Opinião

Está na hora de repensar o modelo de margens de preferência em licitações

Autores

  • André Rosilho

    é advogado doutor em Direito pela USP professor da pós-graduação lato sensu da FGV Direito-SP e coordenador do Curso de Direito Público da Sbdp/FGV Direito SP.

  • André de Castro O. P. Braga

    advogado doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-SP mestre em Direito e Desenvolvimento pela mesma instituição e em Administração Pública pela FGV-RJ.

29 de agosto de 2016, 7h30

Alguns dias após o início da campanha para a eleição presidencial de 2010, o governo federal editou a Medida Provisória 495. Seu principal objetivo: passar a permitir, em licitações públicas, a adoção de margens de preferência para produtos e serviços nacionais. O diagnóstico do Executivo era o de que o Estado deveria orientar seu poder de compra para estimular a produção doméstica de bens e serviços. 

De acordo com as regras concebidas naquela época, ainda vigentes, cabe ao Presidente da República escolher, por meio de decreto, quais produtos e serviços devem ser adquiridos mediante a aplicação de margens de preferência. O Presidente da República também é responsável pela fixação dos limites dessas margens, que não podem ultrapassar 25% do preço dos produtos e serviços de origem estrangeira.

Em 2012, por exemplo, a presidente Dilma Rousseff estabeleceu, via decreto, margem de preferência de 17% para as licitações públicas federais destinadas à compra de caminhões. Isso significa que um ente público federal tem a obrigação de comprar um caminhão nacional mesmo que o preço do caminhão estrangeiro seja até 17% mais barato. A mesma lógica hoje vale para a aquisição de retroescavadeiras, tratores rodoviários, refrigeradores, mochilas, brinquedos, certos medicamentos, impressoras, entre outros produtos. Desde 2010, foram editados 17 decretos que criaram margens de preferência, todos ainda em vigor.

Pode-se criticar essa política de compras governamentais de inúmeras maneiras. Em primeiro lugar, as margens de preferência tornam os processos licitatórios mais burocráticos.

Imagine-se uma compra de retroescavadeiras. Como o licitante comprovará que as retroescavadeiras oferecidas ao ente público são nacionais? Segundo a legislação, essa comprovação passa pelo cumprimento das "regras de origem" estipuladas pelo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. E o que dizem atualmente essas “regras de origem”? Dizem que uma retroescavadeira será considerada nacional se o valor dos materiais importados que a compõem não ultrapassar 40% do valor total de venda do produto. Durante a licitação, a empresa deverá, portanto, entregar ao ente público um formulário contendo a lista de todos os materiais importados utilizados na produção da retroescavadeira. Ao lado da descrição de cada material importado, o licitante deverá incluir seu respectivo valor em reais, considerando-se a taxa de câmbio vigente na data da importação.

Apenas aí já é possível identificar vários custos que não existiriam em licitações sem margens de preferência.

Antes de ingressar na licitação, o fabricante nacional terá que entender os detalhes das normas aplicáveis às margens de preferência. Gastará mais tempo preenchendo formulários e reunindo os documentos necessários. Talvez tenha que contratar alguém para lidar especificamente com o assunto. O ente público interessado na compra também suportará uma carga burocrática mais elevada. Os servidores integrantes da comissão de licitação avaliarão um volume maior de documentos e, inevitavelmente, terão que se familiarizar com as regras de origem e conhecer minimamente as peças que compõem uma retroescavadeira. Se o ente público possuir servidores diligentes, preocupados com o cumprimento das margens de preferência e com a legalidade da licitação, a origem das retroescavadeiras será examinada no momento da entrega. 

Mas não é só a burocracia que aumenta. A incerteza também cresce. Em licitações com margens de preferência, o número de regras a serem seguidas é maior, o que abre espaço para dúvidas e interpretações diversas por parte de licitantes, entes públicos compradores e órgãos de controle. Esse fato estimula a litigância entre os licitantes e aumenta o risco de a licitação ser paralisada por recursos administrativos ou até mesmo ser anulada por órgãos de controle. Recentemente, em maio deste ano, o Tribunal de Contas da União, após provocação de um licitante perdedor, determinou a anulação de licitação realizada pelo Banco do Brasil, no valor de R$ 7,7 milhões, para a aquisição de equipamentos de tecnologia da informação. O órgão de controle entendeu que o Banco do Brasil havia aplicado inadequadamente a margem de preferência, beneficiando de maneira indevida a empresa vencedora da disputa (Acórdão 1.347/2016 – Plenário).

