 2008 pelo Conselho Nacional de Justiça, denominada de Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Tomara que esse anteprojeto não se torne apenas uma das boas intenções como aconteceu em tantos outros governos.

A comunidade jurídica interessada e preocupada em dar uma família a estes milhares de crianças e adolescentes espera que em breve ele se torne lei e possa ajudar a mudar esta triste realidade da adoção. Até que isso aconteça, é possível interferir e mudar imediatamente o sistema com algumas ações práticas. A primeira delas, e que pode ser rápida, é alterar o atual sistema do Cadastro Nacional de Adoção, que, ao invés de facilitar, tem dificultado as adoções. O excesso de proteção e segurança acabou por emperrá-lo ainda mais.

Há sempre esperança de que boas intenções se transformem em realidade. E, até que elas se transformem em ações efetivas, e independentemente delas, os profissionais envolvidos com adoção podem contribuir para sua efetividade, se tiverem um olhar mais generoso para o real interesse das crianças e adolescentes, comprometido com a ética do bem, saindo de seu lugar de conforto e, principalmente, acabando com o preconceito de que a família biológica é melhor ou tem preferência sobre a adotiva, que é uma espécie do gênero da família socioafetiva. Adoção não é uma filiação de segunda classe. Ao contrário, somente os pais adotivos podem repetir aos seus filhos o que Cristo disse aos seus apóstolos: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu quem vos escolhi a vós”.

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    é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

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