Opinião

PL peca ao dispôr sobre violação às prerrogativas da advocacia

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

5 de dezembro de 2016, 5h24

Na calada da noite, enquanto o país chorava pelos mortos e feridos no horrível acidente que vitimou dezenas de pessoas, na maioria atletas e jornalistas brasileiros, os senhores deputados federais aprovavam projeto de lei que pode criar diversas normas penais incriminadoras, muitas de flagrante inconstitucionalidade.

Vamos analisar apenas dispositivos inseridos a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil, que pretendem criminalizar a violação das prerrogativas dos advogados.

Não negamos a importância de serem observadas prerrogativas de todas as profissões e não apenas as dos advogados.

Contudo, várias normas constantes do projeto de lei padecem de manifesta inconstitucionalidade.

Foi aprovado tipo extremamente aberto que pune a violação por membros do Ministério Público, do Poder Judiciário ou por autoridade policial, inclusive seus servidores, das prerrogativas dos advogados previstas nos incisos I a V do artigo 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. [1]

Do princípio da reserva legal decorre que a norma penal incriminadora deve ser taxativa, descrevendo perfeitamente a conduta punível. E cabe ao legislador a definição de tipos penais precisos de forma a impedir que o intérprete de a eles diversas definições para o mesmo fato.

Já há previsão na Lei 4.898/1965 de dispositivo que pune qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional, dentre eles da advocacia (artigo 3º, “j”).[2]

Aludida norma penal incriminadora, devido à sua abertura, junto com outras da mesma forma descritas na Lei de Abuso de Autoridade, é tida por boa parte da doutrina como inconstitucional, o que fatalmente ocorrerá com a norma que pune a violação das prerrogativas dos advogados.

E se não bastasse essa exagerada abertura, pelo projeto também será punível a violação de prerrogativa na forma culposa, como se isso fosse possível.

Tal norma foge à razoabilidade e fere o princípio da proporcionalidade, por ser desnecessária e inadequada.

As prerrogativas de todas as profissões devem ser obedecidas, mas erigir sua violação à categoria de crime é medida desproporcional.

Imaginem se todos os profissionais exigissem a criminalização da violação às suas prerrogativas?

A nobre função da advocacia é importante sem nenhuma dúvida. Mas já existem instrumentos aptos a proteger suas prerrogativas sem que haja necessidade da tutela do direito penal.

E as inconstitucionalidades não param por aí.

O Ministério Público é o titular da ação penal pública, como expressamente determina o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal.[3]

Em regra, toda ação penal é pública incondicionada (artigo 100, caput, do CP).[4] Quando o tipo penal nada disser, a ação penal será pública incondicionada e poderá ser movida pelo Ministério Público sem necessidade de manifestação da parte ofendida.

Devido à gravidade da infração, o Estado delegou ao Ministério Público o dever de promover privativamente a ação penal pública incondicionada, não se perquirindo do ofendido se deseja ou não a punição do ofensor.

O Ministério Público é o titular da ação penal pública (artigo 129, I, da CF) e, em regra, só ele poderá movimentar a máquina judiciária e pleitear a condenação de alguém pela prática de alguma infração penal dessa natureza. Exceção a essa regra é a ação penal privada subsidiária da pública, que é direito individual previsto no artigo 5º, inciso LIX, da Constituição Federal.[5]

A ação penal pública somente poderá ser promovida por particular por meio de ação penal privada subsidiária da pública quando houver inércia do Ministério Público, ou seja, quando não for oferecida denúncia, promovido o arquivamento do procedimento investigatório ou requisitadas diligências complementares, no prazo legal (artigo 100, § 3º, do CP).[6]

Já existe controle do arquivamento do inquérito policial pelo Poder Judiciário, nos termos do artigo 28 do Código de Processo Penal.[7]

E mesmo que o magistrado entenda ser o caso de promoção da ação penal, a decisão final sobre a sua propositura, ou não, ficará dentro das esferas de atribuições do Ministério Público, que é o titular da ação penal pública.

A norma que determina que o juiz, antes de proferir decisão sobre promoção de arquivamento do inquérito policial por crimes relacionados às prerrogativas dos advogados, intime a Ordem dos Advogados do Brasil para que se manifeste e, discordando, assuma a titularidade da ação penal, independentemente da remessa a que se refere o artigo 28 do Código de Processo Penal, é de flagrante inconstitucionalidade, por retirar a titularidade da ação penal pública do Ministério Público e por exercer controle sobre atividade jurisdicional e ministerial, que não é previsto constitucionalmente.[8]

A ação penal pública subsidiária somente poderá ser promovida em caso de inércia do Ministério Público e não quando seu membro requerer ao Poder Judiciário o arquivamento do inquérito policial ou do procedimento investigatório criminal, de acordo com sua independência funcional, princípio institucional previsto no artigo 127, § 1º, da Constituição Federal.[9]

O controle sobre a promoção de arquivamento é exercido em primeiro momento pelo Magistrado e em segundo momento pelo procurador geral de Justiça (Ministério Público dos estados) e pelas Câmara de Coordenação e Revisão (Ministério Público Federal), observado o disposto no artigo 28 do Código de Processo Penal e nas Leis Orgânicas de cada instituição.

