Transição anunciada

Provável Suprema Corte liberal prenuncia grandes mudanças nos EUA

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28 de agosto de 2016, 7h25

Há quase 50 anos, o Partido Republicano “tomou o poder” na Suprema Corte dos EUA e não saiu mais. Isto é, a maioria dos ministros sempre foi conservadora durante esse período, porque mais ministros foram indicados por presidentes republicanos do que por democratas. E a maioria conservadora configurou espectro jurídico do país, do jeito que ele é hoje.

Se o que indicam as pesquisas eleitorais no momento se preservar até as eleições presidenciais de novembro, a candidata democrata Hillary Clinton deverá ser eleita presidente e, durante seu mandato, deverá nomear pelo menos três ministros liberais para a Suprema Corte. A primeira nomeação será a do substituto de Antonin Scalia, que morreu em fevereiro — e era conservador.

Assim, se efetivamente vencer as eleições, o Partido Democrata vai “assumir o poder” na Suprema Corte dos EUA logo no início de 2017. Por isso, a configuração da Suprema Corte, que pode continuar conservadora ou se tornar liberal, tornou-se um dos principais temas do debate eleitoral deste ano. Uma transição de “poder” implica grandes transformações no país.

Diversas mudanças deverão ser promovidas no espectro jurídico do país logo no primeiro mandato de Hillary Clinton, se ela efetivamente chegar à Casa Branca. Uma corte liberal fará o possível para liberar o país de algumas de suas cargas pesadas, como a pena de morte, o confinamento de presos em solitárias e prisões em massas. Irá corrigir manobras legislativas para manipular eleições e, entre outras coisas, poderá criar o direito a um advogado para réus pobres em ações civis.

A publicação Vox apresentou, em um artigo assinado por Dylan Matthews, faz uma previsão das mudanças mais significativas que uma corte liberal irá processar no país, a partir do ano que vem — caso os democratas vençam as eleições:

Pena de morte
Para a pena de morte ser extinta nos EUA, basta que a Suprema Corte decida que esse tipo de punição é “cruel”. A Oitava Emenda da Constituição do país proíbe a imposição de pena cruel e incomum. Se a pena de morte é uma punição incomum é discutível: 30 dos 50 estados ainda a adotam, 20 estados a aboliram e em quatro estados os governadores a colocaram em moratória.

Alguns estados, entre os que ainda mantêm a pena de morte, continuam aplicando a sentença, mas nunca a executam. Deixam o condenado no corredor da morte até que a morte natural o leve. Os atuais ministros liberais da corte tendem a abolir a pena de morte, mas são minoria. Em um caso julgado em 2015, o ministro Stephen Breyer declarou, em um voto, que a pena de morte é uma punição cruel e incomum, com base em quatro premissas:

1) a corte já decidiu que sentenças de pena de morte só devem ser aplicadas em casos apropriados para ser constitucional e a frequência de execuções em casos de condenações erradas mostra que essa sentença não é confiável;

2) a punição é aplicada arbitrariamente, com alguns dos “piores dos piores” escapando dela, enquanto alguns criminosos de menor envergadura são executados;

3) o tempo de espera entre a condenação e a execução é cruelmente longo;

4) o declínio do uso da pena de morte no país tornou essa punição “inconstitucionalmente incomum”.

Assim, mais do que simplesmente propor a extinção da pena de morte, Breyer apresentou um discurso para desestimular sua aplicação. Seria infrutífero propor a extinção da pena de morte a uma corte com maioria conservadora.

Um argumento que move o ministro conservador Anthony Kennedy que, vez ou outra, vota com os liberais, é o de que “a pena de morte não é compatível com a dignidade humana”. Outro é o de que a pena de morte é discriminatória, porque é aplicada de uma forma altamente desproporcional a réus negros.

A eliminação da pena de morte poderia se dar por iniciativa do Congresso dos EUA, mas isso não vai acontecer. A base eleitoral conservadora do Partido Republicano é a favor da pena de morte ou, senão, da prisão perpétua e de penas longas para criminosos em geral. Uma pequena parte da base eleitoral do Partido Democrata também. Os políticos sustentados por essas bases sabem que não serão reeleitos se contrariarem a vontade de seus eleitores.

Confinamento em solitária
O fim do confinamento em solitária, se não total, mas pelo menos por prazos maiores do que o estritamente necessário, é a medida mais provável que uma corte sob o domínio liberal irá tomar. O ministro Kennedy já demonstrou sua aversão ao confinamento em solitária, em um voto em que mencionou o caso de um preso que já estava há mais de 25 anos nessa situação.

Kennedy deixou a entender em seu voto a esperança de que advogados solicitassem à Suprema Corte o julgamento da constitucionalidade do confinamento em solitária por longo prazo, com base no argumento de que tal punição é “cruel e incomum” e, portanto, proibida pela Oitava Emenda. De acordo com o artigo da Vox, ele praticamente desafiou os advogados a fazer isso e sugeriu que, se um caso chegasse à corte, ele estaria inclinado a limitar sua prática.

