Limite Penal

Desejo de Delatar, parte 1: em busca da própria liberdade

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16 de dezembro de 2016, 7h00

Spacca
A luta contra a escassez de informação exige que o Estado investigador tenha diligência/eficiência na obtenção de elementos probatórios capazes de justificar a instauração de futura ação penal ou no acordo de cooperação/delação premiada e, com isso, potencialize as possibilidades de decisão penal condenatória/homologatória.

São dois regimes: a) do processo penal com produção probatória, instrução e decisão motivada, prolatada por magistrado; e b) homologação de acordo de colaboração premiada, em que o consenso manifestado pelos jogadores (acusação e defesa) estabelece acordos entre o acervo probatório e a imputação criminal (pena, regime etc.).

Em outras palavras, diferentemente do ambiente anglo-saxão, em que o pano de fundo pragmático autoriza, sem maiores dificuldades filosóficas, a construção de narrativas — inclusive com acordos sobre a qualificação jurídica da conduta e punição —, no Brasil convivem, com muito desconforto, dois modos de produção de verdade processual. A primeira depende da existência de processo penal com acusação, formalização de relação processual, exigências probatórias e decisão estabelecida por terceiro, a saber, um juiz imparcial. Na segunda hipótese, inserida por mecanismos de consenso, a acusação e a defesa “negociam” tanto a tipificação da conduta como a pena (ou sua ausência).

A tendência contemporânea rumo ao processo viabilizado pelo consenso atende aos interesses de redução de custos, aceleração da resposta estatal e otimização do sistema judiciário. Há um giro no modo de pensar o Direito Processual Penal, especialmente a partir de referencial filosófico pragmático e consequencialista.

Daí que será preciso compreender as novas ferramentas, inspiradas na Teoria dos Jogos: a) jogadores (internos e externos); b) regras reconhecidas pelos agentes; c) recompensas; e d) táticas e estratégias[1]. É um novo modo de agir e atuar.

A prisão cautelar sem fundamentos instrumentais (fumus comissi delicti e periculum libertatis) tem uma função bem definida. A escassez de liberdade afeta o modo com que o sujeito manifesta sua vontade. Assim, as condições e o contexto em que a tomada de decisões opera pode ser crucial na mensuração das recompensas entre os jogadores (acusação, defesa, acusado). Um acusado solto dispõe da liberdade, enquanto o preso anseia por ela. A sensação de liberdade promove, então, percepção e estímulo diferenciados nos submetidos. A quantidade e a qualidade das cartas probatórias — informações que a acusação dispõe — podem ser determinantes para a obtenção de acordos. A avaliação dos incentivos para o “sim” pode ser influenciada por blefes, ameaças, trapaça, pressões, enfim, mecanismos de persuasão decorrentes da interação negocial, dentre elas o “cartão amarelo” da condução coercitiva e o “cartão vermelho” da prisão para delação/colaboração.

O impacto da ausência de liberdade em sujeitos acostumados ao conforto é lancinante. Por mais que não se possa medir esse efeito de modo objetivo, pode-se afirmar que a sensação de confinamento, desconforto ambiental e submetimento ao regime institucionalizado da prisão altera a capacidade de apreensão da realidade, além de impor o estigma social da condição de presidiário. A valorização da liberdade aumenta em face da ausência de expectativas. O fator tempo, que varia na percepção de quem está dentro do cárcere, daquele que está fora, implica em estímulos corporais e psíquicos. A fixação na liberdade modifica a forma com que se estabelece a percepção. O foco deixa de ser racional para se vincular ao sugerido: liberdade por colaboração premiada. A possibilidade de liberdade domina/captura a atenção de sujeitos segregados. Será preciso muito controle emocional e foco no jogo ampliado (nas externalidades negativas e positivas) para resistir aos preços oferecidos à obtenção da liberdade imediata.

A armadilha do jogador defensivo é se focar na liberdade e não perceber que o foco na liberdade serve de mecanismo de barganha manipulador. Conseguir diferenciar os diversos focos e as tentativas de conseguir pensar o processo a médio e longo prazos passam a ser o desafio de convencimento de acusados/investigados privados da liberdade — e que estão capturados pelo desejo de liberdade — e os defensores que conseguem perceber que a tática da prisão é um meio, e não um fim em si mesmo. Até porque as condições em que a liberdade é “acordada” implicam em efeitos devastadores. O que se denomina de “expansão subjetiva do tempo” é o fenômeno de quem está inserido no contexto da experiência, dado que a apreensão do sentido acontece por dentro da experiência. Já o observador externo não consegue ter a dimensão e o impacto.

A sensação de escassez captura o sentido, impõe-se como dominante e pode impedir a leitura adequada do contexto e das melhores recompensas possíveis.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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