Não é função da autarquia Ordem dos Advogados do Brasil exercer esse controle, usurpando função constitucional de outros órgãos.

Do mesmo modo, não é de atribuição constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil a requisição da instauração de inquérito policial e diligências ao Delegado de Polícia.[10]

A OAB não é órgão do Estado com atribuições na persecução penal, mas autarquia que, dentre outras importantes funções, regula o exercício da advocacia no território nacional, não tendo, portanto, legitimidade para dar ordens a um agente público.

A requisição para instauração de inquérito policial ou para a realização de diligências investigatórias nada mais é do uma determinação para que a autoridade requisitada cumpra o seu dever.

Por isso, não deixa de ser uma ordem, muito embora não haja subordinação hierárquica de um órgão a outro, mas apenas à lei.

Novamente, há no projeto de lei usurpação de função pública, pois não possui a OAB legitimidade constitucional para requisitar, mas apenas para requerer a instauração de inquérito policial e diligências, o que será apreciado pelo órgão competente.

Também foi inserido em um projeto elaborado por iniciativa popular para a melhoria do combate ao crime, notadamente aos ligados à corrupção, nova prerrogativa à classe dos advogados.

Foi aprovado dispositivo dizendo onde o advogado e a parte adversa, acreditamos ser o membro do Ministério Público, deverá se sentar durante as audiências.[11]

Sem entrar no mérito de ser, ou não, razoável essa disposição de assentos, o certo é que não cabe ao Estatuto da OAB dizer onde o Membro do Ministério Público deve se sentar nos atos processuais, prerrogativa esta disciplinada nas suas Leis Orgânicas, padecendo a norma de vício de iniciativa em sua elaboração, que é atribuição do próprio Ministério Público (artigo 127, § 2º, da CF).

Somos favoráveis a que exista controle sobre os atos praticados por agentes públicos, notadamente membros do Ministério Público, da magistratura e autoridades policiais, mas dentro de critérios de razoabilidade e de proporcionalidade.

O Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público são órgãos constitucionalmente competentes para exercer esse controle.

Dentro do Poder Judiciário e de cada Ministério Público, seja federal ou estadual, há corregedorias próprias que também exercem efetivo controle dos atos de seus membros.

O Código Penal e a legislação penal especial já preveem diversas espécies de delitos praticados por funcionários públicos e a Lei de Improbidade Administrativa também pune as graves transgressões à legalidade e moralidade administrativa.

Com efeito, já há instrumentos suficientes para a punição de agentes públicos, dentre eles os membros do Ministério Público, da magistratura e das polícias em geral.

Não somos contra a atualização da Lei de Abuso de Autoridade, mas com normas penais que não impeçam ou criem embaraço  ao livre exercício das atribuições judiciárias e ministeriais, bem como de outros agentes públicos que atuam na persecução penal, não sendo aceitáveis tipos exageradamente abertos, pelos quais possam ser dadas diversas interpretações ao gosto do freguês.


[1] Art. 43-B. Violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos I a V do art. 7º da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, por qualquer membro do Poder Judiciário, do Ministério Público ou autoridade policial, inclusive seus servidores: Pena – detenção, de um a dois anos, e multa, sem prejuízo da pena correspondente à violência. § lº As penas serão aplicadas em dobro se da violação resultar condução coercitiva ou prisão arbitrária do advogado. § 2º A pena será de detenção, de seis meses a um ano, se o crime for culposo.

[2] Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: … j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional

[3] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

[4] Art. 100 – A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido. 

[5] Art. 5º … LIX – será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;

[6] Art. 100… § 3º – A ação de iniciativa privada pode intentar-se nos crimes de ação pública, se o Ministério Público não oferece denúncia no prazo legal.

[7] Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.

[8] Art. 43-D. Recebendo a promoção de arquivamento do inquérito policial dos crimes previstos neste Capítulo, o juiz, antes de proferir decisão, deverá intimar a Ordem dos Advogados do Brasil, por intermédio de seus Conselhos Seccionais, em qualquer situação, ou do Conselho Federal, na hipótese de fato ocorrido perante tribunais federais, para que se manifeste sobre o pedido de arquivamento. Parágrafo único. Discordando do arquivamento, a Ordem dos Advogados do Brasil assumirá a titularidade da ação penal independentemente da remessa a que se refere o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.

[9] Art. 127… § 1º São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

[10] Art. 43-C. A Ordem dos Advogados do Brasil, por intermédio do Conselho Federal, em qualquer situação, e do Conselho Seccional, no âmbito de suas atribuições, poderá requisitar ao delegado de polícia a instauração de inquérito policial para apuração dos crimes de que trata este Capítulo, bem como diligências na fase investigativa, requerer a sua admissão como assistente do Ministério Público, em qualquer fase da persecução penal, e propor ação penal de iniciativa privada subsidiária nos termos do art. 100 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.

[11] Art. 7º … XXII — durante as audiências, sentar-se à esquerda do juiz, ao lado de seu cliente, e a parte adversa tomará assento à sua direita, ambos em igual posição, horizontal ou perpendicular, abaixo do magistrado.

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