Modelos de Justiça

"Não se pode aceitar a barganha do Estado com criminosos em massa"

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12 de dezembro de 2016, 5h40

Spacca
Com a prisão de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e a queda do governo petista, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) parece ter se tornado o réu da vez. Com isso, seu advogado, Luís Henrique Machado, pode ser visto como um dos advogados da vez. E ele vê com preocupação o momento por que passa o Direito Penal no Brasil.

Machado concorda com a visão de que a operação “lava jato” é fundamental no combate à corrupção no país. Mas não gosta de ver o preço que ela cobra das instituições. Especialmente porque não há nenhum tipo de debate sobre qual é o legado que ela vai deixar.

“Se a operação foi responsável por recuperar ativos e punir pessoas que cometeram crimes, ela também trouxe à tona certas perplexidades que merecem detida reflexão”, analisa o advogado, em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico.

Criminalista e mestre em Direito Penal, Machado é doutorando em Processo Penal na Universidade Humboldt de Berlim, na Alemanha. Para ele, a “lava jato”, por meio das delações premiadas, passou a confiar demais na palavra de investigados e réus por ter “cochilado” entre 2007, fim das investigações do “mensalão”, e 2014, início da operação “lava jato”.

Essa supervalorização do instituto da delação criou um “pesadelo" para o Estado de Direito: “Passamos a conviver com a tese de que basta um conjunto de indícios para sustentar a condenação”.

Machado é contra as delações premiadas. Acredita que elas põem em risco a coercitividade da lei penal. “Temos notícias de criminosos confessos que, somente pelo fato de ter entabulado o acordo de delação, encontram-se vivendo tranquilamente em suas mansões, desfrutando de dinheiro de origem suspeita. Seria esse o modelo de justiça criminal que nós, cidadãos brasileiros, almejamos?”

Leia a entrevista:

ConJur – O senador Renan Calheiros é um dos mais citados em delações na operação “lava jato”, o que se traduziu na abertura inquéritos. As delações têm sido supervalorizadas nessa operação?
Luís Henrique Machado –
As delações são supervalorizadas porque houve um apagão investigativo dos órgãos de persecução do Estado de 2014 pra trás, ano em que eclodiu o escândalo, deixando de lado outros importantíssimos meios de prova.

ConJur – A resposta padrão dos investigadores é que a operação trata de crimes de difícil investigação…
Luís Henrique Machado –
A legislação processual penal oferece um cardápio generoso de medidas para se permitir a investigação em tempo real. Por exemplo, interceptação telefônica, telemática, agente infiltrado, escuta ambiental, ação controlada, entre outros. Nada disso foi utilizado antes de 2014. Com todo respeito, a verdade é que o Estado-investigação permaneceu inerte durante anos. Ao se deparar com a gravidade dos fatos somente em 2014, praticamente não havia mais possibilidade de produção de prova que se permitisse averiguar a amplitude dos fatos no exato momento em que os crimes ocorreram. Sobreveio o desespero e passaram a se socorrer do instituto da delação. A partir daí, começa o pesadelo para o Estado de Direito.

ConJur – Por que pesadelo?
Luís Henrique Machado –
Porque passamos a conviver com uma realidade processual distinta. Hoje, o Estado-investigação defende a tese de que basta um conjunto de indícios para sustentar a condenação, principalmente em casos de corrupção e lavagem de dinheiro, porque são crimes mais difíceis de provar. Ou seja, aquela concepção clássica de Carrara de que a prova, para condenar, deve ser certa como a lógica e exata como a matemática, está realmente ameaçada.

ConJur – Há excessos?
Luís Henrique Machado –
Precisamos de um distanciamento histórico dos fatos para compreender melhor o fenômeno, mas já podemos perceber determinados excessos sem maiores dificuldades. Por exemplo, a deformação da prisão preventiva. Basta lembrar que as colaborações mais importantes da operação vieram de réus presos, oportunidade em que surgiram fortes vozes alertando para a banalização dos requisitos da prisão preventiva, principalmente do periculum libertatis. Inconcebível também tolerar prisões preventivas ad infinitum, mesmo quando a fase instrutória já havia se encerrado, não remanescendo perigo de evasão e o réu não representava qualquer perigo a garantia da ordem pública.

