Instituto em xeque

"Não há provas de que delação gere novos resultados na investigação"

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9 de dezembro de 2016, 8h35

Contrário à colaboração premiada, o professor doutor da Universidade Autônoma de Lisboa Manuel Monteiro Guedes Valente entende que o instituto põe em xeque fundamentos éticos, políticos e jurídicos do Estado. No entendimento dele, a delação serve apenas para trazer maior eficácia ao momento sem termos consciência dos efeitos no futuro.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Manuel Valente disse que o instituto deve respeitar a trilogia da autodeterminação da vontade: a liberdade de pensar, de decidir e de agir. “Duvido que a mesma seja respeitada, tendo em conta que a pessoa não se dirige às autoridades policiais ou judiciárias para delatar. Ela delata depois ter sido detida e submetida a medidas cautelares. Ou seja, depois de estar presa”, afirmou, ressaltando que não há provas de quem sem a colaboração do delator não se alcançaria os mesmos resultados na investigação.

O professor defendeu ainda o segredo de Justiça na fase inicial das investigações para que o indiciado e vítima não sejam expostos na imprensa como se fossem “mercadorias midáticas”. O jurista português ainda criticou o patrogonismo do Judiciário. “Não é só perigoso, é negativamente nefasto para a credibilidade da Justiça e da democracia. Eu sou contra o protagonismo de pessoas que desempenham funções de soberania, com exceção da política. Mesmo neste campo, o protagonismo deve ser do país e do povo e não de uma só pessoa”, ponderou. 

Coordenador científico do mestrado em Direito da Universidade Autônoma de Lisboa e professor convidado do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Pública, Manuel Valente participou na última semana do V Seminário Nacional do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP), em Salvador. O jurista português falou sobre “os meios ocultos da investigação criminal”.

Leia a entrevista:

ConJur — Como o senhor vê a operação “lava jato”, que acontece no Brasil?
Manuel Valente — 
Como sabe, não conheço o processo em concreto, nem com o mínimo de profundidade, uma vez que não sou brasileiro. Mas, do que tenho conhecido pela imprensa e por contato com vários amigos do Brasil, vejo com alguma preocupação, em especial nos campos científico-jurídico e político-econômico. No caso da Itália, a gente sabe que o país não ficou melhor do que estava antes da operação Mãos Limpas. O próprio Di Pietro o reconheceu recente e publicamente. Aqui, precisamos  ter em conta vários aspectos. Um deles é: que país vamos ter depois dessa operação? É preciso fazer uma análise sobre os efeitos econômicos, sociais e políticos do país do ponto de vista interno e externo. Como se sabe, houve uma queda dos investimentos estrangeiros no Brasil, empresas quase paralisadas ou paralisadas, e, como consequência, um aumento do desemprego. O doente não pode morrer da cura, sob pena de se inutilizar e provocar efeitos perversos na sociedade. Uma coisa é a análise da intervenção ou de uma operação em concreto, outra coisa é o modo como o processo-crime se desenvolve dentro de um quadro constitucional penal material e processual. Aqui reside a minha maior preocupação, quando se opta por aplicar, em um processo específico, um Direito Penal material e processual que não está legislado e não faz parte da ordem jurídica material, violando o princípio da legalidade penal, o princípio da igualdade penal, o princípio tipicidade penal, o princípio da autonomia da vontade assente na ratio iuris, princípio da lealdade e democraticidade do processo, o princípio da constitucionalidade. Preocupa-me, como professor de Direito Penal, que se esteja a delapidar os valores da humanidade que são um legado dos nossos antepassados, conquistado com o sangue de muitos seres humanos, e que devíamos estar a defendê-los. O que não acontece. Esta opção de coisificação do ser e de máxima eficácia, vai trazer efeitos nefasto no futuro dentro sistema Judiciário criminal do Brasil. Existe uma coisa positiva que é a consciencialização do fenômeno da corrupção e dos seus efeitos negativos na sobrevivência da democracia, mas essa consciência não se compagina com uma destruição do patrimônio axiológico humano construído ao longo dos últimos anos, que não pode ser colocado de lado quando se persegue os agentes de um determinado tipo ou tipologia de crime.

ConJur — É perigoso o protagonismo do Judiciário?
Manuel Valente — Não é só perigoso, é negativamente nefasto para a credibilidade da Justiça e da democracia. Eu sou contra o protagonismo de pessoas que desempenham funções de soberania, com exceção da política. Mesmo neste campo, o protagonismo deve ser do país e do povo e não de uma só pessoa. Os juízes, por meio do Tribunal, desempenham uma nobre função de soberania: a administração da Justiça em nome do povo. Esta função exige recato. Mas recato quanto à sua função e não quanto à sua vida social, recato quanto às decisões e não enclausuramento social. Os juízes têm as suas opções de vida, têm de conhecer o mundo e a sociedade para melhor decidir; mas as suas decisões de soberania devem ter um recato. Não lhes devia ser permitido utilizarem o mundo do midiático para justificar as sua decisões ou justificar as opções jurídicas, porque têm um espaço específico para o fazer: o tribunal. O bom juiz não é aquele que é aplaudido em praça pública, é aquele que decide com justiça, mesmo que seja contra a vontade do povo. Pede-se-lhe se faça justiça, mas que não seja justiceiro.