Em tese, uma pequena mudança de componente (um parafuso, por exemplo) é suficiente para transformar um produto nacional em estrangeiro. Essa circunstância traz algumas consequências negativas. Vamos supor que um fabricante nacional tenha interesse em realizar uma inovação em seu produto, mediante o uso de material importado. Esse mesmo fabricante, porém, pode ter dificuldades para conhecer de antemão todos os efeitos dessa inovação sobre o cálculo do conteúdo nacional de seu produto. Lembre-se de que esse cálculo depende da taxa de câmbio do dia em que o material importado entra no Brasil, uma variável pouco previsível. Na dúvida – e com o objetivo de garantir os benefícios das margens de preferência em licitações futuras –, o fabricante nacional pode preferir não inovar seu processo produtivo. Isso resultará em menos inovações e menos produtividade para a economia brasileira.

É perceptível, portanto, que os custos decorrentes das margens de preferência vão muito além do custo mais óbvio, que reside na obrigação de a administração pública federal adquirir produtos nacionais até 25% mais caros do que produtos similares provenientes do exterior.

Uma política pública possuir custos não é um problema. A questão, logicamente, é saber se os benefícios compensam. Aparentemente ciente desse fato, a Câmara dos Deputados acrescentou – durante o processo de conversão da Medida Provisória 495 na Lei 12.349, que alterou a Lei 8.666 – duas diretrizes para a criação e aplicação de margens de preferência.

Primeira diretriz: a princípio, as margens devem ser provisórias. Por exemplo, a margem de preferência para a compra de caminhões, estabelecida por meio do Decreto 7.816, estava inicialmente prevista para durar de 1º de outubro de 2012 até 31 de dezembro de 2013.

Segunda diretriz: caso o Poder Executivo Federal decida prorrogar o prazo de vigência de determinada margem de preferência, será preciso realizar um estudo prévio que avalie retrospectivamente os seus resultados. Em especial, a Lei de Licitações exige que tais estudos levem em consideração os impactos das margens de preferência sobre: (i) geração de emprego e renda; (ii) arrecadação de tributos; (iii) desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no país; e (iv) custo adicional dos produtos e serviços.

Ao menos no plano da teoria, o mecanismo é interessante: os decretos criam margens de preferência em ambientes controlados (para nichos específicos e por prazo determinado) e instituem critérios voltados a ajudar o Executivo a decidir sobre eventual continuidade do “experimento”.

No final de 2015, quinze decretos que previam margens de preferência foram prorrogados. Antes da prorrogação, obedecendo a exigência legal, a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda elaborou um relatório intitulado "Avaliação de Impacto das Margens de Preferência nas Compras Governamentais ".

Ao todo, a Secretaria de Política Econômica analisou dados relativos a 3.007 licitações, ocorridas entre 2012 e 2015, nas quais havia previsão de margens de preferência. O valor das compras avaliadas totalizou R$ 8,04 bilhões, número relativamente pequeno se comparado ao valor total das aquisições do governo federal para o mesmo período, que foi de R$ 280,8 bilhões.

Descobriu-se também que em apenas 4,4% das licitações com margens de preferência o benefício foi efetivamente concedido, isto é, apenas nesses casos o fornecedor nacional venceu a licitação mesmo tendo apresentado uma proposta mais cara do que a feita por um fornecedor estrangeiro. No período, o custo adicional imposto aos cofres públicos pelas margens de preferência foi de R$ 62,4 milhões.

A grande dúvida é saber se esse “prejuízo” de R$ 62,4 milhões foi compensado pela criação de empregos, maior desenvolvimento tecnológico ou incremento na arrecadação tributária.

A Secretaria de Política Econômica enfrentou a questão, adotando para tanto duas abordagens metodológicas distintas.

Em primeiro lugar, utilizou-se uma metodologia chamada Matriz Insumo-Produto. Em linhas gerais, essa metodologia permite estimar qual o impacto de determinado choque de demanda sobre algumas variáveis econômicas. Ela ajuda a responder perguntas da seguinte natureza: caso turistas estrangeiros gastem R$ 1 bilhão durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro, qual será o impacto desses recursos sobre a economia local? Quantos empregos serão criados para fazer frente ao aumento da demanda por produtos e serviços? Haverá algum impacto positivo sobre o PIB do município?

Na mesma linha, pode-se adotar essa metodologia para tentar calcular os efeitos da demanda criada pelas margens de preferência.

O estudo da Secretaria de Política Econômica demonstra, por exemplo, que empresas do setor de produtos têxteis, calçados e confecções foram beneficiadas com R$ 45,2 milhões em razão da aplicação de margens de preferência. Sem as margens, esses recursos teriam sido destinados a fornecedores estrangeiros.