ConJur – Temos visto muitas incongruências entre as delações. Em um caso havia sete versões diferentes para o mesmo fato, e isso depois de acareações entre delatores e MPF. Isso pode causar problemas para as investigações e para os processos no futuro? Há causa de nulidade?
Luís Henrique Machado –
As incongruências ocorrem porque a delação, na “lava jato”, tornou-se uma espécie de acordão coletivo. Perdemos as contas de quantas colaborações foram realizadas no âmbito de toda a operação. Cada um diz o que pensa, cada um diz o que quer, somente para obter o benefício do acordo. Assim começam a surgir as contradições. Certamente, teremos no futuro acordos cancelados e nulidades suscitadas. Eis aí o perigo de se alicerçar uma operação dessa magnitude em praticamente um único pilar investigativo.

ConJur – A “lava jato” tem sido celebrada como um ponto de virada na persecução penal brasileira e um novo capítulo da Justiça. Concorda com essa visão? Do ponto de vista da sociologia do Direito, que tipo de justiça a “lava jato” tem construído?
Luís Henrique Machado –
Sem dúvida, a “lava jato” é o turning point no combate à corrupção no Brasil. No entanto, é necessário olhar para frente e evoluir. Se a operação foi responsável por recuperar ativos e punir pessoas que cometeram crimes, ela também trouxe à tona certas perplexidades que merecem detida reflexão. Até o momento, presenciamos decretações de prisões preventivas apócrifas, prisões temporárias por engano, conduções coercitivas sem obedecer à premissa básica da intimação, buscas e apreensões sem amparo legal, divulgação inapropriada de conversas privadas, vazamentos seletivos, grampos em escritório de advocacia, PowerPoint pirotécnico, entre outras aberrações que estão longe de se coadunar com as regras do Estado de Direito.

ConJur – Há problemas nos próprios acordos de delação?
Luís Henrique Machado –
Chegou-se ao ponto de se fazer acordos em que o colaborador pode ficar com uma fração dos valores obtidos com a atividade criminosa. É de se admitir a hipótese que o crime compensa. Tampouco poderíamos tolerar penas reduzidas em mais de 80% ou 90% do seu montante originário. Há casos extremos em que a pena foi reduzida de 120 para três anos. Temos notícias de criminosos confessos que, somente pelo fato de ter entabulado o acordo de delação, encontram-se vivendo tranquilamente em suas mansões, desfrutando de dinheiro de origem suspeita. Seria esse o modelo de justiça criminal que nós, cidadãos brasileiros, almejamos? 

ConJur – Qual é a sua opinião sobre isso?
Luís Henrique Machado –
Creio que a partir do momento em que a sociedade entender que cada delação acordada significa a deficiência do Estado em investigar, o jogo certamente mudará. Não se pode aceitar a barganha do Estado com agentes criminosos em massa, sob pena de perda de coercitividade da lei penal. Por isso, digo: menos delação, mais investigação. Pagamos tributos altíssimos e devemos, sim, exigir uma persecução penal de excelência, em tempo real, dentro dos limites constitucionais, respeitando os direitos e garantias dos cidadãos investigados. Se não evoluirmos em certos pontos, pautados por críticas construtivas e debates com os olhos voltados para o futuro, construiremos uma sociedade acéfala, sempre refém da opinião alheia, sem perspectiva sequer de sonhar com um país melhor.

ConJur – O senador Renan Calheiros é um dos réus com mais processos no Supremo. São 11 inquéritos em andamento, se não me engano, mais uma ação penal aberta. E pode haver pelo menos mais um inquérito. Como funciona a defesa de um réu tão visado?
Luís Henrique Machado –
O passivo judicial elevado não assusta. Às vezes, um único processo, volumoso, em estágio avançado e instruído por provas robustas, demanda mais energia e atenção por parte do advogado do que administrar várias demandas ao mesmo tempo. O importante quando o volume é acentuado é que haja um monitoramento dos processos em Echtzeit, como dizem os alemães, ou seja, em tempo real. O advogado deve estar a par de cada movimentação, conhecendo os pormenores da causa para trabalhar da melhor forma possível a produção probatória, que sem dúvida nenhuma é o ponto nevrálgico do processo penal.

