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Compra de leis citada em delação da Odebrecht gera insegurança

11 de dezembro de 2016, 12h39

Por Marcos de Vasconcellos, Fernando Martines

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A primeira delação de executivos, funcionários e acionistas da Odebrecht (entre as mais de 70 que os empregados da empresa prometeram) já estremeceu o governo de Michel Temer, uma vez que acusa o presidente de pedir e receber R$ 10 milhões. Outros tantos teriam sido distribuídos a partidos e políticos, sendo que pelo menos R$ 17 milhões com um objetivo específico: comprar a aprovação de leis e medidas provisórias.

Tudo ainda está no campo da acusação. As denúncias feitas pelo delator da vez na operação "lava jato", Claudio Melo Filho, ex-diretor de relações institucionais da Odebrecht, ainda precisam ser apuradas, apresentadas à Justiça e devidamente julgadas, para que tenham algum efeito legal. Mas se forem confirmadas, pelo menos 15 MPs, projetos de lei e resoluções do Senado têm claro vício de iniciativa. Com isso, podem ser anulados, ou ter seus efeitos declarados nulos, afirmam especialistas ouvidos pela ConJur.

As explicações de Melo Filho sobre os bastidores do Congresso são explícitas. Ao falar de sua relação com o senador Romero Jucá (PMDB-PE), ex-ministro do Planejamento, afirma: “Eu e o senador tínhamos a convicção de que os apoios aos pleitos da empresa seriam posteriormente equacionados no valor estabelecido para contribuição a pretexto de campanha eleitoral, fosse ela realizada de forma oficial ou via caixa 2”. E complementa que já participou de tantos pagamentos ao senador que, somados, superam R$ 22 milhões.

É com Jucá que Melo Filho diz ter tratado da maioria dos projetos legislativos, mas tendo no senador um intermediário para atingir outros membros do partido e do governo, como o ex-ministro da Justiça e atual presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL): “O fato de o senador Romero Jucá representar também o senador Renan Calheiros era tão notório que, em uma oportunidade, procurei tratar com o senador Renan Calheiros sobre um tema de interesse que já havia tratado antes com o senador Jucá, e Renan Calheiros me interrompeu logo no início, afirmando já estar ciente e garantindo que eu não me preocupasse”.

Também o ex-presidente da Câmara dos Deputados, o deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) é apontado como corrupto, recebendo para facilitar a tramitação de projetos de interesse da construtora. O executivo lista repasses de propinas que somam mais de R$ 10 milhões a Cunha e diz que os pagamentos criavam uma “situação confortável” e seriam “um elemento de atendimento às questões da Odebrecht”. “Utilizei, portanto, esta força”, garante o executivo.


Normas citadas na delação
MP 252/05 
MP 255/05
MP 449/08
MP 460/09
MP 470/09
MP 472/09
MP 544/2011
MP 563/12
MP 579/12 
MP 613/2013
MP 627/2013
MP 651/14
PLC 32/07 
PLC 6/09
Projeto de Resolução do Senado 72/2010

As normas cuja tramitação teria sido azeitada com o dinheiro da Odebrecht são listadas na delação. Da MP 627/2013, criada por Dilma Rousseff, que alterou a tributação da pessoa jurídica domiciliada no Brasil, com relação ao acréscimo patrimonial decorrente de participação em lucros obtidos no exterior, ao Projeto de Lei da Câmara 32/2007, que buscava alterar a Lei de Licitação (Lei 8.666/1993). Veja o quadro ao lado.

Lupa necessária
Identificar todas as normas onde a corrupção teve impacto seria “o mínimo exigível” para a anulação das leis, ressalta o constitucionalista Eduardo Mendonça. Cumprida essa etapa, ele crê ser possível declarar inconstitucional a legislação em debate.

“Com a confirmação de que a delação relata fatos verdadeiros, não tenho dúvida em dizer que será necessário olhar essas leis debaixo de lupa. A sociedade tem o direito de examinar isso com muito cuidado e atenção, para tentar identificar qual pode ter sido o impacto desse lobby. E, no limite, se ficar constatado que o lobby foi decisivo para a aprovação, acho normal que se precise discutir se isso é um vício de formação na lei que justifique uma declaração de inconstitucionalidade”, pondera Mendonça.

