Observatório Constitucional

O que o caso amianto revela sobre o Supremo Tribunal Federal

Autor

  • José dos Santos Carvalho Filho

    é doutorando em Direito Público pela Sciences-PO/Aix-Marseille Université (França) professor de Processo Constitucional da Escola de Direito de Brasília (EDB-IDP) e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal.

3 de dezembro de 2016, 7h10

Na sessão plenária de 23 de novembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento do caso amianto, consubstanciado no conjunto de ações em que se questiona a proibição dessa substância no Brasil. Na oportunidade, foram apregoados quatro processos[1] relativos ao tema, nos quais se discute a constitucionalidade de leis locais que disciplinam a exploração de amianto de forma mais restritiva do que a Lei Federal 9.055/1995, que apresenta normas gerais sobre a extração, industrialização, utilização, comercialização e transporte do asbesto/amianto e dos produtos que o contenham.

Registre-se, ainda, que também tramita no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.066, rel. min. Rosa Weber, que trata da constitucionalidade da própria Lei 9.055/1995, a qual teria promovido proteção ineficiente da saúde pública, motivo pelo qual se postula o banimento total do amianto no Brasil.

O julgamento dos primeiros quatro processos foi suspenso, em razão do pedido de vista do ministro Dias Toffoli; enquanto o último foi recentemente liberado pela ministra Rosa Weber para inclusão em pauta. Assim, a questão está pendente de julgamento, apresentando-se como relevante hard case a ser enfrentado pelo STF nos próximos meses.

O amianto ou asbesto é uma fibra mineral natural que, por suas propriedades favoráveis, abundância na natureza e baixo custo, tem sido amplamente utilizada na indústria, para a produção de fibrocimento, o qual resulta em telhas, chapas, divisórias, caixas-d'água etc. Ocorre que o material é dotado de elevado potencial cancerígeno, razão pela qual ordenamentos jurídicos diversos têm restringido sua exploração.

Como se sabe, a federação brasileira é composta da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, todos com competência legislativa própria. No que diz respeito ao amianto, entende-se que essa competência é concorrente dos entes federativos, ficando a União responsável pela edição de normas gerais. Isso tudo nos termos do artigo 24, V e XII, da CF, que lhe atribuem competência legislativa para dispor sobre normas gerais relativas à produção e consumo, além de proteção e defesa da saúde.

Segundo Raul Machado Horta, a legislação concorrente objetiva o afeiçoamento da legislação estadual às peculiaridades locais, de forma a superar a uniformização simétrica da legislação federal. Esse tipo de repartição de competência legislativa cria outro ordenamento jurídico dentro do Estado federal, o misto, formado pela participação do titular do ordenamento central e dos titulares de ordenamentos parciais[2]. Ocorre que, para a higidez do sistema, a União não deve editar normas exaustivas, para não esvaziar a competência legislativa local; e os entes federativos periféricos devem respeitar a disciplina geral estabelecida pelo ente central.

No Brasil, a União dispôs sobre o amianto na Lei 9.055/1995, cujo artigo 1º vedou o manejo de diversos tipos de amianto, mas o artigo 2º ressalvou a possibilidade de exploração de asbesto da variedade crisotila (amianto branco), o qual só pode ser extraído, industrializado, utilizado e comercializado em consonância com as normas de fiscalização e segurança dispostas na referida lei.

Entre as normas gerais de segurança estabelecidas pela Lei 9.055/1995, destacam-se os artigos 4º, 5º e 7º, que determinam, respectivamente: a) o desenvolvimento de programas sistemáticos de fiscalização, monitoramento e controle dos riscos de exposição ao asbesto/amianto da variedade crisotila; b) o envio, pelas empresas que manipulam amianto crisotila, ao Sistema Único de Saúde e aos sindicatos representativos dos trabalhadores da listagem dos seus empregados, com indicação de setor, função, cargo, data de nascimento, de admissão e de avaliação médica periódica, acompanhada do diagnóstico resultante; e c) o respeito aos limites de tolerância fixados na legislação pertinente e, na sua ausência, os fixados com base nos critérios de controle de exposição recomendados por organismos nacionais ou internacionais, reconhecidos cientificamente.

A Exposição de Motivos da Lei 9.055/1995[3] revela que, após profundas reflexões sobre os efeitos nocivos do amianto para a saúde humana, o ato normativo foi editado, pelas autoridades competentes, justamente para proteger a população[4]. Em outros termos, o legislador ponderou a periculosidade do amianto e o seu potencial cancerígeno em face da necessidade de sua exploração comercial e optou por vedar a exploração de amianto no Brasil, ressalvado o amianto branco, que pode ser explorado nos termos e condições estabelecidos em lei.

Ocorre que alguns estados e municípios não acolheram essa norma geral da União, editaram legislações próprias, com fundamento na competência concorrente para legislar sobre proteção e defesa da saúde (artigo 24, XII, da Constituição), e limitaram, em seus âmbitos, a exploração de amianto branco/crisotila, contrariando as normas gerais estabelecidas pela legislação nacional que dispõe sobre o tema.