ConJur – Mas é inegável que  se trata de um réu visado na operação “lava jato”. Tanto por investigadores quanto por delatores.
Luís Henrique Machado –
É algo polêmico. O que me limito a falar é que existem delações controversas, baseadas em “disse-me-disse” ou em “ouvir dizer”.  Há um caso, por exemplo, em que o delator em seus anexos e depoimentos utiliza ipsis litteris as palavras “deduzi”, “interpretei” e “entendi”. São afirmações vagas e despidas de certeza que terminam por colocar em xeque a credibilidade da delação. Deveria haver um cuidado maior ao se pedir a instauração de um inquérito ou incluir uma dada pessoa no bojo de uma investigação. Isso termina por implicar em um fenômeno que denominamos de “gigantismo processual”. Isto é, instauram-se diversos inquéritos, sem base empírica sólida, e o investigado suporta um ônus pessoal, profissional e social sem precedentes, o que termina, por vezes, em pedido de arquivamento, como já ocorreu com o próprio senador em outras oportunidades.

ConJur – E a delação vazada de um dos diretores da Odebrecht? Preocupa?
Luís Henrique Machado –
Não, embora haja danos políticos irreparáveis por causa do vazamento criminoso, que expôs até o presidente da República. Veja a que ponto chegamos: em um mês, o presidente da República foi alvo de gravação clandestina e de delação vazada. É o fim! Importante dizer que os vazamentos não contribuem em nada para a investigação. Só servem para estimular pré-julgamentos e demonizar o indivíduo perante a sociedade. O artigo 7º, parágrafo 3º, da Lei 12.850/2013 é claro em afirmar que o acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso somente com o recebimento da denúncia. No dia que a autoridade judicial, ao analisar os critérios formais do acordo, dentre eles o requisito do sigilo, deixar de homologá-lo, ou for suspendida a fase de homologação até que se identifiquem os autores do vazamento, certamente esses atos criminosos cessarão. 

ConJur – As menções ao senador não preocupam a defesa?
Luís Henrique Machado –
Para se ter uma ideia, as contas do senador são investigadas há nove anos e em quase uma década não se produziu uma prova sequer contra ele. Passamos por outro fenômeno, que essa forma de tentar criminalizar doações eleitorais de empresas, como se doações feitas dentro das formalidades legais fossem ilegais. Ficar ao sabor de delatores desesperados por benefícios oriundos dos acordos e de vazamentos seletivos é um dos maiores desafios da advocacia criminal de hoje em dia.

ConJur – O que achou da decisão do Supremo de mantê-lo na Presidência no Senado?
Luís Henrique Machado –
A decisão do Plenário revelou o papel moderador que o Supremo Tribunal Federal exerce em nosso sistema republicano. Não foi por acaso que o decano do tribunal, ministro Celso de Mello, destacou em seu voto a separação e a harmonia entre os Poderes. O episódio como um todo foi importante, porque o Supremo, de forma serena, reconheceu os seus próprios limites, deixando claro que inexiste queda de braço entre o Judiciário e o Legislativo.

ConJur – Essa é uma avaliação política. E do ponto de vista jurídico?
Luís Henrique Machado –
A decisão do Plenário foi certeira. A medida liminar tem os seus requisitos para a concessão e devem ser respeitados, sob pena de banalização do instituto. Difícil vislumbrar o fumus boni iuris de um julgamento inconcluso, onde a entrega da prestação jurisdicional sequer tinha se aperfeiçoado. Quanto ao periculum in mora, não havia urgência, pois o senador, na ocasião, além de se encontrar em final de mandato na presidência, figurava somente como o segundo na linha sucessória. Não havia perigo de dano irreparável ou de risco ao resultado útil do processo. Em que pese o brilhantismo do ministro Marco Aurélio, penso que o momento atual, notoriamente delicado, pediria atenção à regra do full bench ou do full court [Plenário], para a apreciação do afastamento de um presidente de um dos três Poderes, o que conferiria legitimidade institucional e não individual à decisão. 

