Academia de Polícia

Accountability como instrumento de eficiência da Polícia Judiciária

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

13 de dezembro de 2016, 9h58

Spacca
Já tivemos a oportunidade de tratar da importância da Polícia Judiciária em diversas oportunidades nessa coluna, como por exemplo no artigo Inquérito policial é o mais importante instrumento de obtenção de provas, da autoria deste colunista, ou mesmo no artigo "Mera informatividade" do inquérito policial é um mito, da autoria de Henrique Hoffmann, ou mesmo no artigo  de Ruchester Marreiros, com o título Na detenção em flagrante, delegado exerce função de magistratura.

Na semana em que o portal publica entrevista na qual, sem qualquer base científica, o entrevistado informa um “índice de solução de crimes de 4%” tirado da cartola, cabe aqui tratar de um tema que carece de reflexão em tempos atuais, a accountability na Polícia Judiciária.

De acordo com a Wikipédia, accountability é um termo da língua inglesa que pode ser traduzido para o português como responsabilidade com ética e remete à obrigação, à transparência, de membros de um órgão administrativo ou representativo de prestar contas a instâncias controladoras ou a seus representados. Outro termo usado numa possível versão portuguesa é responsabilização. Também traduzida como prestação de contas, significa que quem desempenha funções de importância na sociedade deve regularmente explicar o que anda a fazer, como faz, por qual motivo faz, quanto gasta e o que vai fazer a seguir.

Não se trata, portanto, apenas de prestar contas em termos quantitativos, mas de auto avaliar a obra feita, de dar a conhecer o que se conseguiu e de justificar aquilo em que se falhou. A obrigação de prestar contas, neste sentido amplo, é tanto maior quanto a função é pública, ou seja, quando se trata do desempenho de cargos pagos pelo dinheiro dos contribuintes.

O que se observa é que o termo accountability está diretamente ligado à transparência e participação popular na análise da prestação de contas das instâncias controladas. Conforme afirma Jorge da Silva, “em contexto democrático, é fundamental, repita-se, que as instituições do sistema de justiça e segurança estejam submetidas ao controle da sociedade”[1].

 Nesse sentido, o PLC 4.850/2016 que estabelece medidas contra a corrupção, negligenciou o tratamento do tema, apesar da transparência ser uma das “10 medidas”, tão alardeadas no combate à corrupção que previa, em sua medida 1[2]:

Prevenção à corrupção, transparência e proteção à fonte de informação

(…)
A primeira visa à transparência, por meio da criação da regra de accountability e eficiência do Ministério Público e do Poder Judiciário. Trata-se de um gatilho de eficiência. É estabelecido um marco de duração razoável do processo, consistente na duração de dois anos em primeira instância e um ano para cada instância diversa. Os Tribunais e os Ministérios Públicos são orientados a fazer estatísticas sobre a duração do processo em cada órgão e instância, bem como a encaminhar os dados para o CNJ e CNMP, a fim de que esses órgãos possam avaliar as medidas cabíveis, inclusive legislativas, que devam ser propostas, a fim de se alcançar a razoável duração do processo.

A proposta de redação do texto legal, após as discussões, teve no relatório final uma redação em que trata, em seu título, da “da prestação de contas pelos Tribunais e pelo Ministério Público”[3]. O projeto legislativo ao tratar do tema terminou assim redigido:

Art. 1º Os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios e os Ministérios Públicos respectivos divulgarão, anualmente, estatísticas globais e para cada um dos órgãos e unidades que os compõem, para demonstrar o número de ações de improbidade administrativa e de ações criminais, por categoria, que:

I – foram propostas e distribuídas durante o exercício, e o número de processos, por categoria, que foram julgados, arquivados ou que, por qualquer modo, tiveram sua saída realizada de forma definitiva, e o saldo de processos pendentes de julgamento;

II – tramitam perante o órgão ou unidade, com a indicação do seu respectivo tempo de tramitação e do interstício gasto para receber algum tipo de decisão judicial ou para nele ser proferida manifestação ou promoção de qualquer espécie. Parágrafo único. As estatísticas a que se refere o caput serão normatizadas com a finalidade precípua de identificar os tipos de ações em atraso e os órgãos ou unidades que extrapolam o limite da duração razoável do processo, resguardadas as cautelas necessárias para não onerar o serviço judicial com a prestação de informações desnecessárias.

Veja-se que, apesar de todo o tempo de discussão do tema, o texto não contempla a Polícia Judiciária, parte fundamental na estrutura do sistema de justiça criminal. Resta fundamental para que se possa avaliar a efetividade, não só intrínseca (da própria Polícia Judiciária), mas também extrínseca (dos demais atores — Poder Judiciário e Ministério Público), que se possa contar com dados estatísticos sérios. Como avaliar transparência se a origem dos dados não fora incluída no projeto?

Uma alternativa para a elaboração de estatísticas sérias acerca das atividades de Polícia Judiciária seria a criação do Conselho Nacional de Polícia Judiciária, nos moldes do Conselho Nacional de Justiça. Observe-se que o Regimento Interno da Polícia Federal, instituído pela Portaria 490, de 25 de abril de 2016, do Ministro da Justiça, já prevê, em seu artigo 3°, a existência do Conselho Superior de Polícia que, de acordo com o artigo 31:

Art. 31. O Conselho Superior de Polícia, presidido pelo Diretor-Geral, é entidade de deliberação coletiva destinado a orientar as atividades policiais e administrativas em geral e a opinar nos assuntos de relevância institucional, tendo como membros o Diretor-Executivo, o Diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado, o Corregedor-Geral, o Diretor de Inteligência Policial, o Diretor Técnico-Científico, o Diretor de Gestão de Pessoal, o Diretor de Administração e Logística Policial, até cinco Superintendentes Regionais e um Adido Policial Federal.

