Direito Civil Atual

Relação entre Direito e arte é discutida por juristas em Berlim

Autor

  • Marcílio Toscano Franca Filho

    é doutor em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) com pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu em Florença (Itália) procurador do Ministério Público de Contas da Paraíba professor da Faculdade de Direito da UFPB e coautor do livro Direito da Arte (Ed. Atlas).

12 de dezembro de 2016, 7h00

Nos últimos tempos, o diálogo entre Direito e Arte vem ganhando cada vez mais relevância no cenário internacional. Não têm sido poucos os profissionais, publicações e eventos que, ano após ano, vêm elegendo como alvo de reflexão e objeto de trabalho, sob diferentes perspectivas e justificativas, as interseções entre os domínios de Thêmis, deusa da justiça, e os de Calíope, a musa da poesia épica que, segundo Hesíodo, abre e puxa o coro de todas as musas. As razões desse fenômeno não são poucas nem simples e vão desde a maior exuberância do mercado internacional de artes plásticas, passando pela insuficiência do discurso jurídico para bem compreender e melhor produzir o direito, até o velho adágio “quem só sabe direito, sequer direito sabe”. São tempos de transjuridicidade, sem dúvida!

Segundo dados mais recentes da análise setorial feita pela Lattitude – Platform for Brazilian Art Galleries Abroad, as galerias brasileiras venderam 5.750 obras em 2014, com valores entre R$ 300 e R$ 1,4 milhão. De todas essas vendas, 15% das obras foram destinadas ao mercado internacional, que vem acolhendo muito bem a arte brasileira. O recém falecido Tunga, por exemplo, será o tema central de um evento paralelo à Bienal de Veneza, no ano que vem. Lygia Clark e Willys de Castro também têm grandes mostras previstas para Nova York no primeiro semestre de 2017, em tradicional galeria americana. Por ocasião da Art Basel Miami Beach, o casal de mecenas Don e Mera Rubell inaugurou uma exposição com 12 artistas brasileiros no centro de Miami. Impulsionada, também, por esta efervescente economia criativa, a coluna “Direito Civil Atual”, mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, em mais de uma edição, já abordou o assunto Direito & Arte.

No último mês de novembro, ecos desse crescente interesse entre os diálogos jurídico-artísticos foram ouvidos nos arredores do Portão de Brandenburgo, na Universidade Humboldt, em Berlim, a iluminada capital da Alemanha, por ocasião do encontro anual da Associação Luso-Alemã de Juristas (http://dljv.org/), cujo tema central este ano foi justamente “Direito e Arte” (“Recht und Kunst”). O anfitrião da conferência foi o Prof. Dr. Stefan Grundmann, catedrático de Direito Privado da Universidade Humboldt de Berlim, professor de Direito Privado Transnacional do Instituto Universitário Europeu de Florença (EUI), presidente da Associação Luso-Alemã de Juristas (DLJV) e coordenador da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

A Humboldt é a mais antiga das quatro universidades da cidade, fundada em 1810 como Universidade de Berlim ("Friedrich-Wilhelms-Universitätzu Berlin") pelo diplomata, filósofo e linguista prussiano Wilhelm von Humboldt. Em suas salas de aula e laboratórios, a universidade acolheu vários pensadores importantes dos últimos dois séculos, entre eles filósofos como Fichte, Schleiermacher, Hegel e Schopenhauer, juristas como Savigny e Mommsen, que ali escreveu a sua “História de Roma” com a qual foi agraciado com o Nobel de Literatura de 1902, além de cientistas como Max Planck e Albert Einstein, que teria enunciado numa das salas da Humboldt a sua Teoria da Relatividade. Personagens históricos importantes também foram alunos da instituição como Heinrich Heine, Otto von Bismarck e Karl Marx. Durante os anos do regime nacional socialista, a "Alma Mater Berolinensis" experimentou um dos períodos mais repreensíveis de sua existência. Foi justamente da biblioteca da Universidade Humboldt, por exemplo, que 20 mil livros considerados "degenerados" pelo regime nazista foram retirados com apoio de professores e estudantes para serem queimados, em 10 de maio de 1933, na Opernplatz (hoje Bebelplatz), praça localizada entre a sua Faculdade de Direito e a Ópera Estatal Alemã. Em 1949, de modo a assinalar sua refundação, a universidade trocou seu nome para Humboldt-Universität em homenagem a seu fundador e seu irmão, o naturalista Alexander von Humboldt. Hoje, ao lado da USP, UFMG, UFPE, UFRGS, UFC, UFPR, UFSC, UFMT, da Universidade de Coimbra (Portugal), da Universidade de Lisboa (Portugal) e da Universidade de Girona (Espanha), a velha academia berlinense integra a Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Foi no mítico endereço Unter den Linden, 9, da Faculdade de Direito da Universidade Humboldt, que se realizou este ano, entre os dias 11 e 12 de novembro, esse encontro anual da Associação Luso-Alemã de Juristas. Com uma história de mais de 25 anos, a associação tem como principal objetivo promover a compreensão e difusão da cultura jurídica dos países de língua portuguesa (Portugal, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Timor Leste, além de regiões como Goae Macau) nos meios jurídico-acadêmicos alemães. Naqueles dois dias, cerca e 70 pessoas, entre docentes, pesquisadores, estudantes, magistrados, ministros de tribunais superiores e advogados de vários países, discutiram o que há de mais polêmico, controvertido e atual na seara jurídico-artística.

