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Proposta de adicional de ITCMD da União é inconstitucional

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

31 de agosto de 2016, 14h50

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Encontra-se em tramitação no Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição 96, de 2015 (PEC 96/15), a qual confere competência à União para instituir um “adicional ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, de bens e direitos de valor elevado”, com alíquota de 27,5% (cujo relatório altera para 8%), para financiar a eventual criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR), que subsidiará a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), objeto do Projeto de Lei do Senado 375/2015, de autoria do senador Fernando Bezerra Coelho. Não obstante, a valiosa importância dos imperativos regionais, o adicional de imposto é de notória inconstitucionalidade.

Por meio de emenda, pretende-se incluir o artigo 153-A ao texto constitucional, cuja redação sugerida vê-se transcrita abaixo, in verbis:

Art. 153-A. A União poderá instituir adicional ao imposto previsto no inciso I do art. 155, a ser denominado Imposto sobre Grandes Heranças e Doações, de forma a tributar a transmissão causa mortis e doação, de bens e direitos de valor elevado.

§ 1º O produto da arrecadação do adicional de que trata o caput será destinado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, para o financiamento da política de desenvolvimento regional.

§ 2º O adicional de que trata o caput terá alíquotas progressivas em função da base de cálculo, e sua alíquota máxima não poderá ser superior à mais elevada do imposto de renda da pessoa física.

§ 3º Não se aplica ao adicional de que trata o caput o disposto no inciso IV do § 1º do art. 155, e no inciso IV do art. 167.

Estabeleceu-se, ainda, a progressividade das alíquotas em função da base de cálculo (i) e a impossibilidade de a alíquota máxima ser superior à maior alíquota do Imposto sobre a Renda Pessoa Física (27,5%) (ii).

O propósito seria obter aumento da arrecadação federal, com a cobrança de imposto que, em outros países, seria mais elevada, em suposta justificativa nos princípios de progressividade e de capacidade contributiva, porquanto alcançaria “grandes heranças e doações”, ao tributar a transmissão causa mortis e doação “de bens e direitos de valor elevado”.

A primeira crítica a ser feita diz respeito à própria finalidade. A proposta visa a conferir à União competência para criar adicional do imposto incidente sobre a “transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens e direitos de valor elevado” para implementação de políticas de desenvolvimento regional (PNDR), com o objetivo de reduzir as desigualdades regionais e fortalecer a coesão social, econômica, política e territorial do Brasil. Ainda que de discutível emprego a fundo específico, prática vedada pelo artigo 167, IV da Constituição, pela reduzida arrecadação deste tributo nos estados, resta evidente sua inservibilidade e insuficiência para as funções propostas.

Esse adicional é totalmente incompatível com o sistema tributário em vigor, pois implica violação ao pacto federativo (i); aos direitos e liberdades fundamentais dos contribuintes e ao princípio da segurança jurídica (ii); configura evidente bitributação (iii); e agride a garantia de vedação do confisco (iv). Logo, a PEC não subsiste diante das hipóteses designadas no parágrafo 4º do artigo 60 da CF, quais sejam, o federalismo, direitos e garantias fundamentais. Não se pode deixar de admitir a superioridade hierárquica desses princípios sobre aqueles que não foram incorporados à condição de cláusula pétrea.

O catálogo dos princípios da identidade constitucional contidos no parágrafo 4º do artigo 60 da CF assegura a inderrogabilidade da Constituição, ou sua rigidez relativa, para impedir a proposta de emenda à constituição para afetar qualquer uma daquelas matérias. E não param aí os seus efeitos, pois, ainda que aprovada, deve ser o imediato controle de inconstitucionalidade da emenda à Constituição. Confirma-se, assim, que não há, na Constituição do Brasil, qualquer impedimento para derrogação de normas constitucionais inconstitucionais[1].

Esses limites de revisão constitucional são bases fundamentais da segurança jurídica da Constituição, mormente em matéria tributária, que se prestam a preservar o contribuinte justamente contra qualquer emenda à Constituição com afetação ao conteúdo essencial de direitos ou liberdades fundamentais, federalismo ou separação de poderes.

De início, verifica-se conflito evidente do adicional ao Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação com o Pacto Federativo brasileiro, cláusula pétrea prevista no artigo 60, parágrafo 4º, inciso “I”, da Constituição Federal.

A Constituição, ao promover o pacto federativo à condição de cláusula pétrea, assegura igualmente que nenhum dos seus requisitos de identidade (igualdade, autonomia e solidariedade) possam ser eventualmente suprimidos ou substancialmente alterados. Com isso, protege-se, a um só tempo, o direito das unidades do federalismo e a identidade do Estado brasileiro, além dos valores a serem concretizados por intermédio do federalismo cooperativo.

Quando a Constituição quis instituir impostos “adicionais”, o fez expressamente, na forma de competência extraordinária, segundo o texto do artigo 154, II da CF, a saber:

II – na iminência ou no caso de guerra externa, impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária, os quais serão suprimidos, gradativamente, cessadas as causas de sua criação.