Os Superintendentes Regionais e o Adido Policial Federal poderão ser escolhidos, a critério do Diretor-Geral, em sistema de rodízio.

O Conselho reunir-se-á, ordinariamente, uma vez por semestre e, extraordinariamente, a qualquer tempo, por convocação do seu Presidente.

O Chefe de Gabinete será o Secretário do Conselho.

Embora limitada apenas à Polícia Federal, faz-se necessária a criação de órgão nesse sentido, visando sobretudo a fixação de políticas em segurança pública de forma conjunta entre União e Estados federados. Tal estrutura seria de fundamental importância no acompanhamento de dados estatísticos acerca da fase inicial da persecução penal, fundamentais não só para o controle da atividade policial, mas também para subsidiar o trabalho de accountability posterior, para o Ministério Público e Poder Judiciário.

Pois, de nada adianta um controle, por exemplo, da quantidade de ações penais propostas se esse dado não for tomado de forma contextualizada, por exemplo, com a quantidade de inquéritos policiais que são concluídos ao órgão ministerial, ou mesmo o tempo de tramitação entre o relatório final da investigação e eventual análise e oferecimento de denúncia. Assim, uma ferramenta de accountability sem levar em consideração os dados da fase preliminar da persecução penal seria, sem dúvida, uma análise parcial do problema.

Conforme coloca João Marcelo Maciel de Lima[4], “a questão da accountability surge como ponto focal para a consecução de políticas de controle das instituições do Estado por parte dos cidadãos e de outras esferas democráticas, permitindo que as noções de responsabilidade, transparência e controle façam parte das ações públicas”. Vê-se, portanto, a intrínseca ligação entre accountability e democracia.

Voltando ainda à questão da eficiência, acerca do índice de 4 % de eficiência,  apontado na entrevista já referida, esquece o entrevistado (ou deliberadamente fez-se esquecer) que o objetivo do inquérito policial não é alcançar “culpado” a qualquer custo. Um inquérito concluído pela inexistência de crime tem a mesma importância de um inquérito que é concluído com indiciamento quando identificados, portanto, indícios de autoria e materialidade, uma vez que o inquérito policial cumpriu seu papel: de filtro para evitar acusações injustas e indevidas. Segundo Aury Lopes Jr[5], para “purificar, aperfeiçoar, conhecer o certo”. Franco Perazzoni e Wellington Clay Porcino Silva[6], em estudo recente, apontam as seguintes conclusões:

De todas as investigações encerradas no ano de 2014 pela Polícia Federal em Roraima, 70% (setenta por cento) o foram de forma exitosa, sendo que em 40% (quarenta por cento) houve indicação de autoria e em 30% (trinta por cento) concluiu-se pela inexistência de crime26, o que por si só demonstra a relevância do inquérito policial não apenas para a apuração de ilícitos, mas também como filtro apto a evitar ações penais desnecessárias.

Ressalte-se, ainda, que um estudo preliminar, efetuado ao longo dos três primeiros meses de 2015, parece indicar que os índices da Polícia Federal como um todo não se distanciam em muito dos obtidos pela região de Roraima, variando entre 90% e 51%.

Parece óbvio mesmo para um leigo que um inquérito policial eficiente é aquele que chega a um resultado, não necessariamente concluindo pela autoria de um crime, uma vez que, numa fase preliminar, pode-se chegar à conclusão de que sequer existiu crime.

Assim, para um sistema de persecução penal cada vez mais consentâneo com um Estado Democrático de Direito, fundamental se faz a adoção de mecanismos de transparência e controle das instituições, notadamente aqui para os atores principais da Justiça Criminal, onde, sem qualquer dúvida, se insere a Polícia Judiciária.


[1] SILVA, Jorge da. Controle da Polícia e “accountability”: entre culpados e responsáveis ou a pedagogia da violência policial. Disponível em http://www.jorgedasilva.com.br/artigo/42/controle-da-policia-e-%E2%80%9Caccountability%E2%80%9D:–entre-culpados-e-responsaveis.-ou-a-pedagogia-da-violencia-policial. Acesso em 12/12/2016.
[2] Conforme texto disponível em http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas. Acesso em 11/12/2016.
[3] Conforme relatório disponível em http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/55a-legislatura/pl-4850-16-estabelece-medidas-contra-a-corrupcao/documentos/outros-documentos/substitutivo-adotado-24-11-2016. Acesso em 11/12/2016.
[4] LIMA, João Marcelo Maciel de. Democracia e accountability: mecanismos de controle externo na Polícia Militar do Estado de São Paulo (1989-2007). Aurora, ano II número 3 – dez. 2008, p. 59.
[5] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 280.
[6] PERAZZONI, Franco. SILVA, Wellington Clay Porcino da. Brasília. Inquérito Policial: um instrumento eficiente e indispensável à investigação. Revista Brasileira de Ciências Policiais, v. 6, n. 2, p. 77-115, Edição Especial – jul/dez, 2015.

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