Exigências prementes

Tribunal dos EUA supervaloriza doutrina da "perseguição intensa"

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2 de dezembro de 2016, 7h38

Em uma decisão por quatro votos a três, com dissidências um tanto ríspidas, o Tribunal Superior de Wisconsin determinou que um policial pode violar a proteção constitucional do cidadão contra buscas e apreensões desarrazoadas, sem mandado judicial baseado em causa provável, invadindo a casa de um “suspeito” após uma perseguição. No caso perante a corte, a origem da perseguição do carro do “suspeito” foi uma luz de freio defeituosa.

A doutrina da “perseguição intensa” (hot pursuit) não é nova, mas também não é tão flexível. Ela prevê que policiais podem entrar em quaisquer recintos (incluindo residências), onde o suspeito de um crime se refugiou, sem mandado judicial, quando a demora para conseguir o mandado pode colocar suas vidas ou de outros em perigo ou possibilitar a fuga do possível perpetrador de um crime.

Essa permissão à polícia deriva de uma outra figura jurídica, a da “circunstância premente” (exigent circumstance), na qual a maioria dos ministros do tribunal se baseou para estabelecer uma ligação entre a luz do freio defeituosa, a perseguição, a entrada na casa para prender o “suspeito” sem mandado e novos delitos que emergiram subsequentemente.

De acordo com o voto da maioria, escrito pela ministra Annette Ziegler, em abril de 2012 o policial Calvin Dorshorst percebeu que uma luz de freio do carro de Richard Weber, logo a sua frente, não estava funcionando. E lhe pareceu que Weber não dirigia em linha reta, o que sugeria embriaguez do motorista. O policial acionou as luzes da viatura e a sirene, o que indica ordem de parar.

A 30 metros de sua casa, Weber não parou. Entrou na garagem, e o policial estacionou logo atrás. Os dois saíram de seus carros ao mesmo tempo, Weber se dirigiu à porta que dava acesso ao interior da casa, o policial correu e o alcançou quando ele já havia entrado. O policial o puxou para fora e com a ajuda de outro policial que havia chegado para ajudar, algemou Weber.

Com permissão do “suspeito”, o policial fez uma busca no carro e encontrou um pouco de maconha e um cachimbo de fumar maconha, ainda com cheiro da droga. E suspeitou, pela fala de Weber e pelo cheiro de bebida, que ele andou bebendo e dirigindo. Os policiais prenderam Weber e o levaram para o hospital, onde um exame de sangue detectou que o nível de concentração de álcool era bem maior do que o admissível para dirigir.

Weber foi processado, mas sua defesa pediu ao juiz para suprimir todas as provas (à exceção da luz de freio defeituosa), porque elas foram obtidas ilegalmente. Isso é um procedimento comum de julgamentos criminais nos EUA: provas obtidas ilegalmente não são aceitas pelo juiz. E as provas de uso de droga e de embriaguez foram obtidas porque os policiais teriam violado a proteção constitucional de Weber de não sofrer busca e apreensão sem mandado judicial. A defesa também alegou que a prisão foi ilegal.

Todos os julgamentos, em primeiro grau, recurso e tribunal superior, giraram sobre essa questão: se toda a operação policial violou a Quarta Emenda da Constituição dos EUA (a da garantia contra buscas e apreensões sem mandado) ou se a necessidade de um mandado foi sobrepujada pela “circunstância premente” de o policial estar uma “perseguição intensa” de um suspeito fugitivo, que cometeu delitos puníveis com prisão, de acordo com o voto.

Em primeiro grau, o juiz deu razão à polícia. O tribunal de recurso, por sua vez, deu razão a Weber, entendendo que seus direitos foram violados. E o tribunal superior reverteu a decisão do tribunal de recursos, fazendo valer a decisão de primeiro grau. Tudo na mais ampla discordância entre os juízes envolvidos no caso.

O voto vencedor do tribunal superior disse que se caracteriza a “circunstância premente” que gerou a “perseguição intensa” de um suspeito em fuga, que, no final das contas, cometeu os delitos puníveis com prisão de “fugir da polícia” e “resistir ou obstruir o trabalho policial”. A entrada do policial além da porta, segundo a ministra relatora, se deveu à necessidade de impedir que Weber continuasse fugindo.

O voto dissidente, escrito pela ministra Rebecca Bradley, declarou: “Os fatos objetivos aqui relatados não dão suporte à causa provável para delitos puníveis com prisão e não estabelecem qualquer circunstância premente. Em vez disso, os fatos mostram um policial preocupado com uma luz de freio defeituosa, que não tinha qualquer necessidade urgente ou imediata de passar além da soleira da porta da casa, sem primeiro conseguir um mandado judicial”.

A ministra diz que não exclui a necessidade de perseguição. Mas entrar na casa sem mandado é outra coisa. O voto da maioria, segundo ela, está mostrando à população que o arbítrio sobre “causa provável” para justificar buscas e apreensões não está nas mãos de um juiz e da Constituição, mas nas mãos de um policial.

Em voto dissidente ainda mais contundente, a ministra Ann Walsh Bradley, escreveu: “O voto vencedor corrói os direitos constitucionais de todos nós. Ele estabelece uma trajetória em que, gradualmente e de forma quase despercebida, nós poderemos acordar um dia e descobrir que as nossas liberdades, pelas quais muitos lutaram e se sacrificaram, foram gravemente restringidas”.

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