Opinião

STF erra ao criar delito inexistente, o de tráfico de drogas "não hediondo"

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22 de agosto de 2016, 8h43

* Síntese de artigo produzido por promotores de Justiça do Ministério Público de São Paulo (nomeados no fim do texto).
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1. Brasil: país símbolo de impunidade
Dois casos emblemáticos marcarão a história da Justiça Penal no enfrentamento da corrupção no país. O primeiro é o conhecido caso do mensalão (Ação Penal 470, que tramitou contra 37 réus julgados pelo Supremo Tribunal Federal, 24 condenados e 13 absolvidos), primeiro caso de condenação de importantes políticos brasileiros[1].

O segundo, com excelentes resultados, é a conhecida operação “lava jato”, que já levou ao banco dos réus e ao cárcere poderosos políticos corruptos e alguns dos maiores empresários do setor da construção civil brasileira. Ainda assim, tais casos não retiram do Brasil a má reputação de “país da impunidade”. Não por acaso. Criminosos, nacionais e estrangeiros, sabem que a Justiça Penal brasileira não é rigorosa.

Mas o órgão que mais tem surpreendido com exemplos negativos de combate ao crime tem sido justamente aquele que deveria caminhar em sentido oposto: o Supremo Tribunal Federal. Na data de 23 de junho de 2016, o STF criou uma nova figura criminal, inexistente no ordenamento jurídico.

Ao julgar o HC 118.533, impetrado pela Defensoria Pública da União em caso envolvendo crime de tráfico de drogas, no qual o envolvido transportava nada mais nada menos que 772 quilos (quase 1 tonelada) de maconha, a Suprema Corte “concedeu a ordem para afastar a natureza hedionda do tráfico privilegiado de drogas”, vencidos os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli e Marco Aurélio. Presidiu o julgamento o ministro Ricardo Lewandowski.

Uma análise cuidadosa permitirá a demonstração do equívoco da recente decisão do STF, passando pela razão de ser do rigor na punição do tráfico de drogas; o problema de saúde pública envolvido; o número de crianças e adolescentes que deixam a escola porque aliciados pelo narcotráfico; as cifras bilionárias movimentadas pelo tráfico de drogas; o nível de organização daqueles que comercializam substâncias entorpecentes no Brasil e nos demais países da América do Sul e demais países de outros continentes; o grau de periculosidade dos líderes ligados ao narcotráfico; as consequências nefastas de tal espécie delitiva; a previsão constitucional da gravidade (hediondez) do tráfico de drogas.

2. História da criminalização do tráfico de drogas no Brasil
Desde o período do Brasil-colônia, nas Ordenações Filipinas de 1603, havia previsão de penas de confisco de bens e degredo para a África para os que portassem, usassem ou vendessem substâncias tóxicas. Desde então o Brasil trata o comércio de drogas como ato criminoso, o que se mostra absolutamente justificado, tal qual ocorre no resto do mundo. Infelizmente, com o passar do tempo, viu-se aumentar vertiginosamente o consumo de drogas no mundo, como a seguir demonstrado.

3. Tráfico de drogas: o Brasil no “topo” do ranking mundial de consumo de cocaína
De acordo com relatório elaborado em 2014 pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, o Brasil ocupa o segundo lugar no ranking mundial de países consumidores de cocaína, conforme divulgado pelo periódico El País.[2]

4. Tráfico de drogas: a infância fora da escola
O número de adolescentes que prematuramente iniciam vida criminosa relacionada ao tráfico de drogas triplicou na última década. Em reportagem publicada em 2013, a Folha de S.Paulo apresentou dados assustadores, indicando que em 2002 apenas 7,5% dos adolescentes internados tinham cometido atos infracionais de tráfico de drogas, enquanto em 2011 o numero atingiu 26,6%, dados relativos a 22 das 27 unidades da Federação[3]. Frise-se que esse envolvimento traz evidente evasão de crianças e adolescentes do sistema educacional brasileiro, motivo por si só suficiente a ensejar medidas drásticas de combate ao narcotráfico.

5. Tráfico de drogas e dependência química: danos à saúde pública
Diversos estudiosos da área médica apontam, no Brasil e no exterior, os efeitos prejudiciais das drogas no corpo humano. Para Ronaldo Laranjeira, o uso de drogas produz uma “doença cerebral” e “a partir do momento que a pessoa desenvolve uma doença chamada “dependência”, o uso passa a ser compulsivo e acaba destruindo as melhores qualidades da própria pessoa, contribuindo para a desestabilização da sua relação com a família e com a sociedade.”[4]

Para Valentim Gentil “o uso de maconha na infância e na adolescência aumenta o risco do transtorno esquizotípico da personalidade, considerado uma forma atenuada de psicose e caracterizado por experiências sensoriais incomuns, crenças inusitadas e isolamento social. O prejuízo grave mais bem documentado do uso contínuo da Cannabis se dá sobre o funcionamento cognitivo e a aprendizagem. Além da redução do quociente de inteligência (QI), é possível identificar déficits de atenção e de funções executivas, especialmente em quem começa a usar a droga precocemente.”[5]

