Relações espúrias

"Normas sobre licitações precisam partir
do pressuposto da honestidade das partes"

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17 de dezembro de 2016, 8h36

No atual cenário político, em que as câmaras de vereadores têm baixa credibilidade junto à população, causa preocupação a decisão do Supremo Tribunal Federal segundo a qual só a rejeição das contas por esta casa legislativa pode tornar um prefeito inelegível. A opinião é da promotora e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Rita Andreia Rehem Almeida Tourinho.

A promotora está no Ministério Público da Bahia há mais de duas décadas e há 18 anos na área da defesa do patrimônio público. Para ela, a Lei de Licitações é muito burocrática e engessa a administração pública. Por isso, precisa ser alterada. “Não se deve ficar tão preso à questão da documentação que só está dentro da lei. É preciso partir do pressuposto que se está trabalhando com pessoas honestas dentro daquele processo”, propõe.

É essa mesma presunção de honestidade que faz a promotora ter ressalvas ao teste de integridade, proposto pelo Ministério Público Federal em seu pacote de medidas contra a corrupção que deverá ser analisado pela Câmara dos Deputados. “Quem iria determinar para uma autoridade superior? Podem até dizer que a lei não diferencia, mas todos nós sabemos a realidade. Então, vai ficar de fora do teste as altas autoridades. Temos medo também de ser usado para perseguição, a depender da forma que for colocado”, avalia.

Rita Tourinho é mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autora do livro Discricionariedade administrativa — Ação de Improbidade e Controle Principiológico

Leia a entrevista: 

ConJur — Em agosto deste ano, o STF decidiu que só a rejeição das contas de prefeitos por câmaras de vereadores tem o poder de declará-los inelegíveis. O que a senhora achou desse entendimento da Corte? 
Rita Tourinho — Esse entendimento do STF dificulta a inelegibilidade dos gestores municipais porque a postura hoje do Legislativo é bastante pessoal. As Câmaras de Vereadores em vez de ter uma atuação legal, voltada a atender o interesse da população, atua muitas vezes em conchavo com o chefe do Executivo, levando a distorções que preocupa a coletividade. Se vivêssemos em um país em que cada poder exercesse sua função, a decisão do STF não teria a repercussão que está tendo. Hoje, as Câmaras não têm credibilidade popular, levantando, com razão, esse tipo de indagação. O julgamento do STF perpassa por um problema maior que é a falta de credibilidade que detém o Poder Legislativo municipal. 

ConJur — Essa decisão enfraqueceu os tribunais de contas? 
Rita Tourinho — Não enfraquece. Se pensarmos dessa forma, podemos concluir que esta instituição não é forte o suficiente. Temos que pensar que, apesar de ser vinculada ao Poder Legislativo, o Tribunal de Contas tem independência e um papel importante que não pode ser destruído apenas por uma decisão do STF. 

ConJur — O que pensa sobre a forma de investidura nos tribunais de contas? 
Rita Tourinho — O fato de ser uma indicação política por si só não descaracteriza o tribunal de contas. O procedimento de escolha, para mim, não é o que leva a questionamentos, mas sim a postura adotada pelo conselheiro.  

ConJur — Em alguns estados, como na Bahia, há tribunais de contas dos municípios e do estado. A senhora acha que é preciso ter dois órgãos de controle externo ou é um custo desnecessário para o Estado? 
Rita Tourinho — Acho que os tribunais de contas dos municípios fazem um trabalho muito bom e bem eficiente. Se eu tivesse que opinar pela manutenção ou não do TCM, obviamente opinaria por manter. Tenho que falar da minha experiência no estado da Bahia, o TCM aqui tem um papel importante, com posturas bem eficazes e com trabalhos de auditorias brilhantes. 

