Observatório Constitucional

Supremo Tribunal Federal: do salão nobre à casa de máquinas da República

Autor

  • Christine Oliveira Peter da Silva

    é mestre e doutora em Direito Estado e Constituição pela UnB professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do UniCeub assessora do ministro Edson Fachin (STF) e membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).

10 de dezembro de 2016, 7h05

Os acontecimentos deste segundo semestre de 2016 foram conduzindo o artigo que apresento como minha colaboração semestral ao Observatório da Jurisdição Constitucional por caminhos que de longe constituíam o projeto original que vinha sendo gestado.

O título é, sim, uma homenagem ao conhecido livro do professor Roberto Gargarella[1], que se refere ao constitucionalismo latino americano e suas reformas, utilizando a metáfora da casa de máquinas da Constituição. Contudo, a reflexão aqui proposta não toca a temática enfrentada pelo professor argentino, mas certamente por ela é inspirada[2].

Desde o célebre livro do ministro Aliomar Baleeiro, dedicado ao Supremo Tribunal Federal e à nobre missão dessa corte, está-se a consolidar uma imagem do Supremo Tribunal Federal como salão nobre da República[3]. Entretanto, nos dias atuais, ideia diversa tem assombrado a todas e todos.

Não é de hoje que venho trabalhando o paradigma do Estado Cooperativo de Direitos Fundamentais[4]. Trata-se de modelo de organização política que impõe que o exercício de poder, especialmente no seu aspecto metodológico, seja sempre mediado pela concretização irradiadora dos direitos fundamentais. As premissas institucionais desse modelo são a abertura das cortes supremas e constitucionais para os diálogos, bem como para a máxima efetividade da igualdade, no contexto daquilo que dei o nome de dinâmica da alteridade recíproca[5].

E se o aporte teórico do Estado Cooperativo de Direitos Fundamentais conduz minhas reflexões sobre os diálogos internacionais entre supremas cortes, com muito maior razão também é o guia de minhas análises voltadas para as relações de poder no plano interno dos Estados.

A tendência teórica, não há dúvidas, é de tratar, sob os auspícios do modelo Estado Cooperativo, somente os diálogos recíprocos entre soberanias nacionais, direcionando estudos e críticas para a construção de um sistema jurídico universal e tolerante, que indica, de um lado, a superação de particularismos nacionais, e, de outro, a criação de um ambiente institucional que possa ser mediado pelo Direito Comparado[6].

Entretanto, venho reforçando, especialmente no âmbito das pesquisas constitucionais aplicadas, a utilidade do método comparado para além das comparações estrangeiras, direcionando suas premissas também para aquelas situações em que a participação do intérprete implique reações diferentes por parte dos diversos centros internos de poder, em virtude de sua constante, muitas vezes incômoda, atualização do ordenamento jurídico-constitucional.  

Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo principal indicar a urgente necessidade de que se instale no Brasil uma cultura legitimadora da vinculação de precedentes, especialmente do Supremo Tribunal Federal, como uma premissa metodológica comparada da atuação dos juristas. Mas, por outro lado, também chamar a atenção para a necessidade de apresentar as principais deficiências republicanas do processo que conduziu, à velocidade da luz, a suprema corte brasileira do lugar simbólico de “egrégia corte”[7] para “casa de máquinas”[8] da República.

No deslocamento que proponho aqui neste ensaio, é preciso dar destaque para uma comparação que aproxima a teoria constitucional da teoria política, não com o objetivo de enfrentar as múltiplas complexidades das tensões entre jurisdição constitucional e democracia, por exemplo, mas para jogar luzes sobre as múltiplas dificuldades que vem sendo enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal quanto à consolidação de uma cultura de vinculação a seus precedentes[9].

Júlio César Rossi destaca em seu livro Precedente Judicial à Brasileira que, no Brasil, não se tem genuínos precedentes compreendidos a partir da sistemática do common law. Nesse diapasão, afirma que os precedentes brasileiros são sui generis, pois a forma de sua criação e elaboração não os aproxima nem dos precedentes do common law nem da jurisprudência romana, uma vez que aqui no Brasil não é necessária a reiteração de julgados no mesmo sentido para que se tenha a obrigatoriedade de vinculação[10].