ConJur — O que o senhor pensa sobre o instituto da delação premiada?
Manuel Valente — Não sou axiologicamente a favor da delação premiada. O que está em causa são fatores de legitimidade do Estado. O Estado lida com a confiança das pessoas. A força de um Estado constitucional democrático assenta nas relações de confiança dos seus seres humanos. Quando o Estado usa institutos que mexem com a confiança das pessoas, que a destroem, coloca em dúvida e em causa a sua própria sobrevivência. Não está provado que sem delação premiada não se conseguiria alcançar os mesmos resultados. A delação premiada serve apenas para trazer maior eficácia ao momento sem termos consciência dos efeitos no futuro: opta-se pela eficácia do momento e olvida-se a eficiência final do resultado. Outra questão é saber se com a delação premiada existe a trilogia da autodeterminação da vontade: liberdade de pensar, liberdade de decidir e liberdade de agir. Duvido que a mesma seja respeitada, tendo em conta que a pessoa não se dirige às autoridades policiais ou judiciárias para delatar, ela delata depois ter sido detida e submetida a medidas cautelares, ou seja, depois de estar presa. Considero que a própria delação premiada põe em causa os melhores e maiores fundamentos éticos, políticos e jurídicos da autoridade do Estado: a superioridade ética do Estado e a dignidade da pessoa humana. Portugal não tem o instituto da delação premiada e espero que nunca opte por esses caminhos. Do que conheço da Constituição do Brasil e da ordem jurídica brasileira, tenho muitas dúvidas quanto a sua conformidade com a Constituição democrática.

ConJur — O senhor é a favor de que processos criminais sejam sigilosos?
Manuel Valente — 
Na fase inicial do processo, sim. Todos os processos crimes deviam, inicialmente, correr sob segredo de Justiça para tutela efetiva dos direitos fundamentais pessoais das pessoas envolvidas: vítimas e suspeitos da prática do crime. Considero que o segredo de Justiça não deve ter como escopo a tutela da boa investigação. O verdadeiro escopo do segredo de Justiça nos Estados constitucionais democráticos deve ser a defesa de direitos pessoais dos envolvidos: imagem, palavra, bom nome e reputação, honra, reserva da intimidade da vida privada e familiar. Quando isso não acontece, a pessoa suspeita — e quantas vezes as vítimas — passa a cumprir uma pena antes da decisão transitada em julgado. Há uma censura social que ultrapassa a censura ético-jurídica. Para tramitar em sigilo, toda matéria deve estar no âmbito do Direito Penal. Mas também penso que mais de 80% das matérias, que estão no espaço do Direito Penal, não deveriam estar. Hoje, se queremos resolver um problema de Direito Civil, usamos o Direito Penal. Se for no âmbito Direito Administrativo, também se recorre ao Direito Penal. Temos colocado o Direito Penal em espaços de intervenção jurídica que não é o seu. Temos de voltar a afirmar o Direito penal de ultima et extrema ratio e abandonar o paradigma do Direito penal de prima et sola ratio. Então, se eu restringir o núcleo central da intervenção do Direito Penal, diminui o número de processos-crime. E, aí, o segredo de Justiça pode ocorrer na fase inicial do processo com maior legitimidade e legalidade. O que está em causa são os direitos fundamentais das pessoas do investigado, do indiciado e das vítimas, que são expostos/as sem sua vontade.

ConJur — O segredo de Justiça não viola o princípio da publicidade?
Manuel Valente — Não. O segredo de Justiça só deve ser admitido até um certo momento do processo. O segredo de Justiça deve, apenas e tão-só, ocorrer na fase inicial para evitar que o indiciado e vítima vejam tudo exposto na imprensa, evitar que sejam enxovalhados e evitar que sejam utilizados como se fossem “mercadoria” midiática. Até porque, com o modelo de publicidade total, se o Tribunal entender e declarar que aquela pessoa é inocente, para a sociedade será sempre culpada. O segredo de Justiça deve durar até ao terminar a fase inicial do processo — inquérito — sob controlo jurisdicional, como acontece em muitos países, como ocorre em Portugal para a maior parte dos processos-crime em que o segredo de Justiça é decretado e ratificado pelo juiz das liberdades.

ConJur — O senhor é contra o inquérito policial?
Manuel Valente — A questão não se deve colocar dessa forma, melhor, o ser a favor ou o ser contra não é o problema principal. O problema é outro. Veja que Portugal abandonou o inquérito policial em 1945. E, com o CPP/87, a cuja Comissão presidiu o decano Jorge de Figueiredo Dias, a atividade da Polícia criminal de iniciativa própria passou a ser integrada na fase preliminar do processo e a ser a posterior consumida e integrada como sendo atividade processual por meio da decisão da autoridade judiciária. O inquérito policial deve estar ab initio ou a posteriori dentro do processo. Não posso ter uma fase processual tão relevante para os indiciados e as vítimas que não esteja dentro do processo ou que seja considerada como não processo.

ConJur — Há um empoderamento do Ministério Público de forma mundial?
Manuel Valente — Não me parece. Na Europa isso não acontece até porque, em alguns modelos europeus, as atribuições e competências estão bem especificadas. É um problema quando o Ministério Público e o Judiciário querem ocupar um espaço que não é o dele. O Ministério Público quer ser juiz, o juiz quer ser polícia e a polícia quer Ministério Público ou juiz. A não aceitabilidade da indisponibilidade das competências encerra-se em casos pontuais e concretos, assim como os atores pessoais são identificáveis, que são facilmente desmitificados. Outra coisa é a midiatização da Justiça criminal em que o Ministério Público ou outro ator de Justiça criminal procura avocar todo o espaço de protagonismo que deve ser de todos os atores. Assim como o juiz deve ter recato, todos os outros atores de Justiça criminal devem ter recato e evitar uma exposição que com rapidez se deteriora e corrói os valores da Justiça.  

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