ConJur – A decisão tomada pelo Plenário, ao não confirmar a liminar do ministro Marco Aurélio, sinaliza alguma coisa para os processos criminais a que ele responde pessoalmente?
Luís Henrique Machado –
De forma nenhuma. Cada caso é um caso. Insinuar que em razão de o Supremo não ter afastado o senador da presidência, a repercussão nos inquéritos seria negativa, é deduzir que o tribunal julga os seus processos por conveniência, divorciado da realidade dos autos, o que não é o caso. Estamos a falar da mais alta corte de Justiça do país, de magistrados comprometidos com os valores supremos da judicatura, tendo sempre pautado suas decisões pelo predicado da isenção. Não há o que se preocupar.

ConJur – A opinião pública e a mídia podem definir o destino dos processos?
Luís Henrique Machado –
Não. Basta tomar como exemplo a ADPF decidida pelo Plenário. Apesar do alvoroço midiático, o tribunal atendeu ao espírito das leis e não ao espírito das ruas. Em momentos de alta tensão institucional é sempre bom relembrarmos a filosofia de Hegel que já alertava no século XIX que ser independente da opinião pública é a primeira condição para realizar qualquer coisa grandiosa ou racional, tanto na vida como na ciência. Foi nesse sentido que o tribunal preferiu caminhar e, a meu ver, andou bem.

ConJur – Mas pagou um preço bastante alto.
Luís Henrique Machado –
A jurisdição penal é contramajoritária por excelência. As medidas invasivas, por exemplo, são autorizadas sem espaço para o contraditório, com a finalidade de não prejudicar o andamento da investigação. Daí porque pede-se um controle judicial rígido no momento da apreciação das medidas cautelares, equilibrando-se a balança do direito. Fica claro, portanto, que se deixar a opinião pública interferir no processo penal a paridade de armas restará tolhida, ficando impossível para o advogado realizar uma defesa adequada.  

ConJur – No julgamento sobre a denúncia do senador, vários votos pontuaram que, nessa fase do processo penal, “a dúvida milita em favor do recebimento da denúncia”. Faz sentido isso?
Luís Henrique Machado –
No Brasil, existem julgados que pregam a vigência do princípio do in dubio pro sociatate no momento do recebimento da denúncia. É um equívoco. Se os órgãos de persecução do Estado não conseguem reunir elementos mínimos de autoria e materialidade depois de meses ou anos de investigação e ainda assim pedem socorro ao benefício da dúvida para que a denúncia seja recebida, a peça acusatória deve ser rejeitada. Esse upgrade judicial concedido à acusação, lançando o réu no processo penal, precisa ser revisto urgentemente no Brasil. A nossa jurisprudência, de modo geral, ainda se revela flexível quantos aos critérios de recebimento da denúncia. Muito embora o artigo 41 do Código de Processo Penal peça observância à descrição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. A lei processual pede um controle rígido, justamente porque o investigado não possui direito ao contraditório na fase de inquérito, mas isso não vem ocorrendo na prática.

ConJur – Como isso funciona na Alemanha, objeto de seus estudos?
Luís Henrique Machado –
A solução alemã é a mais acertada. Lá os tribunais pedem que existam elementos concretos nos autos em a que condenação seja mais provável do que absolvição, para que se receba a denúncia. A mera demonstração do Anfangsverdacht, ou da suspeita simples, da suspeita razoável, demonstrando um conteúdo mínimo das circunstâncias que deram origem ao suposto fato criminoso, não autoriza o recebimento da denúncia. Sem dúvida, o controle judicial por lá é mais rigoroso.  Quando lemos o livro As Misérias do Processo Penal, de [Francesco] Carnelutti, concluímos que a maior pena para o cidadão inocente é justamente responder a um processo penal inócuo. Confesso que tenho dificuldades em compreender o princípio do in dubio pro sociatate no momento do recebimento da denúncia.

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