Essa divergência entre a lei nacional e legislações locais instaurou conflito federativo e deu causa ao ajuizamento de diversas ações questionando a constitucionalidade formal das leis estaduais e municipais que dispuseram sobre a exploração de amianto, em seus territórios, de forma mais restritiva do que a disciplina nacional.

Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal acatou a orientação segundo a qual são formalmente inconstitucionais legislações locais sobre amianto que contrariem as normas gerais de âmbito nacional. Esse entendimento foi adotado, à unanimidade, na ADI 2.656, rel. min. Maurício Corrêa, e na ADI 2.396, rel. min. Ellen Gracie, ambas julgadas pelo Plenário em 8/5/2003, quando a corte declarou a inconstitucionalidade de leis dos estados de São Paulo e de Mato Grosso do Sul.

Por outro lado, ao apreciar a medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.937, rel. min. Marco Aurélio, o STF não referendou liminar concedida pelo relator, de modo que manteve hígida legislação do estado de São Paulo, que é mais restritiva do que as normas nacionais no que diz respeito à exploração de amianto branco[5].

Diante dessa decisão, o ministro Marco Aurélio entendeu pertinente convocar audiência pública[6] sobre o assunto, pois, segundo sua interpretação, o STF teria mitigado a inconstitucionalidade formal da lei em questão. Assim, julgou conveniente abrir discussão democrática sobre essa controvérsia tão tormentosa.

Os principais dados apresentados na audiência pública sobre o amianto foram compilados em ensaio publicado na ConJur, intitulado Especialistas divergem sobre uso de amianto no Brasil[7], no qual se evidenciou, inclusive, a divergência de foco entre entes da própria União. De um lado, os ministérios da Saúde e do Meio Ambiente defenderam a eliminação de qualquer forma de amianto no Brasil; de outro, os ministérios do Desenvolvimento e das Minas e Energia disseram que é possível o uso controlado do amianto branco e que seu banimento traria prejuízos para trabalhadores e para a balança comercial do país.

Na Sessão Plenária de 31/10/2012, o STF retomou o julgamento do caso amianto. Na ocasião, o ministro Marco Aurélio, após longas reflexões sobre o assunto e lançando mão de informações técnicas apresentadas na audiência pública, votou pela procedência da ação, para declarar a inconstitucionalidade da lei do estado de São Paulo que proíbe a exploração de amianto branco em seu território.

Nessa mesma sessão, o ministro Ayres Brito, relator da ADI 3.357, em que se questiona a constitucionalidade de lei do estado do Rio Grande do Sul com conteúdo análogo à de São Paulo, votou pela improcedência da ação, ao fundamento de que a legislação estadual é mais protetiva da saúde e compatível com a eficacidade máxima da Constituição do que a Lei 9.055/1995. Em seguida, o julgamento foi suspenso.

Somente em 23/11/2016, o caso retornou a julgamento. Na oportunidade, o ministro Edson Fachin, com fundamento no federalismo cooperativo, votou pela manutenção das legislações locais que dispõem sobre a exploração de amianto branco, em seus territórios, de forma mais restritiva do que a Lei 9.055/1995. Além das leis do estado São Paulo (ADI 3.937) e do Rio Grande do Sul (ADI 3.357), também foram examinadas leis do município de São Paulo (na ADPF 109, rel. min. Edson Fachin) e do estado de Pernambuco (na ADI 3.356, rel. min. Eros Grau)[8]. Após o voto do ministro Fachin, o julgamento de todos os feitos foi novamente suspenso, diante do pedido de vista do ministro Dias Toffoli.

Feitas todas essas considerações, é possível perceber que, embora o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha concluído o julgamento dos referidos processos, o estado atual da votação já permite inferir que o debate sobre o tema está mais complexo, ultrapassando a questão da inconstitucionalidade formal. Ora, nos primeiros julgamentos sobre o tema, o STF declarou, à unanimidade, a inconstitucionalidade formal das leis então questionadas; mas agora há votos consistentes no sentido da preservação de atos normativos análogos. A rigor, existem feitos[9] em que a maioria provisória se filiou à corrente que entende serem constitucionais as legislações locais que, com o escopo de proteger a saúde da população e o meio ambiente, são mais restritivas do que a legislação nacional.

É certo que tanto o STF como qualquer juízo pode alterar entendimento anterior e evoluir em relação ao tratamento de determinado assunto. Assim, o que causa espanto não é apenas a possibilidade de alteração da jurisprudência do tema relativo à proibição de amianto, mas também a forma como o debate tem sido conduzido na corte.

Em primeiro lugar, até o presente momento, ainda não se iniciou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.066, em que se questiona a própria Lei 9.055/1995. Em outros termos, mesmo diante da possibilidade de apreciar, inclusive por meio de decisão com potenciais efeitos erga omnes, a constitucionalidade material das normas gerais que permitem a exploração de amianto branco no Brasil, o STF deu preferência ao julgamento das ações propostas em face de leis locais.