Na verdade, a necessidade de criação de mecanismos para garantir um mínimo de previsibilidade às decisões judiciais e ao entendimento dos tribunais, para com isso diminuir a inevitável, mas indesejável influência dos elementos intangíveis que determinam a convicção para formação da decisão judicial, é algo que se discute no Brasil há muitos anos.

O civil law carrega dogmas oriundos da Revolução Francesa, dogmas esses que servem para negar conceitos e institutos que se mostram indispensáveis diante da prática e da realidade de países que se formaram a partir da doutrina de separação estrita entre os Poderes e da mera declaração judicial da lei. Por outro lado, o common law discutiu arduamente sobre o significado da decisão judicial, ou seja, qual o significado da função jurisdicional, buscando, com isso, esclarecer se a decisão judicial era uma fonte de criação de direito ou uma declaração deste[11].

Dúvidas não há de que o papel do juiz do civil law, a quem é deferido, no sistema brasileiro, o dever-poder de controlar a constitucionalidade da lei no caso concreto, muito se aproxima da função exercida pelo juiz do common law. Entretanto, muito embora não seja contestada a aproximação dos papéis dos juízes de ambos os sistemas, apenas o common law devota respeito aos precedentes.

A ausência de uma cultura jurídica de respeito aos precedentes, como ocorre no Brasil, está fundada na falsa suposição, muito própria dos sistemas vinculados à civil law, de que somente a lei seria a decisão adequada para garantir a certeza e a segurança jurídicas. Para os adeptos dessa forma de pensar o Direito, a segurança jurídica seria garantida tão-somente pela certeza jurídica advinda da subordinação do juiz à lei. Daí a justificativa de muitos de não se vincularem a precedentes judiciais.

No entanto, essa cultura jurídica, apegada à certeza e à segurança, vem gerando uma série de confusões no mais diversos planos, sendo a base de muitos dos problemas que estão sendo apontados como a grave crise entre os Poderes da República brasileira, nos dias atuais. É preciso cautela e sobriedade, entretanto, para não cair no extremo oposto.

Todos estamos de acordo que as mudanças bruscas de orientação, a criação novidadeira de direitos e obrigações, bem como as soluções jurídicas impostas diante de problemas sociais e políticos de altíssima complexidade não podem fazer parte da rotina ordinária de uma suprema corte. Contudo, é interessante perceber também que, em algumas situações, o impulso dado pelas decisões da corte a alguns temas, nitidamente bloqueados e travados na pauta política, atualizam a República e amenizam os confrontos políticos e sociais.

A certeza jurídica, na verdade, adquiriu feições antagônicas no civil law e no common law. No common law, fundamentou o stare decisis, enquanto que, no civil law, foi utilizada para negar a importância dos tribunais e das suas decisões. É com fundamento na mesma expressão — "segurança jurídica" — que os ingleses, fortes no instituto do stare decisis, e os brasileiros, invocando o livre convencimento motivado, chegam a destinos opostos. Os ingleses propugnam pelo respeito irrestrito aos precedentes, e os brasileiros negam-se a curvar-se diante da jurisprudência de sua suprema corte.

Neste particular, é preciso lembrar a resistência que o Supremo Tribunal Federal vem enfrentando, historicamente, entre os próprios magistrados brasileiros, de ver cumpridas as suas orientações expressas sob a forma de precedentes vinculantes. O respeito às decisões e posições da suprema corte não se conduz apenas sob as penas da lei, mas, e principalmente, pela construção metódica de fórmulas dialogais de vinculações recíprocas republicanas.

Isso significa, em outras palavras, que a corte suprema brasileira tem que encontrar caminhos metodológicos mais eficientes para estimular que as demais funções de poder, por exemplo, diante do controle da omissão inconstitucional, sigam suas decisões. Ela, como instituição de cúpula do Poder Judiciário, deixou especialmente nos últimos dez anos, o seu lugar simbólico de "corte egrégia" para ocupar um lugar operativo de "casa de máquinas", de modo que tem que lidar com eco e reverberação, direta e imediata, de suas decisões no seio da sociedade.