Com base na Matriz Insumo-Produto, a Secretaria de Política Econômica estimou que os R$ 45,2 milhões gastos pelo governo federal no setor têxtil teriam o potencial de gerar 5.217 empregos e R$ 12,6 milhões em receita tributária, além de representar um acréscimo de R$ 56,7 milhões no PIB nacional.

É preciso enfatizar que esses números são apenas estimativas, cuja confiabilidade depende da concretização de certas premissas teóricas nem sempre realistas. A metodologia presume, por exemplo, que os custos de produção são fixos, ou seja, se uma empresa vender o dobro de sapatos para o governo, ela precisará do dobro de empregados em suas fábricas. Sabemos que, devido a ganhos de escala, isso provavelmente não se verificará na prática. 

Diante das imperfeições da metodologia, é preferível considerar que as estimativas calculadas com fundamento na Matriz Insumo-Produto são, na verdade, metas, cujo alcance deve ser comprovado por outros métodos. Afinal de contas, o importante é saber: a aplicação das margens efetivamente gerou empregos? No setor de produtos têxteis, calçados e confecções, por exemplo, as margens efetivamente resultaram em 5.217 empregos a mais?

A Secretaria de Política Econômica não fugiu desse debate. Pelo contrário. Na tentativa de calcular os impactos reais das margens, o órgão adotou uma segunda abordagem metodológica, realizando uma sofisticada análise econométrica, com dados sobre licitações que, no total, envolveram a compra de aproximadamente 140 mil produtos pelo governo federal. Além disso, em particular, coletaram-se informações sobre o número de empregados dos licitantes vencedores, para a verificação dos impactos das margens sobre a geração de empregos. 

A partir desses dados, foi possível comparar, de um lado, o comportamento das empresas beneficiadas por margens de preferência e, de outro, o comportamento das empresas que venceram as licitações sem o uso desse benefício.

Os testes econométricos concluíram que a política de margens de preferência não teve efeitos significativos sobre nenhuma das variáveis analisadas, exceto uma: o custo das compras governamentais, que tende a ser maior nas licitações com margens de preferência. Não foram encontradas evidências de que as margens geraram mais empregos ou resultaram em licitações mais competitivas ou incrementaram as receitas tributárias.

Apesar do louvável e corajoso trabalho feito pela Secretaria de Política Econômica, não podemos deixar de notar que a análise retrospectiva realizada não levou em consideração certos custos, como aqueles relacionados ao aumento da burocracia nos processos licitatórios ou os custos da própria elaboração de estudos periódicos sobre os resultados das margens de preferência. Dessa forma, a ineficiência provocada pelas margens deve ser ainda maior. 

Temos então o seguinte quadro: em relação às margens de preferência previstas nos quinze decretos prorrogados no fim de 2015, a análise retrospectiva feita pelo governo federal não demonstrou nenhum efeito benéfico concreto sobre a geração de emprego e renda, a arrecadação de tributos ou o desenvolvimento tecnológico do país. Resta saber por que o governo federal ainda assim optou pela prorrogação dos decretos.

Em seu relatório, a Secretaria de Política Econômica não é muito clara. Aparentemente, o órgão entendeu que a prorrogação se mostrava conveniente porque o volume de contratações decorrentes da aplicação de margens de preferência ainda seria pequeno, o que impediria conclusões definitivas sobre seus efeitos. Além disso, segue o argumento, a plataforma eletrônica na qual ocorrem os pregões (Portal Comprasnet) não forneceria informações suficientes para o acompanhamento adequado dos resultados das margens de preferência.

Tais justificativas para a prorrogação parecem frágeis. Não é demais lembrar que no mínimo desde 16 de dezembro de 2010 – data da publicação da Lei 12.349, que estabeleceu a necessidade de uma avaliação periódica dos resultados das margens de preferência – o governo federal já tinha ciência de que precisaria desenvolver metodologias e sistemas para a coleta de informações sobre o tema. Dizer, após cinco anos, que as margens de preferência devem ser prorrogadas porque ainda não se descobriu o método ideal para a coleta de dados não é razoável.  

Dito isso, cabe uma ressalva: realizar análises retrospectivas dos resultados de qualquer política pública é tarefa dificílima, que envolve inúmeras variáveis e diversos caminhos metodológicos possíveis. Mesmo após intensos debates acadêmicos no exterior e no Brasil, ainda estamos longe de encontrar um método ideal para esse tipo de análise. Provar relações de causalidade continua sendo o calcanhar de Aquiles das ciências sociais. Nesse cenário, é natural e compreensível que o governo federal encontre dificuldades na elaboração de análises de impacto dessa natureza.