De se ver, a criação de impostos extraordinários pode compreender aqueles compreendidos ou não em sua competência tributária. Assim, pode haver “impostos adicionais” da mesma ou de outras competências. Fora dessa hipótese, a Constituição, nas suas regras de limitações ao poder de tributar, impede o uso de impostos adicionais, salvo quanto as finalidades sejam aquelas das despesas extraordinárias ali capituladas.

Como não consta que estejamos “na iminência ou no caso de guerra externa”, não há motivação constitucional suficiente para autorizar exercício de competência extraordinária para criação de novo imposto, inclusive como “adicional” de imposto já existente, da mesma ou de alheia competência.

Dessa forma, como o constituinte outorgou aos estados e do Distrito Federal a competência do imposto sobre a transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens e direitos, qualquer tentativa, por parte de outro ente federativo de concorrer com esta competência agride o pacto federativo, ainda que a alteração seja realizada por meio de emenda à Constituição.

No que concerne ao instrumento normativo empregado, o recurso à adoção de "Proposta de Emenda à Constituição" tem por fim elidir a regra do artigo 154, I, da CF, que exige, formalmente, "lei complementar".

De se ver, materialmente, a regra do artigo 154, I, da CF, impede que novos “impostos” tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição. Essa disposição tem por fim afirmar a competência autônoma das pessoas políticas do federalismo.

Ora, ao tempo que a Constituição somente atribui competências, não institui impostos, a criação de novos impostos deverá sempre observar os limites do artigo 154, I da CF, ou seja, não ter novos “impostos” dotados de fato gerador ou base de cálculo idênticos aos impostos já anteriormente autorizados pela Constituição.

Perceba-se, não se diz dos impostos preexistentes, mas de impostos “discriminados nesta Constituição” (artigo 154, I, da CF). Portanto, esse requisito material não pode ser superado unicamente pelo mero recurso a proposta de emenda constitucional, em vez de lei complementar. O prejuízo aos impedimentos materiais será sempre evidente.

Insistimos em recordar que a Constituição Federal não cria tributos, apenas atribui competências para que a legislação infraconstitucional o faça. Assim, o Imposto sobre Grandes Heranças e Doações somente será criado quando a legislação infraconstitucional dispuser sobre os elementos do imposto, como o fato gerador e a base de cálculo, mediante lei específica.

O constituinte, no artigo 154, I, da CF, autoriza a criação de novos “impostos”, com reclamo de, no mínimo formal de “lei complementar”, e desde que não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos já discriminados na carta constitucional. Esta é uma norma de “competência”, mas não aquela que “cria” o imposto novo. Logo, somente após a edição da referida emenda à constituição, criar-se-á o referido imposto, com a designação de todos os elementos que comporão sua regra-matriz de incidência tributária.

O fato de acrescer-se ao texto constitucional nova competência à União para criação de imposto, por meio de emenda à Constituição, não é suficiente para afirmar que esse tributo seja criado, quando em afronta aos critérios materiais que se prestam como garantias contra qualquer tipo de “imposto” novo, do artigo 154, I, da CF, a saber: não ter fato gerador ou base de cálculo próprios dos já discriminados na Constituição. Essa exigência faz-se como condição de tutela do arquétipo constitucional à preservação da separação de competências inerente ao federalismo brasileiro, mas também como garantia constitucional aos direitos e liberdades fundamentais dos contribuintes.

Dois tipos de norma integram o ordenamento jurídico: as normas de conduta e aquelas normas ditas de “organização” ou de “estrutura”. Entre estas, as normas sobre a produção normativa, repartidas em quatro modalidades: a) normas atributivas de competência normativa; b) normas de procedimento do exercício da competência; c) normas que definem os órgãos habilitados para deter a competência; e d) normas de reserva de funções para matérias ou procedimentos autônomos (leis complementares, emendas à Constituição etc.). Todas incidem nos atos de aplicação normativa e condicionam a “norma de competência”, na produção de “normas de conduta” (com obrigação, proibição ou permissão).

O artigo 154, inciso I, da CF, impossibilita a criação de novo tributo com o mesmo fato gerador ou base de cálculo, ao que o constituinte reclama “lei complementar” na atribuição dos impostos novos instituídos ad futurum. É dizer, mesmo que a competência seja veiculada por “emenda à Constituição”, a criação do “imposto novo” dar-se-á sempre por meio de “lei complementar”, ao tempo que se afasta a possibilidade de lei ordinária.

Assim, a emenda à Constituição não se presta como instrumento suficiente para legitimar a criação de imposto na legislação infraconstitucional, na medida que somente mediante lei específica advirá a instituição do imposto, com a determinação dos seus elementos compositivos e todos os procedimentos necessários à sua cobrança. E isso por serem, todos, elementos de controlabilidade da natureza do imposto.

A confirmar esta formulação, o Código Tributário Nacional, no seu artigo 4º, bem esclarece as condições para qualificar os impostos, a saber:

Art. 4º A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la:

I – a denominação e demais características formais adotadas pela lei;

II – a destinação legal do produto da sua arrecadação.