Não vejo outra saída para legitimar essa mudança senão a de que o protagonismo judicial se curve ao protagonismo constitucional[12], pois nenhum dos Poderes, por mais nobre, mais culto, mais egrégio, que seja, pode sobrepor-se ao outro. A reflexão que o Estado Cooperativo de Direitos Fundamentais impõe, nesta quadra dos acontecimentos históricos brasileiros, é o de que o novo perfil que as sociedades conectadas exigem de todos os membros de poder e, mais diretamente, de todas as instituições republicanas, é de afinamento semântico em torno das normas constitucionais. Qualquer atitude fora dos padrões constitucionais explícitos ou implícitos conduzirá a uma imediata reação dos múltiplos centros de poder.

Não estou a defender, com isso, o esvaziamento da tarefa legislativa em prol da tarefa jurisdicional, muito pelo contrário, sempre defendi a absoluta paridade de armas de todas as funções de poder, no ambiente republicano. A minha exortação sempre se direciona para que todos os interlocutores de poder estejam fortemente comprometidos e igualmente subordinados às regras do jogo constitucional democrático.

É evidente, em nosso tempo, que o constitucionalismo passou a dar limites à lei e estabelecer contornos a esta, exigindo constantes interações entre os interlocutores de poder. Assim, deixou-se de ter uma legislação formal, passando-se a exigir também que a lei esteja em conformidade com os direitos fundamentais, tal qual conformados na jurisprudência constitucional[13].

A função das supremas cortes e cortes constitucionais ganharam um novo desafio desde então. São sempre duas faces de uma mesma moeda: a lei, no plano de sua concreta incidência, tem que respeitar a conformação que lhe é dada pela decisão judicial constitucional, mas tal decisão só será observada se respeitar a constituição e a própria lei! E aqui, fala-se em respeito como máxima incidência da igualdade e consideração.

Torna-se, portanto, salutar ressignificar o princípio da legalidade entre nós, deixando de lado seu conteúdo meramente formal para fazer sobressair seu conteúdo substancial. Isso, em tempos de anunciadas crises institucionais, implica que o Supremo Tribunal Federal não desista da busca por uma metodologia do diálogo, do aprendizado recíproco, da alteridade construtiva, que são os vetores do que venho chamando de Estado Cooperativo de Direitos Fundamentais, o que não necessariamente irá sempre ocorrer em contextos livres de tensões e irritações recíprocas.

O enfrentamento público; a violência — ainda que simbólica —; os discursos beligerantes, dentre outros mecanismos de embate que ainda são utilizados para justificar a cruzada pela legitimação forçada, não parecem ser fórmulas historicamente bem sucedidas para resolução dos problemas do condomínio republicano.

É necessário, retomando a leitura atualizadora da obra do ministro Aliomar Baleeiro[14], fomentar entre todos os cidadãos brasileiros a vontade de conhecer, na sua essência, o Supremo Tribunal Federal. A história dessa corte, as suas composições, as transformações institucionais pelas quais passou, o seu funcionamento e as vicissitudes de uma suprema corte que, ao mesmo tempo em que é a mais exposta do mundo, é também, e paradoxalmente, a mais desconhecida e labirintiforme, pois guarda em sua complexidade muito além daquilo que é dito ou apresentado pela imprensa (comum ou especializada).

Em pouco mais de dez anos, o Supremo Tribunal Federal deixou seu confortável lugar de instituição simbólica — guardiã da Constituição e da República — e passou a ocupar o espaço da casa de máquinas da Constituição e da República, gerando perplexidades e opiniões desencontradas sobre sua adequada atuação constitucional.

O que, na minha opinião, deve conduzir o porvir da suprema corte brasileira, nesses dias aparentemente tão turbulentos, mas tão próprio do ambiente de mudanças, é uma autorreflexão sustentável sobre seus métodos de atuação e sobre sua forma de operar na complexa engrenagem jurídico-política do nosso país.

