Limite Penal

Presunção de inocência entre Renans, Garotinhos e linchamentos

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

9 de dezembro de 2016, 7h00

Spacca
A ressaca de fazer valer a presunção de inocência no Supremo Tribunal Federal é o dilema do caso Renan Calheiros. Nesse ano de 2016 assistimos a uma absoluta violação e distorção da presunção de inocência sem precedentes na história recente do país. Iniciou com o julgamento do HC 126.292, no fatídico 17 de fevereiro, dia em que o STF autorizou a execução antecipada da pena após o julgamento de segundo grau. Foi um golpe violentíssimo e absolutamente equivocado. Admitir a execução antecipada de uma pena privativa de liberdade, na pendência de recurso (e, como já explicamos aqui[1], a questão do efeito não tem absolutamente nada que ver com o conceito de trânsito em julgado), quando a Constituição expressamente afirma no seu art. 5º, LVII que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", foi um drible hermenêutico grave. Recordemos que o conceito de 'presunção de inocência' remota ao direito romano e aos escritos de Trajano, ou seja, muito antes do Brasil ser descoberto…

Quando 'nascemos', o mundo do direito processual já sabia o que era presunção de inocência, não havendo possibilidade de o STF se arvorar no poder de estabelecer um marco zero de compreensão sobre um conceito jurídico-processual, forjado em centenas de anos de doutrina. É um conceito que possui historicidade, que não é dado a golpe de martelo por parte de um tribunal, qualquer que seja ele. É preciso compreender que se trata de um conceito com tradição e historicidade, que sobreviveu aos ataques de Eymerich e seus inquisidores, passando por Vicenzo Manzini e o fascismo.

Mas a Constituição brasileira recepcionou a presunção de inocência ou ainda está no estágio prévio, 'preparatório', da presunção de não culpabilidade? Ora, afirmar que a Constituição recepcionou apenas a “presunção de não culpabilidade” é uma concepção reducionista, que se alinha ao estágio “pré-presunção de inocência” não recepcionada pela Convenção Americana de Direitos Humanos e tampouco pela a base democrática da Constituição.

A essa altura do estágio civilizatório, Constitucional e Democrático, a Presunção de Inocência ‘não precisa estar positivado em lugar nenhum: é pressuposto – para seguir Eros – neste momento histórico, da condição humana’ (ver aqui). Ademais, temos a expressa recepção no artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.” Como já explicamos[2], o Brasil recepcionou, sim, a presunção de inocência e, como ‘presunção, exige uma pré-ocupação nesse sentido durante o processo penal, um verdadeiro dever imposto ao julgador de preocupação com o imputado, uma preocupação de tratá-lo como inocente. É a presunção de inocência um ‘dever de tratamento’ e uma 'regra de julgamento' no terreno das prisões cautelares, e a autorização pelo STF de uma famigerada execução antecipada da pena é exatamente tratar como culpado, equiparar a situação fática e jurídica do condenado. Não sem razão o artigo 5º, LVII determina uma proibição de tratar o acusado de forma igual ou análoga a de culpado, antes do trânsito em julgado.

O problema é que essa distorção e violento ataque ao núcleo da presunção de inocência foi finalmente desvelado e assumido. Não é novo, na medida em que a banalização da prisão preventiva é um problema antigo, mas está tomando proporções assustadoras.

A lógica do linchamento tem prevalecido. Por ela, a população, ciente dos diversos casos de corrupção, supera os limites coletivos e dispara o gatilho da punição de todos que se apresentam como possíveis corruptos. Dizemos possíveis porque somente a decisão condenatória pode apontar essa situação. Mas como ela demora (e deve demorar se houver julgamento sem tantas emoções), surgem atalhos fogosos de antecipação de todos os efeitos da pena. O perigo dessa lógica é que qualquer situação de possível crime receberá o tratamento imediato de linchamento. Depois de linchado, pouco resta. O processo deve(ria) ser o limite.

Seguiram-se as prisões simbólicas e sem qualquer caráter cautelar, de Eduardo Cunha, Garotinho, Sergio Cabral e agora de sua esposa Adriana. Todas prisões desnecessárias porque despidas de concretude cautelar, carentes de um suporte fático real e concreto para sustentar o periculum libertatis. Antes que algum maniqueísta de plantão grite que estamos defendendo impunidade, é preciso estudar e tratar da questão com seriedade. Punir é necessário e civilizatório. Para isso, é preciso seguir as regras do jogo, ou seja, prender para executar uma pena definitiva é correto e legítimo. Mas para prender antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória é preciso que exista cautelaridade real, necessidade concreta, excepcionalidade demonstrada. Não é isso que estamos vendo.

