Passado a Limpo

Levi Carneiro e o parecer favorável à criação da OAB (parte 1)

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

11 de agosto de 2016, 8h05

Spacca
As comemorações e lembranças relativas ao Dia do Advogado, neste mês de agosto, ensejam a retomada de alguma passagem histórica, relativa à criação da Ordem dos Advogados do Brasil. Há muito material para reflexão em torno da profissão, tal qual como hoje a advocacia se desdobra. Enfatiza-se que a OAB surgiu em contexto político absolutamente conturbado, quando se derrubava a ordem da República Velha. A liderança de Getúlio Vargas, que de algum modo já anunciava a prepotência e o arbítrio que vingariam a partir de 1937, contava, no entanto, com figuras de expressão ímpar em nossa história jurídica. É o recorrente tema da aproximação dos intelectuais com o poder.

Levi Carneiro (1882-1971), entre essas expressões, atuou como consultor-geral da República, no início do governo Vargas. Nessa qualidade, redigiu importantíssimo parecer, referente à criação da OAB, com mira e referência em seu instrumento normativo de criação, o Decreto 19.408, de 18 de novembro de 1930. Há referências elogiosas ao chefe de governo e ao papel da Revolução na realização de uma proposta, que se alastrava desde o século XIX, especialmente com as intervenções de Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, Visconde de Jequitinhonha (1794-1870), sobremodo junto ao Instituto dos Advogados do Brasil. O texto (longo, que será publicado em excertos) suscita os grandes da advocacia, quanto a seus contornos éticos, empíricos, políticos e instrumentais. Há também expressivo levantamento histórico. Levi Carneiro foi o primeiro presidente da OAB.

Para as próximas colunas, como uma contribuição à divulgação de nossa memória, editamos e publicamos excertos desse texto fundante da advocacia brasileira. Há algumas supressões, com o objetivo de se conferir ao texto um sentido de compreensão contemporânea. Segue o primeiro dos fragmentos, com as devidas atualizações, de ortografia e de disposição:

Exmo. Senhor Ministro da Justiça e Negócios Interiores.

A criação da Ordem dos Advogados constitui antigo reclamo do foro brasileiro. Para realizá-la formou-se Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, em 1843. Esse era o objetivo precípuo, e único, do Instituto declarado nos Estatutos de 43, que o Governo Imperial aprovou: “o fim do Instituto é organizar a ordem dos advogados, em proveito geral da ciência da jurisprudência”. (art. 2). Montezuma, primeiro Presidente da Casa, fazia o seu discurso inaugural, historiando a profissão de advogado e mostrando os progressos e prestígio da Ordem nos principais países (Revista do Instituto, vol. I págs. 67 e seguintes).

Modificados os Estatutos primitivos, sempre figurou o mesmo objetivo entre os que o Instituto colimava. A ideia não se converteu em realidade durante todo o período monárquico, ainda que chegasse a ser debatido no Parlamento. Em 51, o Senado aprovou um projeto que não teve andamento na Câmara. Em 1914, o Instituto elaborou, por provocação do então Ministro da Justiça, Sr. Dr. J. J. Seabra, outro projeto de lei, que o Dr. Fernando Mendes de Almeida levou ao Senado, sobre o qual foram apresentados pareceres e substitutivos, notadamente os de Aurelino Leal e Alfredo Pinto, e se travaram alguns debates (vide ARMANDO VIDAL, A criação da Ordem dos Advogados, in Boletim do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, vol. 1, págs. 146-256).

No entanto, nenhum dos projetos se tornou lei. Triunfante a revolução de outubro, menos de um mês depois, o decreto nº 19.408, de 18 de Novembro de 1930 (art. 17) criava a Ordem “como órgão de disciplina e seleção da classe dos advogados do País”. A Revolução deu-lhe, assim, um alto significado. Consagrou-lhe a relevância. Enquadrou-a entre as reformas que devem remodelar a nacionalidade.