Ao mudar-se do salão nobre, em que, em geral, estão alocadas as cortes supremas e constitucionais da maior parte dos países do mundo, e alojar-se na casa de máquinas da Constituição e da República brasileiras, o Supremo Tribunal Federal precisa de instrumentos, expertises e linguagens adequadas, a fim de bem desempenhar suas novas e nobres funções.

Não há como atuar satisfatoriamente no contexto de uma casa de máquinas mantendo-se com os mesmos instrumentos, atitudes e expectativas do tempo em que ocupava o espaço egrégio do salão de visitas. Por isso que afirmo: isso não é tanto, pois o tempo urge; nem tão pouco, pois se trata de viragem cultural!

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] GARGARELLA, Roberto. Latin American constitucionalism 1810-2010: The engine room of the Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2013.
[2] Do mesmo autor vide também: GARGARELLA, Roberto. Latin American constitucionalism: social rights and the ‘engine room’ of the Constitution, in Notre Dame Journal of International & Comparative Law, vol. 4, iss 1, art. 3.
[3] BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
[4] Vide: SILVA, Christine O. Peter da. Estado de Direitos Fundamentais & Cooperativo. Curitiba: Editora CRV, 2014, no prelo. Vide também: SILVA, Christine O, Peter da. Concretização Cooperativa de Direitos Fundamentais. Revista Consultor Jurídico, 21/12/2013, disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-dez-21/observatorio-constitucional-concretizacao-cooperativa-direitos-fundamentais. Acesso em 4/4/2014.
[5] Para um aprofundamento da temática vide: SILVA, Christine O. Peter da. Transjusfundamentalidade: diálogos judiciais transnacionais sobre direitos fundamentais. 2013, 274 f. Tese (Doutorado) – Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB. Disponível em http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/13876/1/2013_ChristineOliveiraPeterdaSilva.pdf. Acesso em 10/3/2014.
[6] Vide: ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do Direito Comparado. Trad. Sergio José Porto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1980.
[7] Ainda Aliomar Baleeiro: “Logo, nos primeiros momentos, Rui entoou um hino ao Supremo Tribunal, que possibilitara a todos o exercício do direito de reunião pacífica naquele momento. Rompeu um côro ensurdecedor de vivas à Corte egrégia. Foi assim que tomei consciência do Supremo Tribunal Federal e de sua missão de sentinela das liberdades públicas, vinculando-o a imagens imperecíveis na minha memória. E também na minha saudade”. BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968.
[8] Muito embora não haja coincidência absoluta com o sentido dado à expressão por Gargarella no texto “(…)social rights and the ‘engine room’ of the Constitution”, não se pode negar aqui a influência do professor argentino. Vide: GARGARELLA, Roberto. Latin American constitucionalism: social rights and the ‘engine room’ of the Constitution, in Notre Dame Journal of International & Comparative Law, vol. 4, iss 1, art. 3.
[9] Aqui é importante esclarecer que, muito embora o presente artigo esteja sendo publicado na semana em que o Supremo Tribunal Federal decidiu o referendo da MC-ADPF 402, a vinculação a precedentes do STF é tema muito antigo, que vem enfrentando muitas dificuldades, especialmente diante da implementação da sistemática da repercussão geral, introduzida pela Emenda Constitucional 45/2004.
[10] ROSSI, Júlio César. Precedente à brasileira: a jurisprudência vinculante no CPC e no Novo CPC. São Paulo: Atlas, 2015. P. 154.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Aproximação crítica entre as jurisdições de civil law e de common law e a necessidade de respeito aos precedentes no Brasil. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n.49, p. 11-58, 2009.
[12] Essa ideia já apresentei no texto “Do ativismo judicial ao ativismo constitucional no Estado de Direitos Fundamentais”, in Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 5, n. 2, 2015, p. 63-87.
[13] ALEXY,Robert. Los derechos fundamentales en el estado constitucional democrático, in Los fundamentos de los derechos fundamentales, Madrid, Trotta, 2001, p. 34.
[14] BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968.

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    é mestre e doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB, professora associada do mestrado e doutorado em Direito das Relações Internacionais do UniCeub, assessora do ministro Edson Fachin (STF) e membro do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC).

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