Na tarde fria, mas ensolarada, de 11 de novembro, a saudação de boas-vindas e a conferência de abertura couberam ao professor Grundmann, que abordou o tema “Recht und Malerei” (Direito e pintura), em uma exposição rica em imagens de obras de arte e grande conteúdo filosófico-jurídico a respeito dessas duas manifestações culturais. A seguir, o experiente advogado berlinense Wolf-Georg Freiherr von Rechenberg discorreu sobre o complexo caso Cornelius Gurlitt, sublinhando algumas questões técnicas desse verdadeiro thriller jurídico-artístico que envolve um rico acervo de obras de arte desaparecidas durante o nazismo e posteriormente doadas pelo colecionador Gurlitt ao museu de Berna.

Após uma pausa para o café, a destruição do patrimônio histórico como crime contra a humanidade foi o assunto da preleção do professor doutor Paulo Borba Casella, da Universidade São Paulo e da ILA Brasil, que se valeu de argumentos históricos, estéticos e jurisprudenciais de grande profundidade. O doutor Tiago Ramalho, da Universidade do Porto, fez, em seguida, algumas observações teóricas sobre “A Arte do Direito” com especial referência a Portugal e seus juristas. Ao finalizar este segundo painel do dia, o “Direito da Arte e Interesse Público no Brasil” constituiu o objeto da intervenção da professora doutora Lisiane Wingert Ody, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O primeiro dia do encontro luso-brasileiro de juristas foi encerrado com um terceiro painel que contou com as participações de Sven Korzilius, leitor jurídico do DAAD no Brasil, que abordou “A Arte da Medida – Observações Comparadas sobre o Princípio da Proporcionalidade no Direito Civil”, do Secretário-Geral da Associação Luso-Alemã de Juristas Rafael Chagas Mancebo, que cuidou dos fundamentos culturais, morais e valorativos da Arte e do Direito, e finalmente da artista visual, pesquisadora e professora Paola Barreto, da Universidade da Arte de Berlim, que proferiu uma interessante conferência sobre o tema “Cinema é Cachoeira, Streaming e Torrent”, com muitas referências à cultura visual contemporânea e às teorias da mídia.

O segundo e último dia do evento foi aberto com uma conferência magna: a exposição do eminente professor doutor Erik Jayme, catedrático da Universidade de Heidelberg e presidente de honra da Associação Luso-Alemã de Juristas, que, para tratar das longevas relações entre Arte e Direito cuidou de estabelecer algumas pontes teóricas com pintores de sua pinacoteca particular, com especial destaque para o paranaense Arthur Nísio (1906-1974). Em seguida ao professor Jayme, o professor doutor Eduardo Carlos Bianca Bittar, da Faculdade de Direito da USP, trouxe considerações profundas sobre o Direito e Música a partir de algumas questões relativas à cultura e aos direitos humanos.

O último painel desta edição do encontro anual foi presidido pelo professor doutor Christian Baldus, docente da Universidade de Heidelberg e vice-presidente da DLJV, e teve como primeira conferencista a professora doutora Claudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A professora, que é diretora da Associação Luso-Alemã de Juristas e também da ILA Brasil, refletiu com precisão e profundidade sobre a questão da Propriedade Intelectual e Direito do Consumidor, tendo como alvo de suas indagações algumas decisões recentes da jurisprudência brasileira e alemã.

Coube a mim, honrosamente, fazer a conferência de encerramento da edição 2016 do encontro da Associação Luso-Alemã de Juristas, oportunidade em que dissertei sobre “Um Outro Ensaio sobre a Cegueira – A Visualidade na Iconografia Jurídica”, explanando a respeito de algumas interseções entre imagem e palavra, traço e letra, na ciência jurídica, da antiguidade até o “iconic turn” dos nossos dias. A essas apresentações seguiu-se um vivo debate, em que intervieram os professores Stefan Grundmann, Erik Jayme, Alberto Vespaziani, de Roma, e Sidnei Agostinho Beneti, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Antes do almoço de despedida, ocorrido na Pizzeria 12 Apostel, a poucas quadras da Humboldt, a sala E25 da Faculdade de Direito ainda abrigou a Assembleia Geral da Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung que sinalizou que, em sua edição de 2017, possivelmente discutirá o tema “Direito & Arquitetura”, nos dias 10 e 11 de novembro de 2017, na Universidade de Jena, Alemanha. A conferência foi oficialmente concluída com um elegante tour pelo Neues Museum de Berlim, conduzido pelo professor Stefan Grundmann.

Há a previsão de que, até o final do primeiro semestre do próximo ano, todas as conferências proferidas nesta edição do encontro anual da Associação Luso-Alemã de Juristas venham a ser publicadas sob a forma de anais, em mais um volume editado pela DLJV, enriquecendo assim uma longa bibliografia que, nos últimos anos, tem sido produzida sobre Direito & Arte em distintos idiomas por casas editorias de prestígio no mundo acadêmico.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

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    é professor da Universidade Federal da Paraíba, docente colaborador da Universidade Federal de Pernambuco e procurador do Ministério Público de Contas do Estado da Paraíba. Pós-doutor pela European University Institute e pela Calouste Gulbenkian, doutor pela Universidade de Coimbra e mestre pela UFPB. É ainda presidente do ramo brasileiro da International Law Association e líder do Laboratório Internacional de Investigação em Transjuridicidade.

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