A professora de Direito da Universidade da Califórnia Sharon Dolovich, diretora do Programa Lei e Política Prisional, disse à publicação que o confinamento em solitária é “um dos grandes problemas não resolvidos na Justiça Criminal do país, mas que, definitivamente, será solucionado em breve”.

Segundo a diretora, de 80 mil a 100 mil presos estão confinados em solitária, a qualquer momento, nos EUA. Em muitos estados, a permanência de presos em solitárias dura vários anos. Tem sido assim desde a década de 80, sem qualquer interferência de tribunais federais para impedir essa prática.

Um relatório especial das Nações Unidas sobre tortura pediu o banimento total de confinamentos em solitária que durem mais de 15 dias. Nos EUA, “especialistas médicos” já opinaram que “o confinamento em solitária constitui uma forma de tortura”.

Encarceramento em massa
Algumas estatísticas indicam que os Estados Unidos têm 2,3 milhões de prisioneiros, outras, 2,6 milhões. De qualquer forma, é a maior população carcerária do mundo, o que implica superlotação nos presídios e cadeias por todo o país.

Isso é uma consequência do que a comunidade jurídica dos EUA já definiu como “encarceramento em massa”, um fenômeno que decorre de diretrizes de sentenças draconianas, definidas em lei. E especialmente de leis que estabeleceram penas mínimas, de longa duração, para vários tipos de crime, tanto em nível federal quanto em estadual.

A capacidade dos tribunais de reverter essas leis é fraca, em comparação com o que os legislativos federal e estaduais poderiam fazer. Mas os políticos não querem tomar nenhuma medida legislativa que permita o retorno de condenados às ruas em curto ou médio prazo.

A medida mais provável que os tribunais, apoiados pela Suprema Corte, podem tomar é forçar os políticos, incluindo os governadores, a reduzir a população carcerária por aumentar os custos do encarceramento. Uma maneira de fazer isso é obrigar os administradores das prisões a cumprir as exigências de manter condições carcerárias legalmente aceitáveis para os presos. O aumento de custos é um fator que convence os políticos.

Foi com base nessa justificativa que um tribunal da Califórnia ordenou em 2011 — e a Suprema Corte dos EUA sustentou — a redução da população carcerária do estado em dezenas de milhares de prisioneiros, para minimizar o problema de superlotação. A medida realmente resultou no fim da superlotação dos presídios, mas isso se tornou apenas uma história da Califórnia. Os demais estados não lhe deram importância, até agora, porque não foram obrigados a fazer a mesma coisa.

Outra coisa que a Suprema Corte poderá fazer é derrubar a Lei da Reforma de Contenciosos Prisionais de 1996. Essa lei limitou grandemente a possibilidade de prisioneiros reclamarem na Justiça das más condições de encarceramento, que incluem riscos à saúde dos prisioneiros. Isso poderá acontecer se os ministros liberais controlarem a corte.

Doações a campanhas eleitorais
Nenhuma decisão da Suprema Corte conservadora provocou mais protestos e furor nos últimos anos do que a que determinou que corporações são “pessoas” e, portanto, podem fazer doações a campanhas eleitorais no valor que quiserem — um caso que ficou conhecido como "Citizens United".

A decisão beneficia não apenas os relacionamentos de corporações com candidatos a cargos executivos e legislativos, como com candidatos a cargos de juízes. Nos estados, juízes são eleitos para cargos em tribunais de primeiro grau, tribunais de recurso e tribunais superiores (em alguns estados chamados de Suprema Corte do estado).

Isso permite, por exemplo, que corporações estabeleçam como jurisdição, para qualquer disputa judicial, aquela em que ajudou juízes a se elegerem. No Congresso, a maioria dos parlamentares fica “devendo o favor” a determinadas corporações. Nos executivos, principalmente os estaduais, ocorre a mesma coisa.

Reverter o “Citizens United” é uma tarefa complexa. Mas a Suprema Corte poderá, pelo menos, limitar seus efeitos. A campanha de Hillary Clinton anuncia, com frequência, que irá nomear ministros para a Suprema Corte comprometidos com o objetivo de reverter o Citizens United, para que as grandes corporações e bilionários parem de comprar eleições.

Porém, a simples extinção do Citizens United é improvável, porque a Suprema Corte dificilmente reverte suas próprias decisões de uma forma explícita, especialmente quando são recentes. Mas a corte poderá minar seus efeitos, sustentando regulamentações que limitam a capacidade de grandes corporações e bilionários financiarem eleições. A esperança é minguar o Citizens United progressivamente, até que morra por inanição.

Direito ao voto
Em 2013, a Suprema Corte eliminou um artigo da Lei dos Direitos ao Voto, que obrigava os estados e condados a submeter quaisquer mudanças na legislação eleitoral à pré-aprovação do Departamento de Justiça, que iria se certificar de que tais mudanças não iriam violar os direitos de voto das minorias.

A consequência foi que qualquer violação aos direitos ao voto deveria ser contestada na Justiça pelos próprios eleitores prejudicados, depois que uma nova lei fosse aprovada. Os tais eleitores prejudicados são, normalmente, cidadãos pobres, integrantes de minorias, sem recursos e conhecimentos para mover tais ações. E, quando o fizeram, o processo na Justiça é lento e, portanto, ineficaz.