Em 2014, o psicólogo Jairo Bouer alertou para outras novas modalidades de drogas perigosas que começaram a ser introduzidas no Brasil, as denominadas drogas sintéticas, com consequências seríssimas à saúde pública, pois capazes de produzir efeitos muito perigosos aos usuários: a metilona e a 25I-NBOMe.[6]

Tal como advertia o psicólogo no início de 2014, naquele mesmo ano, mais precisamente em 20 de setembro de 2014, a morte do estudante Victor Hugo Santos de 20 anos, participante de festa no velódromo da USP (cujo corpo só foi encontrado na raia olímpica 3 dias depois, já afogado) em razão do consumo da droga 25-I-NBOMe, confirmou os efeitos devastadores de tal substância entorpecente.[7]

6. Tráfico de drogas: a formação de “Cracolândias” e as zonas de exclusão social
O tráfico de drogas não atinge única e exclusivamente a comunidade que vive sob o terror e comando de organizações criminosas que formam um Estado paralelo de ordem, mas também traz prejuízo social às pessoas que fazem uso abusivo e se tornam dependentes químicas. A maioria delas acaba dilapidando seu patrimônio pessoal e deixa seus lares, passando a viver nas ruas em situação absolutamente indigna.

Em 2011 foi publicada reportagem que indicava que, “em 17 capitais brasileiras, já há atualmente 29 “Cracolândias” com alta concentração de consumidores. Todas são itinerantes e vão se movimentando segundo o ritmo das incursões policiais e brigas entre traficantes.”[8] Reportagem relacionada ao município de São Paulo e produzida em 2015 registrou o aumento das chamadas “Cracolândias” na capital paulistana.[9]

Por outro lado, em escala inversamente proporcional ao que ocorre com os seres humanos que iniciam processo de autodestruição por conta do uso e dependência química de drogas, o lucro e as cifras relacionadas ao comércio ilícito aumentam vertiginosamente a cada ano, o que será relacionado no item seguinte.

7. Tráfico de drogas: os lucros bilionários
Em 2011, relatório da ONUDC (United Nations Office on Drugs) indicou que “o tráfico de drogas teria lavado cerca de 1,6 trilhão de dólares, ou seja, 2,7% do PIB mundial em 2009, mas apenas uma parte ínfima desse montante astronômico foi apreendida”. De acordo com a ONU, “a cifra corresponde a mais de 2%, podendo chegar a 5% do PIB mundial, estabelecido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para estimar a amplidão da lavagem de dinheiro”[10]. Ainda de acordo com o relatório, o tráfico de drogas é considerado o crime mais lucrativo entre as atividades ilícitas.

Outra fonte de avaliação dos valores que são movimentados pelo tráfico de drogas decorre da apreensão de armas de fogo e drogas pela polícia. Nesse sentido, já se avaliou que, entre drogas e armas, o tráfico de drogas perdeu pelo menos R$ 28 milhões apenas na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão em 2010.[11]

Ainda de acordo com investigações realizadas pela Policia Civil de São Paulo, a facção PCC é responsável por planejar e realizar crimes de roubo praticados contra empresas de transportes de valores ocorridos nos primeiros meses de 2016 e que renderam pelo menos R$ 138 milhões aos criminosos. De acordo com as investigações, a organização criminosa usa dinheiro dos mega-assaltos para comprar armas e drogas na Bolívia e no Paraguai.[12]

Dados da Procuradoria-Geral da República dão conta de que o tráfico movimenta R$ 3,7 bilhões por ano no país.[13]

8. Tráfico de drogas: organização criminosa estruturada
Desde a década de 1980 cresceram os estudos e pesquisas sobre a relação do tráfico de drogas com o crime organizado. É nesse período que o crack surgiu – meados de 1984 e 1985 em determinados bairros de Los Angeles, Nova York e Miami. Aliás, foi justamente em 31 de dezembro de 1985 que o traficante de drogas José Carlos do Reis Encina, o Escadinha, foi resgatado de helicóptero do demolido presídio Cândido Mendes na Ilha Grande, Rio de Janeiro.[14]

O tráfico de drogas sempre foi uma das principais atividades ilícitas do crime organizado. Aliás, tal conexão, entre o delito de tráfico de drogas e as organizações criminosas, é comum em todas as estruturas criadas ao redor do mundo, desde a máfia italiana; os cartéis mexicanos e colombianos e, no Brasil, o Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital, entre tantas outras.  

9. Tráfico de drogas: “lei do silêncio, toque de recolher”, cerceamento dos direitos de ir e vir e de habitação, violência e sangue
É preciso deixar claro que o crime de tráfico de drogas não é inofensivo – sendo necessária a exposição de dados que revelam que o cenário é bem outro: de violência extrema e bárbara. Inúmeros são os casos de “toques de recolher” envolvendo comunidades afetadas pelo tráfico de drogas em todo o Brasil. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador, os registros de “toques de recolher” são antigos, rotineiramente registrados pela imprensa.