ConJur — Em um congresso em outubro, a senhora afirmou que normas permitindo autoridades, como secretários e desembargadores, a usarem carros oficias não encontram respaldo legal. Para a senhora, esse benefício fere a Constituição?
Rita Tourinho —
Acho que algumas autoridades têm a necessidade de ter veículos a sua disposição para levar e trazer em casa. Por exemplo: os chefes de Poder. Mas não acho que deve ser estendido para todos. No nosso estado, acho que há uma distribuição não razoável de carros oficiais. Na Bahia, há um decreto que, no meu sentir, abrange autoridades que não deveriam ter carros oficiais, como assessor especial, ouvidores, chefes de gabinetes. Acho normal ter um carro que te pega dentro do seu trabalho e leva para reunião. Agora, ter um carro que pegue em residência, leve ao trabalho e traga para a residência, não acho que está de acordo com os princípios que regem a administração pública. Qual o interesse público tem em colocar uma quantidade de carros para uma gama imensa de autoridades com o propósito de levá-los ao ambiente de trabalho e retorná-los às suas residências? Acho que isso pode ser questionado frente à Constituição em função de não atendimento dos princípios básicos que estão no artigo 37.

ConJur — A senhora é contra foro por prerrogativa de função em ação de improbidade administrativa? 
Rita Tourinho — Acho que o foro por prerrogativa de função não se justifica. O foro foi criado para a proteção da função que a pessoa exerce e não para a proteção da pessoa. Poderia ser mantido, mas reduzido. Não tem porque ter foro por prerrogativa em funções que não há o menor sentido, como deputado estadual e ministro do estado.

ConJur — A justificativa para existência do foro por prerrogativa de função é que este protege a função e o exercício das atividades inerentes ao cargo. Não há então uma ameaça a essa proteção quando se trata de improbidade administrativa?
Rita Tourinho —
A improbidade não tem prerrogativa e acho que deve ser mantida desta forma. Acho que no dia que instituir o foro por prerrogativa na improbidade, vai perder 70% do seu valor. Um prefeito tem foro por prerrogativa na seara criminal, mas não tem na seara de improbidade. Para a população que mora naquele local, a ação de improbidade tem uma eficácia bem maior, porque o próprio promotor da comarca vai entrar com a ação e o juiz que está ali vai julgar. Então, a população tem condições de acompanhar e ver a resposta que o Ministério Público está dando a aquela ação praticada pelo prefeito. Quem vai acionar a ação criminal será o procurador-geral de Justiça e vai ser julgada pelo tribunal. Essa ação vai demorar porque só será um tribunal para julgar todos os prefeitos no que diz respeito à questão criminal. Com relação a questão da improbidade, cada juiz, que é responsável pelo município, vai julgar. A possibilidade de ter uma ação que tramite mais rapidamente é maior e há um controle social sob a atuação do Ministério Público e do Judiciário.

ConJur — É mais difícil punir o governador por atos de improbidade administrativa?
Rita Tourinho —
Quando chega à seara do estado, existe uma descentralização muito grande. Ou seja, a quantidade de atos que o governador distribui para secretários são maiores do que acontece nas prefeituras. Os governadores não praticam muitos atos de execução que levem a prática de improbidade. Então, é mais difícil de provar porque existe uma desconcentração de atribuições, o governo tem as atribuições dele, mas joga muito para a secretaria.

ConJur — A meta 18 do CNJ teve pouca efetividade em acelerar o julgamento de ações de improbidade administrativa?
Rita Tourinho — Teve um certo progresso, mas não foi suficiente. Essa lei foi introduzida em 2001, através de uma medida provisória. Tem um artigo da Lei de Improbidade que trata de uma fase de defesa prévia. Quando o Ministério Público entra com a ação de improbidade, primeiro o réu é notificado e daí apresenta uma defesa prévia. Depois de receber a ação, é citado de novo para apresentar outra defesa. Só nessa fase inicial, que foi introduzida a partir desta medida provisória, perde, na melhor das hipóteses, um ano. Dentre as dez propostas de medidas contra a corrupção apresentadas pelo MPF, uma delas retira esse dispositivo. Se retirar, acho que vai ficar mais rápida a tramitação das ações.

ConJur — Há projetos no Congresso que proíbem o sigilo judicial nos processos em que sejam réus membros do Poder Legislativo e também nas ações criminais relacionados à administração pública. O que acha dessas propostas?
Rita Tourinho —
Acho que não deve ter segredo de Justiça. Mesmo porque quem está na administração pública deve ter transparência. Acho que a única hipótese que poderia ter sigilo das investigações é se efetivamente a divulgação gerar prejuízo no andamento do processo. Fora isso, não. 