Tais legislações colocam restrições ao direito ao voto. Uma delas, por exemplo, é que o eleitor tem de apresentar, antes de votar, sua carteira de identidade — geralmente, a carteira de motorista. Mas, eleitores pobres não têm carros ou não têm dinheiro para pagar as taxas e, portanto, não tiram carteira de motorista. Assim, são excluídos do processo eleitoral.

Os eleitores pobres tendem a votar no partido que oferece (ou poderá oferecer) mais programas sociais. E isso, nos EUA, fica a cargo do Partido Democrata. Os republicanos, de uma maneira geral, entendem que programas sociais só servem para desestimular os cidadãos a não estudar e a não trabalhar arduamente porque o governo irá cuidar deles.

Assim, as restrições ao direito ao voto são vistas, de uma maneira geral, como uma manobra dos republicanos conservadores para eliminar votos desfavoráveis.

Combate ao “gerrymandering”
O “gerrymandering” é uma manobra eleitoreira possibilitada pelo sistema de voto distrital. A manobra é feita na elaboração do mapa eleitoral que reparte uma determinada região em distritos. A intenção é favorecer o voto da população branca, da qual faz parte a maioria dos eleitores republicanos (embora também haja democratas), em detrimento da população negra, latina ou pobre de uma maneira geral, que tende em votar em candidatos democratas que defendem benefícios sociais.

Há dois tipos de manobra. Um consiste em aglomerar toda uma população negra (latina ou pobre) em um grande distrito, que é cercado, por exemplo, por três distritos “brancos” menores. Assim, como o voto é distrital, os distritos “brancos” elegerão três parlamentares e o distrito “negro” apenas um.

O outro é um pouco mais cruel. Na elaboração do mapa distrital, reparte-se uma grande área de população negra em três ou quatro áreas pequenas, juntando a cada uma delas uma área de população branca com um número maior de eleitores. Assim, no final das contas, as quatro áreas terão maioria de voto “branco”.

Esse é um problema típico dos estados do sul dos Estados Unidos, onde há uma grande população negra e latina e a população branca tende a ser conservadora e eleitora, portanto, de candidatos republicanos. Nos estados do Norte, mesmo a população branca tende a ser mais liberal e votar em candidatos democratas.

Mas o “gerrymuandering” pode acontecer em outras regiões do país, onde o partido no poder se encarrega de fazer a manobra. “O resultado é que a oposição recebe uma proporção das cadeiras parlamentares inferior à percentagem da população que efetivamente votou em seu candidato”, explica a Wikipédia.

Existem propostas para acabar com o “gerrymandering” — em vez de acabar com o voto distrital — e um pedido foi feito nesse sentido à Suprema Corte recentemente. Mas a corte, de maioria conservadora, lavou as mãos com o argumento de que não havia padrões firmes para criar distritos eleitorais. As previsões são de que uma corte de maioria liberal irá conseguir definir padrões para uma divisão equitativa do voto distrital no futuro.

Direito ao aborto
Embora o direito ao aborto seja garantido nos EUA, há restrições que os liberais gostariam de eliminar. E também há um propósito de tornar o aborto um procedimento médico coberto pelo Medicaid, o seguro-saúde para os pobres do país. Os liberais defendem o argumento que a ministra da Suprema Corte Ruth Ginsburg vem apresentando há tempos, de que o direito ao aborto não é apenas uma questão de liberdade individual, mas uma questão de igualdade de gêneros. As restrições ao aborto oprimem as mulheres, sem afetar os homens, o que seria inconstitucional.

Direito a advogado em ações civis
Há algum tempo, parte da comunidade jurídica vem sonhando com a possibilidade de o país criar um “Gideon civil” — uma referência à jurisprudência criada no julgamento do processo Gideon versus Wainwright, em que o direito do réu a um advogado em processos criminais foi sacramentado.

A proposta sugere que demandantes pobres que queiram, por exemplo, processar o locador ou o empregador, tenham direito a um advogado. Os liberais do país simpatizam com essa proposta, mas ela é um tanto utópica. O direito mais desrespeitado no país é provavelmente o do réu a um advogado em processos criminais. Uma grande quantidade de réus faz a autodefesa (chamada representação per se), porque a Defensoria Pública não consegue atender a demanda.

Direito à educação
Uma decisão da Suprema Corte de 1973, por 5 votos conservadores contra 4 liberais, estabeleceu que “não existe direito federal à educação”. De lá para cá, o sistema educacional nos EUA, principalmente o do ensino fundamental e do ensino médio, vem se degradando ano a ano. As universidades estão cada vez mais caras. E um estudante pode ter uma dívida de US$ 50 mil a US$ 150 mil no dia da formatura.

Os liberais esperam que, um dia, a Suprema Corte reverta essa decisão. Argumentam que a educação, pelo menos uma educação mínima, é um pré-requisito necessário para habilitar o acesso do cidadão a outros direitos.

*Título alterado 20h05 do dia 29 de agosto de 2016 para correção.

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