Para o advogado Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, caso fique comprovado que houve compra de Medidas Provisórias, elas deveriam ser anuladas. Para efeito de comparação, argumenta que “se um presidente produz um decreto com revolver na cabeça, o decreto é nulo. Uma MP nessa situação colocada na delação é nula e está contaminado pela ilegalidade”.

Sobre os efeitos das MPs, Serrano afirma que se foram obtidos de boa-fé, devem ser preservados pela segurança jurídica. Caso contrário, não. "O corruptor que se beneficiou da corrupção precisa devolver tudo aquilo que ganhou com o caso. Mas quem, de boa-fé, se beneficiou com uma lei aprovada de forma ilegal, não pode ser punido. Cada caso vai ter que ser analisado, para ver se o que prevalece é legalidade ou segurança jurídica", afirma o professor.

Renato Ribeiro de Almeida, advogado e professor de Direito Constitucional e Eleitoral, pensa que seria exagerado anular uma lei, já que isso colocaria os 513 deputados e 81 senadores sob suspeita. “As MPs, como se sabe, têm vigência precária, de 60 dias, e podem ser prorrogadas uma única vez, por igual período.  Ou seja, coube ao Congresso Nacional emendar e deliberar sobre o mérito”, lembra. Ele ainda acha que a anulação geraria ainda mais insegurança jurídica e problemas ao mercado em recessão.

Pelo contexto que por enquanto se pode vislumbrar com a delação, o jurista Lenio Streck também não vê condições de anulação de leis. "Para que se pudesse anular alguma das leis, teríamos que fazer uma pesquisa empírica, espiolhando todos os detalhes para comprovar se a compra se efetivou, isto é, se a compra foi condição de possibilidade de a lei ter sido aprovada.  Pela simples delação não é possível fazer uma espécie de "controle abstrato de compra de voto". Além do mais, do mesmo modo que os atos de um juiz que é demitido por demência não são nulos, do mesmo modo em tese os atos do parlamento, nas circunstância em que se apresentam, também não o são. Somente concretamente demonstrando. Lembro do escravo Barbarius Phillipus, que foi nomeado pretor em Roma. Escravo não podia ser pretor. Os atos dele foram nulos? Não. Já houve tentativa de  anulação de emenda constitucional em face do mensalão", disse. 

Mensalão como precedente
O Supremo Tribunal Federal chegou a analisar uma questão semelhante depois do julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão. Após condenar membros do Partido dos Trabalhadores pela compra de apoio político no Congresso, a corte foi provocada a analisar a possível nulidade da Reforma da Previdência feita pelo governo petista.

O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), a Confederação dos Servidores Públicos do Brasil (CSPB), a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) e associações de juízes ajuizaram Ações Diretas de Inconstitucionalidade no nas quais pediam que fosse declarada a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 41/2003 (da reforma).

“Os 108 votos obtidos dos partidos cujos líderes foram condenados por corrupção passiva na Ação Penal 470, por terem recebido dinheiro em troca de votar a favor dos interesses do governo, se revelaram essenciais para a aprovação da PEC 40/2003, no primeiro turno de votação”, afirmava a ação do PSol.

A Procuradoria-Geral da República, ao se manifestar sobre o caso, afirmou que se há a comprovação de que uma lei foi aprovada com uso de corrupção, o STF deve, sim, declará-la inconstitucional. No entanto, ao levar em conta apenas os votos dos condenados no mensalão, afirmou que o número de parlamentares não seria suficiente para mudar o resultado da votação.

As ações ainda tramitam no STF, sob relatoria da atual presidente da corte, ministra Cármen Lúcia, e do vice-decano da corte, ministro Marco Aurélio.

Clique aqui para ler a delação de Melo Filho, publicada pelos jornalistas Fernando Rodrigues  e Fausto Macedo.

*Texto aletrado às 17h47 deste domingo (11/12) para acréscimo de informações.