Direito Civil Atual

Considerações sobre direitos do autor de obra de arte (parte 2)

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5 de dezembro de 2016, 7h00

Spacca
Humberto Martins [Spacca]Na coluna anterior, trouxemos aos leitores da coluna Direito Civil Atual a primeira parte dos comentários sobre direitos do autor de obra de arte, a partir de caso concreto apreciado pela 2ª Turma da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça.

Nesta coluna, daremos continuidade à análise do tema à luz do julgado (REsp 1.422.699/SP), lembrando que é enriquecedor apreciar controvérsias que, como esta, nos impulsionam ao estudo e à investigação. Afinal, o Direito da Arte e o Direito do Autor têm objetos de estudo interessantíssimos, que se reforçam mutuamente, tanto para manter parte de uma estrutura já conhecida quanto para erigir o muito que ainda há por explorar.

Retomando o caso concreto, o tribunal regional havia confirmado a sentença quanto ao fato de ter a empresa pública ré reproduzido presépio artístico em 2 milhões de selos, sem prévia e expressa autorização da artista plástica. O aresto de origem destacou que a venda da obra não retira a titularidade da autoria e a intangibilidade intelectual, nem possui “o condão, objetivamente, da transmissão de outras figuras inerentes ao direito autoral, diversas do intrínseco mister de exposição de ditas peças ao colegiado/coletividade que a assim visitar naquele museu”. [1]

À época do ilícito civil, vigia a anterior Lei de Direitos Autorais (Lei 5.988/1973), que conceituava a reprodução como “a cópia de obra literária, científica ou artística, bem como de fonograma” (artigo 5º, inciso IV). A atual Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998), preservou tal conceito, acrescentando, porém, que reprodução é “a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido” (artigo 5º, inciso VI).

O direito autoral de reprodução abrange tanto o todo quanto a parte ou o fragmento da obra, independentemente de se reproduzi-la direta (impressão, gravação, etc) ou indiretamente (transcrição), ou do número de exemplares reproduzidos (um ou vários). É suficiente que a reprodução assuma uma exteriorização tangível (corpus mechanicum), tal como se nota, por exemplo, na escrita, no áudio, no visual, no audiovisual e no digital. A proteção do direito de reprodução prescinde do propósito para o qual a obra foi reproduzida, seja com fins lucrativos (reprodução comercial) ou não lucrativos (reprodução cultural, acadêmica, beneficente), seja no interesse público ou privado. Por ser direito e garantia individual do autor, a reprodução da obra exige prévia e expressa autorização deste ou do titular derivado do direito. [2]

O contrato escrito ou o falecimento do autor podem dar ensejo à aquisição derivada dos direitos autorais. Esclarece, a propósito, Hildebrando Pontes:

“Com a sua morte, opera-se a transmissão dos direitos econômicos de sua produção intelectual aos herdeiros e sucessores, se houver. Caso inexistam, a obra cairá, automaticamente, em domínio público. Portanto, a transmissão só poderá ocorrer enquanto a obra estiver protegida. […]. Os direitos patrimoniais de autor são transferidos mediante contratos escritos comutativos e onerosos. Como os negócios jurídicos autorais impõem interpretação restritiva, por esse só fato ela também se estende aos contratos: o que não for estabelecido por expresso pelas partes considera-se não convencionado.” [3]

A mera transmissão da propriedade da obra (a um museu, por exemplo) não se confunde com a transmissão dos direitos patrimoniais do autor. [4] Não obstante a obra tenha um corpus mechanicum (cuja propriedade é passível de transmissão), ela também é dotada de um corpus mysticum (vinculado à criação intelectual). Diz-se, portanto, que os direitos do autor pertencem exclusivamente a este, cabendo-lhe, nos termos dos artigos 11, 28 e 29 da Lei de Direitos Autorais vigente, utilizar, fruir e dispor de sua obra literária, artística ou científica, ressalvado o direito de sucessores pelo prazo legal subsequente ao falecimento do autor. [5]

Unânime em negar provimento ao recurso especial da empresa pública, o julgado da Segunda Turma enfatizou que:

(I) Não procede a tese da empresa pública de que a reprodução da obra em selos não teve finalidade comercial e de que, uma vez grafado o nome da artista plástica, foram respeitados os direitos autorais. É suficiente, para fins de responsabilidade civil objetiva, a utilização da obra, no todo ou em parte, sem autorização prévia e expressa do autor, para que o direito deste seja violado, a despeito de o contrafator ser pessoa de direito público ou privado ou de o ato ilícito ter ou não fins comerciais.