ConJur — A senhora concorda com a crítica de que a Lei de Licitações facilita a fraude e a corrupção? Quais são as principais deficiências da legislação? 
Rita Tourinho — A Lei de Licitações é extremamente burocrática e engessa a administração pública. Devem ser feitas algumas alterações. Não tenho dúvida disso. Não sei se aumenta a fraude. O que faz isso é um desvirtuamento comportamental dos brasileiros no que diz respeito à atuação frente à administração pública. Todo mundo acha que a administração pública não pertence a ninguém e cada um quer tirar a sua fatia, então é uma visão extremamente equivocada. Agora, que a Lei de Licitações não condiz com a nossa realidade hoje, não tenho dúvida. Temos um regime diferenciado de contratação que traz propostas muito melhores do que a própria lei. 

ConJur — O que a senhora propõe?
Rita Tourinho — Acho que se deve dar a possibilidade de negociação dentro das licitações. Não se deve ficar tão preso à questão da documentação que só está dentro da lei. É preciso se partir do pressuposto que se está trabalhando com pessoas honestas dentro daquele processo.

ConJur — A lei orçamentária brasileira é levada a sério ou é sou uma “peça formal”?
Rita Tourinho —
É uma peça fictícia por causa do orçamento, que é estimado, não é real. É necessário ter essa lei orçamentária. É importante, mas traz muito mais, naquele momento, uma ficção do que uma realidade porque é uma previsão do que irá acontecer.

ConJur — A sociedade brasileira ainda relega a discussão sobre o orçamento?
Rita Tourinho — A sociedade discute pouco muitos temas que são relevantes, principalmente, temas voltados a administração pública. As pessoas ainda são muito preocupadas com seus interesses individuais. Não há preocupação com o coletivo. O interesse só começa quando o que aconteceu em coletivo me atingir individualmente.  

ConJur — O que a senhora acha do pacote anticorrupção do MPF?
Rita Tourinho —
Nós apoiamos, achamos que são medidas importantes, mas, na verdade, não vão mudar o país, porque o nosso problema não é só no Legislativo e Judiciário.  Temos problemas éticos. Temos uma crise ética, de moralidade no nosso país e não são apenas essas medidas que vão mudar o quadro que vivenciamos hoje. 

ConJur — A senhora é contra o teste da integridade?
Rita Tourinho — Do jeito que foi colocado, pode trazer mais prejuízos do que benefício. Acho que tem que ser mais bem explicado. O teste aleatório, que submete qualquer servidor, afronta o princípio de que há uma presunção de que as pessoas vivem com conduta honesta no ambiente de trabalho. O teste aleatório é determinado pela própria administração pública. Quem iria determinar para uma autoridade superior? Podem até dizer que a lei não diferencia, mas todos nós sabemos a realidade. Então, vai ficar de fora do teste as altas autoridades. Temos medo também de ser usado para perseguição, a depender da forma que for colocado. A intenção é boa, mas é problemática. 

ConJur — O STF proibiu membros do Ministério Público de assumir cargos públicos fora do âmbito da instituição. Qual é a sua opinião sobre essa decisão? 
Rita Tourinho — É correta, mas há uma certa incoerência, porque a gente tem deve ter uma postura isenta no Ministério Público. A partir do momento que pega um membro do Ministério Público e coloca dentro da administração pública, ele obviamente tem que colher os princípios da instituição. Acho que é uma questão bem discutida. Sei que é uma situação contraditória, mas é um tema que já chegou ao Supremo Tribunal Federal e a única coisa que nós temos que fazer é acatar. 

ConJur — O atual sistema de escolha do procurador geral da Justiça deve ser mudado?
Rita Tourinho — Acho que o fato do procurador de Justiça ser escolhido pelo governador não lhe traz nenhuma postura de submissão. Pelo contrário, é capaz de ter uma relação boa e de respeito mútuo, sem nenhum tipo de interferência.

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