E por óbvio, são os líderes dessas organizações criminosas que as comandam com extrema violência e terror. Vitima desse “narcoterrorismo” foi o juiz corregedor Antônio Machado Dias, assassinado no dia 14 de março de 2003, após sair do Fórum de Presidente Prudente. Ele era responsável por julgar casos envolvendo membros da facção PCC, o que teria desagrado o líder da organização criminosa que acabou condenado, além de outros crimes, também por tal delito a 29 anos de reclusão pela morte do magistrado[15].

Em “O Narcotráfico”, lançado em 2000, Mário Magalhães já destacava como eram – e ainda são – absolutamente cerceados os direitos de ir e vir e de habitação em uma comunidade comandada pelas organizações criminosas que comercializam ilicitamente drogas.[16]

Tim Lopes, jornalista investigativo da Rede Globo, infelizmente sentiu com sua vida tal cerceamento. A morte de Tim Lopes confirma o rastro sanguinário e violento que acompanha o tráfico de drogas e as organizações criminosas que o comandam, situação que, como acima destacado, não é exclusiva do Rio de Janeiro.

De se ver que o crime de tráfico de drogas traz em seu âmago uma gama de situações de violência que não podem ser consideradas irrelevantes.

10. O STF e a criação de inexistente espécie delitiva: “tráfico de drogas não hediondo”
Do ponto de vista jurídico, fundamental assentar que a decisão do STF não viola somente texto de lei federal, mas disposição constitucional. É dela que advém a determinação da gravidade do tráfico de drogas, colocando-o no mesmo patamar dos crimes hediondos, assim devendo ser tratado e interpretado.

Ora, foi o legislador constituinte que definiu a gravidade do tráfico de drogas, a ele conferindo mesma categoria que os crimes hediondos. Portanto, a decisão do STF cria inexistente espécie delitiva: a do tráfico de drogas “não hediondo” e aplica o tão criticado direito penal do autor para definir se um crime é ou não hediondo, se afasta do rigor técnico penal e contém evidente caráter político, visando permitir o esvaziamento de prisões.

Não bastasse olvidar todos os males que a sociedade sofre em decorrência do tráfico de drogas como alhures exposto, a decisão do STF privilegia e busca conferir benefícios a uma espécie criminosa que a Constituição Federal considerou absolutamente grave e perigosa, criando outra não prevista no ordenamento pátrio: uma distinção entre traficante reincidente (nesse caso presente a hediondez) e traficante primário (nesse caso ausente a hediondez). A análise do discrimen utilizado evidencia o afastamento da decisão da ciência penal vigente, pois a reincidência é instituto que atinge todo e qualquer agente que comete novo crime depois de já ter sido condenado por crime anterior.

Portanto, não poderia o STF utilizar o critério – primário (não reincidente) – para afastar do crime de tráfico de drogas sua hediondez. À evidência, não há sustento jurídico na decisão proferida. Felizmente a decisão foi proferida em caso individual, de modo que não poderá gerar efeitos erga omnes, pois não houve julgamento de caso relativo a controle concentrado de constitucionalidade.

Por todos os fundamentos fático-jurídicos acima delineados, lamenta-se profundamente o equívoco levado a efeito pelo STF na decisão proferida no caso em comento.

* Autores:
Fernando Henrique de Moraes Araújo, Rafael de Oliveira Costa, Rafael Abujamra, Daniele Volpato Sordi de Carvalho Campos, Luciano Gomes de Queiroz Coutinho, Aluísio Antonio Maciel Neto, Rogério Sanches Cunha, Olavo Evangelista Pezzotti, José Reinaldo Guimarães Carneiro, Tomás Busnardo Ramadán, Cássio Roberto Conserino, Luís Cláudio Davansso, Tiago Dutra Fonseca, Maurício Fagnani Zuanase, Rafael Ribeiro do Val, Werner Dias de Magalhães, Vinicius Rodrigues França, Elaine Taborda de Ávila, Paula Augusta Mariano Marques, Orlando Brunetti Barchini e Santos, Camila Bonafini Pereira, Ana Brasil Rocha Pena, Vera Cecilia Moreira, Juliana Amelia Gasparetto de Toledo Silva, Juliana Velasque Pellacani Figueiredo, Gustavo Albano Dias da Silva, Fernanda Gomez Damico, Luiz Henrique Brandão Ferreira, Marina França Faria e Marcela Figueiredo Bechara Ferro.

 


[4] LARANJEIRA, Ronaldo. Legalização de drogas e a saúde pública: Drugs legalization and public health, Ciência & Saúde Coletiva, Ciênc. saúde coletiva vol.15 no.3,  Rio de Janeiro: May 2010. Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000300002

[5] GENTIL, Valentim. Maconha: proibição e uso: Descriminalizar, Legalizar, Regulamentar, Promover, Prevenir? Fonte: http://www.uniad.org.br/images/stories/pdf/Dr_Valentin_Gentil.pdf

[16] MAGALHÃES, Mario. O Narcotráfico, São Paulo: Publifolha, 2000. p. 15-16. 

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