Esse fato tem pelo menos dois inconvenientes: a) o STF opta por analisar a constitucionalidade material da Lei 9.055/1995 incidentalmente, quando poderia fazê-lo abstratamente. Isso porque, se há incompatibilidade entre a legislação nacional e legislações locais que dispõem sobre o mesmo assunto, a manutenção da legislação local significa o afastamento das normas gerais nacionais e, em consequência, o reconhecimento de sua inconstitucionalidade; e b) a solução encontrada não resolve a controvérsia de modo racional e uniforme para todos os entes da federação. Tal fenômeno se torna ainda mais grave no caso de se entender que prevalece, em casa caso de conflito, a norma mais protetiva da saúde. Isso significaria que as normas gerais apenas são inconstitucionais em relação a determinados entes ou que esses entes locais podem derrogar a competência legislativa da União para editar normas gerais sempre que tiverem boas intenções?!

É para evitar esse tipo problema que o STF deveria privilegiar o julgamento da Ação Direta de inconstitucionalidade 4.066, rel. min. Rosa Weber. Mas, ainda que se insista na decisão de julgar primeiro as ações diretas de inconstitucionalidade contra legislações locais que proíbem a exploração de amianto branco, o STF deveria ter, pelo menos, reunido todas as ações então pendentes sobre o tema. Contudo, há processos como a ADI 3.355, rel. min. Edson Fachin; e a ADI 3.470, rel. min. Rosa Weber, cujos julgamentos não foram sequer iniciados.

De mais a mais, superada a questão administrativa da ordem de julgamento dos processos no STF, os votos até então proferidos revelam um quid de ativismo que pode ser encampado pelo STF. Com efeito, tanto os debates da audiência pública como as intervenções dos autores, instituições públicas e amici curiae demonstram que a controvérsia do amianto não é simples. Além da saúde pública e da proteção do meio ambiente, está em jogo uma disputa comercial bilionária entre empresas brasileiras e multinacionais que trabalham com amianto ou seus eventuais substitutos (e.g. polipropileno).

O fato é que o legislador fez a opção política de permitir a exploração de amianto branco no Brasil e editou normas gerais de segurança para minimizar os riscos de seu manejo. Diante dessa decisão e considerando também a ausência de consenso quanto à exploração segura do produto, bem como as consequências incertas de sua substituição por matéria alternativa, resta saber se o Judiciário — que não tem expertise no assunto — detém competência para invalidar a escolha legislativa, com fundamento em suposta contrariedade à Constituição.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] ADPF 109, rel. min. Edson Fachin; ADI 3.356, rel. min. Eros Grau; ADI 3.357, rel. min. Ayres Britto; e ADI 3.937, rel. min. Marco Aurélio.
[2] HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5ª ed. atual. por Juliana Campos Horta. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 324.
[3] http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-9055-1-junho-1995-374812-exposicaodemotivos-149742-pl.html
[4] Eis um trecho da exposição de motivos da referida lei: “O asbesto/amianto provoca uma fibrose pulmonar irreversível e progressiva conhecida como asbestose, além de ser responsável por provocar câncer de pulmão e do trato gastrointestinal, bem como um tumor específico chamado mesotelloma, que pode atacar tanto a pleura como o peritônio, membranas que recobrem o pulmão e intestino, respectivamente, tanto de trabalhadores expostos, como seus familiares e de moradores vizinhos às fábricas, que utilizam esta fibra. (…) Pelas razões expostas, apresentamos este projeto de lei como objetivo de proteger a saúde da população, em particular a dos trabalhadores e de suas famílias, uma vez que as fibras de asbesto/amianto que aderem às vestimentas dos trabalhadores aumentam os riscos para o seus familiares”.
[5] ADI 3.937, rel. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 10/10/2008.
[6] Vídeos das intervenções disponíveis em: <https://www.youtube.com/playlist?list=PL8031EED7EAEAF459>. Acesso em 30/11/2016.
[7] HAIDAR, Rodrigo. Especialistas divergem sobre o uso de amianto no Brasil. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-ago-24/especialistas-divergem-uso-amianto-audiencia-publica-stf>. Acesso em 30/11/2016.
[8] Nesse caso, o ministro Eros Grau já havia votado, em 26/10/2005, pela procedência da ação, seguindo a orientação firmada pelo STF em 2003 acerca da inconstitucionalidade formal de legislações locais que contrariam normas gerais da Lei 9.055/1995. Após, o julgamento foi suspenso, em razão de pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa, que foi posteriormente substituído pelo ministro Edson Fachin.
[9] Nas ações diretas de inconstitucionalidade 3.937 e 3.357, os ministros Ayres Britto e Edson Fachin votaram pela improcedência dos pedidos, enquanto apenas o ministro Marco Aurélio voltou pela inconstitucionalidade das leis locais questionadas.

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