Essa ressalva, contudo, não apaga o fato de que a lei exige que alguma análise retrospectiva de resultados seja feita. E que, portanto, precisamos investigar quais devem ser as consequências jurídicas de o Poder Executivo prorrogar margens de preferência que não apresentaram resultados positivos. Nessa hipótese, os decretos que preveem a prorrogação necessariamente serão ilegais?

A nosso ver, não.

Em primeiro lugar, a Lei de Licitações não veda a prorrogação das margens de preferência em caso de resultados negativos.

Em segundo lugar, defender a ilegalidade nesse caso terminaria por criar fortes incentivos para que análises retrospectivas apenas viessem a corroborar a vontade pré-definida do Presidente da República (consubstanciada nos decretos responsáveis pela criação de margens de preferência). Não estamos, aqui, a questionar a autonomia da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Mas parece razoável supor que o órgão se sentiria pressionado a relatar resultados positivos caso eventual parecer negativo sobre as margens de preferência pudesse gerar a ilegalidade de qualquer ato do Executivo voltado a prorrogá-las. Tenha-se em mente que o Presidente da República exerce a direção superior da administração federal (da qual a referida Secretaria evidentemente faz parte).

Em terceiro lugar, interpretação que levasse ao reconhecimento da ilegalidade desses decretos não se coadunaria com a lógica do experimentalismo com base na qual o mecanismo de avaliação de resultados das margens de preferência parece ter sido concebido. É razoável supor que as margens de preferência possam vir a produzir os efeitos esperados mesmo que no primeiro período de avaliação (necessariamente inferior a cinco anos) os resultados tenham sido insatisfatórios. Trata-se de mecanismo de política pública complexo, que eventualmente pode precisar de mais tempo de maturação.

É preciso dizer, ainda, que a defesa da ilegalidade desses decretos tenderia a gerar significativa insegurança jurídica em relação às licitações já realizadas após a renovação das margens de preferência. Afinal, se os decretos que as prorrogaram eram ilegais (ou seja, nulos de pleno direito), seriam também nulas todas as licitações que neles se basearam? E se nessas licitações a margem de preferência, apesar de prevista, não tiver sido efetivamente aplicada; nesse caso, também seriam nulas? Não são perguntas triviais.

Embora não nos pareça ilegal, a prorrogação das margens de preferência na hipótese de inexistência de resultados positivos comprovados requer uma motivação mais vigorosa. No caso das prorrogações ocorridas no final de 2015, a Secretaria de Política Econômica deveria ter, por exemplo, investigado as razões do insucesso das margens de preferência. Deveria ter apresentado também os motivos que a fizeram acreditar que as margens funcionariam em 2016, mesmo após o fracasso dos anos anteriores.

O momento é de reflexão sobre os rumos da política de estímulo à produção doméstica de bens e serviços por meio do poder de compra do Estado. O objetivo é nobre e o mecanismo pode ser interessante em contextos específicos. Mas, como dizem por aí, o diabo mora nos detalhes. Talvez seja preciso ajustar o modelo para que o custo (financeiro, de burocracia e de complexidade) inerente ao sistema de margem de preferência realmente valha a pena. Ou talvez devamos simplesmente revogá-lo.

Disso tudo se extrai uma última lição.

No debate contemporâneo sobre o direito administrativo brasileiro, ganhou força a ideia de que a administração pública deve se preocupar mais com os resultados de políticas públicas e menos com os mecanismos e procedimentos utilizados para alcançá-los. Alinhada a essa ideia está justamente a mudança legislativa que permitiu a fixação de margens de preferência para a compra de bens e serviços nacionais. Conferiu-se boa dose de discricionariedade ao Presidente da República, que detém o poder de escolher os setores que serão agraciados com as margens de preferência. Em contrapartida, para limitar de certa maneira essa discricionariedade, previu-se a obrigatoriedade de uma análise retrospectiva dos resultados dessa política de compras.

O que a experiência com margens de preferência relatada aqui demonstra é que essa mudança de paradigma rumo ao controle por resultados não será simples. Na verdade, demandará um enorme esforço por parte de gestores públicos e acadêmicos, seja no refinamento de métodos estatísticos voltados para a avaliação retrospectiva dos impactos de políticas públicas, seja na definição clara dos objetivos a serem perseguidos pelo Estado, seja na elaboração de normas jurídicas que criem os incentivos corretos e não resultem em mais burocracia. Temos bastante trabalho pela frente.

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