(II) Não vinga o argumento da recorrente de que a artista plástica, ao vender a obra para museu, transferiu, automaticamente, o direito de reprodução e exposição da obra ao público. Ocorre que, sendo os direitos morais do autor inalienáveis e irrenunciáveis, haveria, no caso, tão somente a possibilidade de transferência dos direitos patrimoniais da autora por meio de contrato escrito, oneroso e comutativo (o qual, na realidade, foi celebrado entre a artista plástica e o museu, revelando-se a empresa pública totalmente estranha ao negócio jurídico). [6]

Em suma, a transmissão do direito de propriedade da obra não priva o criador do direito de defender sua criação e de auferir os resultados patrimoniais que sua exposição possa gerar, assim como de evitar sua utilização por terceiro, sob quaisquer modalidades, sem sua prévia e expressa autorização. Violar a obra do autor equivale a violar, para além de seu patrimônio, sua personalidade.

Claro está que várias circunstâncias e necessidades clamam por uma solução jurídica. São elas, a meu entender, que vão conferindo forma (e formas) ao Direito, este instrumento a serviço da sociedade que também não escapa de ser julgado, mas segue sua missão de, dia a dia, dar resposta a tais chamados.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


1 TRF 3ª Região, Turma Suplementar da Primeira Seção, AC – Apelação Cível – 384245 – 0939391-05.1987.4.03.6100, Rel. Juiz Convocado Silva Neto, julgado em 29/10/2008, DJF3 DATA: 19/11/2008.

2 Nesse sentido: ANTEQUERA PARILLI, Ricardo. El nuevo régimen del derecho de autor en Venezuela. Caracas: Autoralex, 1994, p. 238.

3 PONTES, Hildebrando. O regime jurídico dos criadores de obras de artes plásticas e os seus titulares. In. MAMEDE, Gladston; FRANCA FILHO, Marcílio Toscano; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Orgs.). Direito da arte… p. 282-283.

4 “Uma primeira observação é que o legislador utilizou, ao enumerar o capítulo, a expressão transferência ou, se preferir, o verbo transferir, mas em várias passagens fala em cessão, podendo-se desde já adiantar que essa disciplina em nada altera a anterior. […] Como se sabe, os direitos patrimoniais ou pecuniários do autor são transferíveis não apenas por morte, mas igualmente em vida. A possibilidade de transferência desses direitos pode ser efetuada, estando o artista ou o titular do direito vivo, por meio da cessão de direitos, que é uma das modalidades das sucessões inter vivos.” (PELLEGRINI, Luiz Fernando Gama. Direito autoral do artista plástico. 3. ed. São Paulo: Letras Jurídicas, 2015, p. 173).

5 Nos termos da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998:

Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.

Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste artigo.

Art. 42. Quando a obra literária, artística ou científica realizada em coautoria for indivisível, o prazo previsto no artigo anterior será contado da morte do último dos coautores sobreviventes.

Parágrafo único. Acrescer-se-ão aos dos sobreviventes os direitos do coautor que falecer sem sucessores.

Art. 43. Será de setenta anos o prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre as obras anônimas ou pseudônimas, contado de 1° de janeiro do ano imediatamente posterior ao da primeira publicação.

Parágrafo único. Aplicar-se-á o disposto no art. 41 e seu parágrafo único, sempre que o autor se der a conhecer antes do termo do prazo previsto no caput deste artigo.

Art. 44. O prazo de proteção aos direitos patrimoniais sobre obras audiovisuais e fotográficas será de setenta anos, a contar de 1° de janeiro do ano subsequente ao de sua divulgação.