Deveras, por mais nobre que seja a destinação do produto da arrecadação ou prevaleça sugestiva denominação do imposto, nada disso afasta a proteção das garantias constitucionais materiais, que são o fato gerador da obrigação e respectiva base de cálculo (artigo 154, I, da CF).

A segurança jurídica tem no princípio da proibição do excesso o seu balanceamento sistêmico, com vistas a garantir estabilidade dos direitos assegurados pela Constituição e, ao lado deste, com idêntica similaridade, os princípios de razoabilidade e proporcionalidade, segundo os critérios de aptidão, necessidade e de determinabilidade das restrições.

No caso do adicional proposto pela PEC 96/15, ao se permitir que a União tribute a mesma grandeza que é objeto da competência dos Estados, estar-se-ia por autorizar a bitributação, na qual dois entes tributantes diversos estariam tributando o mesmo fato jurídico. Isso é vedado, na medida em que a Constituição estabeleceu competências rígidas para que cada ente federado tenha a sua esfera de tributação separada da dos demais.

Ademais, a PEC 96/15 promove clara bitributação, ao permitir que União e Estados tributem materialidade equivalente (artigo 155, I da CF), ou acarretará bis in idem, caso a União institua o Imposto sobre Grandes Fortunas (artigo 153, VII da CF). E, pela majoração da carga tributária, em superposição, claramente, traz prejuízos gravíssimos aos princípios de capacidade contributiva (artigo 145, parágrafo 1º da CF) e daquele que impede o efeito confiscatório dos tributos (artigo 150, IV da CF). 

Além destes, verifica-se que a PEC estimula gravoso aumento da carga tributária, o que pode tornar o sistema confiscatório, considerando a alíquota máxima de 27,5% (atualmente vigente para a tributação da renda das pessoas físicas), bem como uma base de cálculo indefinida, vez que não há conceituação no texto sobre o que se entenderá por “bens e direitos de valor elevado”. Recentemente, o senador Roberto Rocha entendeu cabível a modificação da alíquota para 8%, ao reconhecer que somente três estados na federação (Bahia, do Ceará e de Santa Catarina) cobram o ITCMD na alíquota máxima, na forma da Resolução do Senado 9, de 1992.

É revelador da capacidade confiscatória de qualquer adicional ao ITCMD o fato de o Senado Federal, por meio da Resolução 9/1992, permitir que os estados estabeleçam alíquota máxima do ITCDM, de 8% do imposto, e, neste limite, somente três estados a praticarem. Ora, é induvidoso o risco de afetação ao princípio de capacidade contributiva (artigo 145, páragrafo 1º da CF), bem como do efeito confiscatório (artigo 150, IV da CF) da medida.

Deveras, é estarrecedor o sofisma adotado na exposição de motivos, ao alegar, como referencial, o percentual mais elevado de impostos equivalentes em outros ordenamentos, numa análise superficial da totalidade de tributos e da carga destes no ordenamento brasileiro, cuja concentração sobre o consumo e propriedade não se compara a qualquer outro País (PIS/Cofins, IPI, ICMS, ISS, Imposto de Importação, IOF etc.).

Essa medida só induzirá a multiplicação de planejamentos tributários e sucessórios e afugentará famílias ricas do país, ampliando o já relevante número de expatriados fiscais, para gerar empregos e renda em outros países, como tem ocorrido com a França e todos aqueles que insistiram com a criação de tributos sobre grandes fortunas ou semelhantes adicionais sobre patrimônio, com excessos.

Em conclusão, somos pelo reconhecimento da flagrante inconstitucionalidade da PEC 96/15, ao descumprir limites constitucionais evidentes, quanto à proibição de criação de novos impostos de competência alheia e com fato gerador e base de cálculo idênticos aos dos já existentes (artigo 154, I e II da CF), além de ser vedada a destinação a fundo específico (artigo 167, IV da CF) e ter-se inequívoco efeito confiscatório (artigo 150, IV da CF).

A Constituição Federal, como dito, atribui competências, mas não cria impostos novos. Caberá a lei infraconstitucional criar o Imposto sobre Grandes Heranças e Doações. Nesta hipótese, ao contrariar o artigo 154, inciso I e II, da CF, pela materialidade, a medida eivar-se-á de inconstitucionalidade concreta, pela equivalência de fato gerador ou base de cálculo próprios das heranças e doações (artigo 154, I), elencados na competência estadual e do Distrito Federal. E por não se apresentar qualquer motivação suficiente a autorizar competência extraordinária para criação de novo imposto, inclusive como “adicional” de imposto já existente, da mesma ou de alheia competência (artigo 154, II), tampouco pode ser afirmado como válido para sua existência.

Por tudo isso, justifica-se o arquivamento da PEC 96/15, em respeito à segurança jurídica, proteção da força normativa da Constituição, do princípio de proporcionalidade e da continuidade do Estado Democrático de Direito.


[1] Cf. Bachof, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Almedina, 1994.

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