Garantias do Consumo

Sociedade precisa da aprovação do projeto que trata e previne superendividamento

Autor

  • Leonardo de Medeiros Garcia

    é procurador do Estado do Espírito Santo e diretor do Brasilcon. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP professor de pós-graduação autor de livros nas áreas de Direito do Consumidor e Ambiental assessorou do relator no Senado Federal do PL 3.515/2015.

7 de dezembro de 2016, 7h03

Embora o Código de Defesa do Consumidor seja uma norma atual e avançada, apta a contemplar os desafios das mudanças há 26 anos, não significa que não careça de atualização, a fim de regulamentar melhor novos temas que não eram presentes quando de sua edição, em 1990.

Neste período houve acréscimo de novas tecnologias, com outras técnicas de contratação, principalmente por meios à distância, como o comércio eletrônico; acesso ao crédito às camadas da população que antes estavam excluídas e novos desafios de acesso à justiça.

Segundo a Febraban, o crédito para pessoa física aumentou oito vezes e hoje já é responsável por quase metade do crédito por todo o sistema financeiro brasileiro, propiciando uma explosão do crédito ao consumidor no Brasil. Por sua vez, a insolvência aumentou, falando-se em “ressaca do crédito” e “hiperconsumo” das classes C, D e E no Brasil.[1]

Este fenômeno ainda se agravou substancialmente em razão da maior crise econômica que o país já vivenciou. O aumento do desemprego, o “achatamento” do poder de compra, o aumento dos juros, entre outros, fez crescer o número de consumidores superendividados.

Assim, a necessidade de se tratar especificamente do “superendividamento” tornou-se realidade atual, haja vista que tal fenômeno não afeta somente o endividado, mas toda sua família, trazendo consequências sociais danosas.

O PL 3.515/2015, fruto do consenso entre vários setores (incluindo a Febraban), originou-se no Senado Federal, através do PLS 283/2012, em que teve como relator o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), que conseguiu conciliar o diálogo dos diversos setores da sociedade, propiciando a aprovação do relatório final no final de 2015.

Em 2016 o projeto seguiu para a Câmara dos Deputados, estando atualmente na Comissão de Defesa do Consumidor desta Casa, com a relatoria do deputado Eli Corrêa Filho (DEM-SP).

No último dia 23 de novembro foi feita na Câmara dos Deputados audiência pública abordando o tema do superendividamento, com a presença de diversos setores e órgãos da administração pública: Procuradoria Geral da República, Ministério da Justiça, Associação Nacional de Birôs de Crédito, Febraban, Brasilcon e Conselho de Defesa do Consumidor da OAB Nacional.

Como autora do projeto, a professora Cláudia Lima Marques, representando o Brasilcon e a Comissão de Direito do Consumidor da OAB, defendeu a importância e a necessidade de aprovação do projeto de lei respeitando o acordo alcançado no Senado Federal, para que o Brasil tenha um aparato legislativo específico sobre o assunto, facilitando a adoção das providências cabíveis para se evitar que o superendividamento continue galgando patamares ainda mais elevados.

Todos os convidados que expuseram na audiência pública, inclusive o Instituto Alana também presente, manifestaram no mesmo sentido da necessidade do tratamento e da prevenção do superendividamento, referendando as palavras da professora Cláudia Lima Marques pela aprovação do projeto de lei com o texto aprovado no Senado Federal, fruto de intenso e longo consenso.

Enquanto não aprovado este projeto, os casos concernentes ao superendividamento estão sendo tratados extrajudicialmente e judicialmente com fundamento nas normas jurídicas vigentes, não existindo diploma legal satisfatório para a sua prevenção e resolução pelos instrumentos que compõem a Política Nacional das Relações de Consumo.

Dentre as grandes novidades que o projeto apresenta, inserindo o Brasil na lista dos países que possuem legislação específica para o tratamento do superendividado, a inclusão expressa, como objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo, a prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor.

Como sabemos, o artigo 4º é um dos artigos mais importantes do CDC, justamente por orientar a interpretação do operador do direito. De cunho principiológico, o artigo 4º prevê os objetivos e princípios a serem seguidos pelo intérprete. Nas palavras de Eros Grau[2] “o intérprete deve repudiar qualquer solução interpretativa que não seja adequada à realização daqueles fins inscritos na norma objetivo do art. 4º” do CDC.

Para o atendimento da Política Nacional das Relações de Consumo, o projeto prevê como instrumento a instituição de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento, possibilitando que o sujeito em desequilíbrio financeiro extremo possa se reabilitar perante o mercado de modo eficaz.