Superando a zona de tensão prisão-liberdade, que deveria ser mediada pela presunção de inocência, assistimos agora ao afastamento do Senador Renan Calheiros, através de uma decisão monocrática e liminar. Lenio Streck[3] vai explicar que não é isso que diz o artigo 86, parágrafo 1º, inciso I, da Constituição da República. "Esse dispositivo só impede que o presidente do Senado venha a assumir a Presidência da República eventualmente, quando isso venha a acontecer. O dispositivo não impede que o Senador Renan fique na presidência do Senado. Essa interpretação é demasiado elástica", afirma.

Na dimensão da presunção de inocência, a decisão monocrática do STF constitui mais um golpe violento na eficácia da garantia constitucional. Para se justificar a medida liminar, ela deveria efetivamente ter 'cautelaridade', é dizer, para além do fumus boni iuris, deveria estar demonstrado o periculum in mora[4]. Não existia uma situação de possível substituição no cargo de Presidente da República, pois não se demonstrou uma situação de afastamento, nem mesmo uma agenda de viagens iminentes do Presidente da República.

Como se não bastasse, é mais um golpe violento na presunção de inocência, para fechar o ano. Renan Calheiros deve ser tratado como acusado, sequer condenado e muito menos com trânsito em julgado. Está sendo afastado diante de uma mera acusação. Para isso, deveria o afastamento revestir o caráter de cautelaridade, com demonstração de um suporte fático concreto, com suficiência de fumus boni iuris e periculum in mora, no âmbito da ação penal e não na ADPF n. 402. Não vislumbramos nada disso. Por último, não está em discussão o julgamento moral do Senador Renan Calheiros, senão jurídico. Um processo judicial, especialmente nessa dimensão punitiva, não é uma valoração de simpatia ou antipatia, moralista. É um ritual de exercício de poder e, como todo poder, precisa ser condicionado e legitimado pela estrita observância da legalidade e, no caso de medidas cautelares, estrita necessidade.

A vingar a lógica, qualquer servidor público, com denúncia recebida, deveria ser afastado de suas funções automaticamente, sem sequer poder ter o processo. A lógica de inversão “moralista” da presunção de inocência encontra esteio na desilusão cotidiana das promessas não cumpridas por uma classe política alheia aos desafios republicanos. Só não podemos transformar o processo penal em meio para se comprovar a inocência porque ele surge para o inverso. Podemos gostar ou não dos acusados, mas negar-lhes o devido processo legal é sinônimo de barbárie, de linchamento processual. Funciona como se a vingança imediata, na ebulição dos acontecimentos, com o sangue quente, pudesse devolver a plenitude, chegando ao ponto de alguns terem como uma responsabilidade pessoal, em nome do grupo e de uma moral pública qualquer, desprovida de tempo de reflexão. Parte-se para o ato de ódio pessoalizado. Punição a jato.

Não está em discussão se gostamos ou não de Renan Calheiros, Garotinho ou Eduardo Cunha[5]. Não é disso que se trata. Da mesma forma, não pode e não deve o STF julgar a partir de expectativas sociais criadas. Não pode e não deve julgar a partir dos gritos de uma multidão ensandecida, porque esse não é o seu papel. Todo o oposto. O STF (ou qualquer julgador penal) tem o dever de corresponder às expectativas jurídico-constitucionais criadas, especialmente o de buscar a máxima eficácia do sistema de garantias da Constituição, devendo inclusive julgar de forma contra-majoritária quando necessário. Talvez a missão mais nobre do STF seja exatamente essa: dizer não, em nome da Constituição e da presunção de inocência. Só não pode fazer zigue-zague hermenêutico.

 


[1] http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/limite-penal-fim-presuncao-inocencia-stf-nosso-juridico

[2] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 13a edição. São Paulo, Saraiva, 2016.

[3] http://www.conjur.com.br/2016-dez-06/advogados-questionam-afastamento-renan-presidencia-senado

[4] E aqui recorremos aos tradicionais conceitos civilistas porque não é caso de prisão, pois se fosse, deveriamos falar em 'fumus commissi delicti' e ' periculum libertatis'.

[5] http://www.conjur.com.br/2016-out-28/limite-penal-prisao-preventiva-alem-gostarmos-ou-nao-eduardo-cunha

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    é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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