(…)

Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público:

I – as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores;

II – as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.

6 DIREITO AUTORAL. DIREITO DA ARTE. REPRODUÇÃO DE PRESÉPIO ARTESANAL EM SELOS POSTAIS PELOS CORREIOS. DIREITOS DO AUTOR. EXCLUSIVOS DO CRIADOR INTELECTUAL. POSSIBILIDADE DE AQUISIÇÃO DERIVADA DE DIREITOS DO AUTOR POR CONTRATO ESCRITO OU PELOS HERDEIROS E SUCESSORES ANTE O FALECIMENTO DO CRIADOR INTELECTUAL. AUSÊNCIA, IN CASU, DE AUTORIZAÇÃO PRÉVIA E EXPRESSA DA ARTISTA PLÁSTICA. VIOLAÇÃO DO DIREITO AUTORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DOS CORREIOS.

1. Na origem, a artista plástica propôs ação de indenização contra os Correios, sob o argumento de que a obra intelectual de sua criação denominada "Presépio de São José dos Campos", destinada a um museu, foi fotografada pelos Correios e comercializada mediante tiragem de 2.000.000 (dois milhões) de selos, sem pedido de cessão de direitos autorais nem pagamento de direitos patrimoniais.

2. O Direito da Arte é, atualmente, uma disciplina com estatuto epistemológico próprio. A obra de arte é protegida pelo direito brasileiro desde o ato de sua criação, prescindindo do cumprimento de demais formalidades. Ao autor (criador) cabe dar o destino à obra (objeto), mediante seu livre arbítrio, cabendo-lhe exclusivamente decidir sobre eventuais utilização, publicação e reprodução de sua criação.

3. A expressão artística é um direito individual, de modo que a reprodução da obra deve ser autorizada prévia e expressamente pelo autor ou titular do direito. Basta a reprodução total ou parcial da criação intelectual para que seja violado o direito autoral, sendo irrelevantes a quantidade (se um exemplar ou vários) e a finalidade (comercial ou não).

4. O direito do autor é híbrido e, portanto, composto de direitos morais (cuja natureza jurídica é a de direitos da personalidade) e patrimoniais. Logo, "enquanto direitos morais são inalienáveis, incessíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, intransmissíveis; os direitos patrimoniais, ao contrário, alienáveis, cessíveis, prescritíveis, penhoráveis, transmissíveis" (CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Requisitos fundamentais para a proteção autoral de obras literárias, artísticas e científicas. Peculiaridades da obra de artes plásticas. In. MAMEDE, Gladston; FRANCA FILHO, Marcílio Toscano; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Orgs.). Direito da arte… p. 307-308).

5. Os direitos do autor pertencem exclusivamente a este, ao qual cabe utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.

6. A aquisição derivada de direitos autorais somente ocorre por contrato escrito ou pelo falecimento do autor. 6.1. Os direitos patrimoniais do autor transferem-se por contratos escritos, comutativos e onerosos. Como os negócios jurídicos autorais devem ser interpretados restritivamente, considera-se não convencionado o que não constar expressamente do contrato celebrado entre as partes. 6.2. Quando o autor falecer, existindo herdeiros e sucessores, a estes serão transmitidos os direitos econômicos da produção intelectual; porém, não existindo herdeiros e sucessores, a obra cairá em domínio público automaticamente.

7. O fato de a obra ser vendida a pessoa física ou jurídica (de direito público ou privado) não retira do autor a prerrogativa de defender a sua criação, de auferir os proventos patrimoniais que a exposição de seu trabalho ao público venha a proporcionar, bem como de evitar possível utilização por terceiros, sob quaisquer modalidades, sem sua autorização prévia e expressa.

8. Uma vez incontroverso o nexo de causalidade entre a conduta administrativa e o dano causado à particular, configura-se a responsabilidade civil objetiva por parte dos Correios, estes sem qualquer direito sobre a obra intelectual alheia, tornando-se indenizável a violação do direito autoral.

Recurso especial improvido. (REsp 1.422.699/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 1º/9/2015, DJe 24/9/2015.)

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