No rol dos direitos básicos, foram propostos três novos incisos prevendo e garantindo práticas de crédito responsável, educação financeira, prevenção e tratamento das situações de superendividamento, com a preservação do mínimo existencial, através da revisão e repactuação da dívida, entre outras medidas.

É fundamental a educação e a conscientização da população sobre a necessidade da organização financeira, de modo a prevenir o superendividamento, garantindo condições mínimas de sobrevivência (preservação do mínimo existencial).

De modo inovador, o PL 3.515/2015 prevê um capítulo específico sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, entendendo este como a impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial.

O projeto detalha a importância da devida informação a ser fornecida ao consumidor na hora da contratação do crédito, de modo a que reflita e tenha condições de avaliar a possibilidade de enquadrar a nova dívida dentro do seu orçamento. Mais do que isso, caberá ao fornecedor, nos moldes da boa-fé objetiva e do dever de cooperação, avaliar a capacidade e as condições de o consumidor pagar a dívida contratada, inclusive com a averiguação da existência do nome do consumidor nos órgãos de proteção ao crédito.

Também há previsão sobre um dos maiores vilões do superendividamento: o crédito consignado. Não poderá, agora de maneira expressa e não mais dependendo da interpretação jurisprudencial, conceder crédito consignado em que a soma das parcelas reservadas para pagamento seja superior a 30% da remuneração líquida do consumidor. E mais: o consumidor ainda terá 7 dias para se arrepender da contratação do crédito consignado, possibilitando ao mesmo um prazo de reflexão para avaliar a necessidade e condições de pagamento do crédito oferecido.

Muitas vezes o consumidor á assediado e pressionado a contratar o crédito. Com a previsão da ampla informação e dever de cooperação do fornecedor no fornecimento do crédito, somado à limitação dos 30% da remuneração líquida e também a possiblidade do direito de arrependimento, certamente fará com que o crédito consignado seja utilizado de maneira correta e responsável, enquadrando o país com uma das legislações mais modernas do mundo sobre a temática.

Finalmente, o projeto atualiza o Código de Defesa do Consumidor para estabelecer regras e parâmetros claros sobre a conciliação no superendividamento. Com o abarrotamento de processos no judiciário, é preciso urgentemente incentivar métodos alternativos de conciliação, propiciando economia aos cofres públicos (um processo custa em média R$ 3 mil ao poder público), bem como celeridade na solução de conflitos.

Assim, caberá aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor promover a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, nos moldes do promovido pelo magistrado. Com a presença de todos os credores, o consumidor poderá apresentar proposta de plano de pagamento com prazo máximo de 5 (cinco) anos, preservados o mínimo existencial.

Caso não haja a conciliação, poderá haver um plano judicial compulsório, em que o magistrado, avaliando o caso concreto, através do grau de endividamento do consumidor, bem como o quanto ele já pagou da dívida, entre outras condições, fixará os termos e condições do pagamento da dívida, permitindo que o consumidor volte novamente a ter dignidade na sociedade de consumo.

Diante da maior crise econômica que o país vive, a Câmara dos Deputados poderá, através da aprovação do PL 3.515/2015, participar do processo de retomada do crescimento e, ao mesmo tempo, promover a valorização da dignidade da pessoa humana, fomentando o acesso ao crédito de maneira responsável e, caso necessário, alternativas de soluções de conflitos financeiros entre consumidor e fornecedor, inserindo o Brasil no rol dos países com legislações modernas e eficazes.

A sociedade brasileira conta com o apoio do relator do PL 3.515/2015, deputado Eli Correa Filho (e demais membros da Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados), para que assuma o protagonismo desta empreitada e promova as mudanças que nossa sociedade tanto precisa para tratar adequadamente do tema do superendividamento.


[1] Caderno de Investigações Científicas – Volume 1, Prevenção e Tratamento do Superendividamento. Escola Nacional de Defesa do Consumidor; elaborado pela Professora Cláudia Lima Marques e  pelas juízas Clarissa Costa de Lima e Káren Bertoncello – Brasília: SDE/DPDC, 2010, pg.18.
[2] GRAU. Eros Roberto. Interpretando o Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 5, RT, pg. 166.

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    é procurador do Estado do Espírito Santo e diretor do Brasilcon. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP, professor de pós-graduação, autor de livros nas áreas de Direito do Consumidor e Ambiental, assessorou do relator no Senado Federal do PL 3.515/2015.

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