E não terá errado. Porque a Ordem dos Advogados é uma das criações necessárias para a moralização da vida pública nacional, que todos sentiram urgente empreender. Porque ela será um dos vínculos poderosos em que se há de firmar o sentimento da unidade nacional, em vez da centralização opressiva sob a autoridade absorvente do Chefe da Nação, adequada antes a provocar o esfacelamento da República e os surtos do regionalismo estreito. Porque ela se há de tornar, para uma grande elite de homens de cultura, capazes de benéfica influência na vida pública, uma escola de ação social e política, desinteressada e fecunda, e de prática da solidariedade associativa. Porque, enfim, ela poderá ser um fator de elevação de nossa cultura jurídica.

O zelo da liberdade profissional, proclamada desde os primeiros dias da República de 89, despertará, por vezes, na vigência da Constituição de 91, impugnações ao projeto dessa criação. Mas, em verdade, foi gradativamente perdendo certos exageros o conceito daquela liberdade. Amoldou-se à nossa tradição. Conformou-se com a exigência dos títulos da habilitação profissional.

A jurisprudência do Supremo Tribunal, as leis ordinárias fixaram esse entendimento. O Código Civil estabeleceu impedimentos para o exercício do mandado judicial (vide art. 1325), e nesse dispositivo a Comissão Especial do Instituto, de que foi relator o Sr. Armando Vidal, pode agora assentar o anteprojeto de Estatutos da Ordem.

Se em algum Estado, como precisamente no Rio Grande do Sul, a liberdade profissional chegou a ser praticada com maior latitude. Ali mesmo ressurgiram restrições, e dois estadistas daquela terra, o eminente Chefe do Governo Provisório e V. Exa subscreveram o decreto nº 19.408, criando, no Brasil, a Ordem dos Advogados.

Devo, aliás, acentuar que, se me parece indefensável, não só perante a Constituição de 1891, mas ainda perante os interesses coletivos, a noção de plena e irrestrita liberdade profissional, muito mais absurdo se me afigurou sempre que, admitido o chamado “privilégio acadêmico”, exigidas provas de habilitação para o exercício das profissões liberais, ficasse, entretanto, este mesmo exercício livre e desenfreado de qualquer outra restrição, de qualquer controle, de qualquer condição de ordem moral. “Por isso mesmo, em França, à supressão da Ordem, em 1790, precedeu, de alguns dias, o decreto que conferiu a cada cidadão Le droit de défendre lui-même sa cause, soit par écrit”. E quando ali reapareceram os advogados, logo ressurgiu a Ordem.

AURELIANO LEAL destacou, com perfeita nitidez, a índole especialíssima da profissão do advogado. (…). É desnecessário invocar, como seriam fáceis, tantas outras autoridades que se tem pronunciado nesse sentido. A par do lúcido ensinamento de grande publicista alemão, poremos, unicamente, o de um dos maiores publicistas franceses e um dos grandes juristas italianos. Depois de observar que as garantias da regulamentação da profissão são mais necessárias em relação aos advogados que em outro qualquer caso (…) De resto, mesmo entre nós, o Supremo Tribunal Federal reconheceu: “A advocacia, como profissão de postular em juízo, não é um simples mandado judicial, mas envolve um múnus público com responsabilidade funcional (art. 209 do Código Penal)”. (Ver. Supremo Tribunal Federal, vol. 21, págs. 254).

Por isso mesmo, a boa regra é a que a lei búlgara consagrou expressamente: “No desempenho de sua missão perante os tribunais e as autoridades, e como membro da Ordem dos Advogados, o advogado é assemelhado ao magistrado, em tanto que se trate do respeito que lhe é devido e das sanções pelas quais lhe será dada satisfação por toda ofensa à sua dignidade”.

Em vez de exercer a função necessária de fiscalização, o Estado organiza-se, e confia-a aos próprios advogados coletivamente. Ela se torna, por isso mesmo, tanto mais benéfica. (…) Dali fazia decorrer a oposição dos governos absolutos aos colégios e representações autônomas dos advogados, assim como a sua propriedade sob instituições liberais.

De resto, foram os próprios profissionais, favorecidos pelo privilégio acadêmico, que mais sentiram a necessidade de justificá-lo, ou atenuá-lo, impondo-se a observância de regras morais de certa severidade. O predomínio crescente das forças morais na vida política de todo o mundo, inclusive nas esferas de aplicação das puras normas jurídicas, fortaleceu esta necessidade (…)”.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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