Embargos Culturais

O sofrimento do camponês eloquente e a palavra do humilde contra a injustiça

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

21 de agosto de 2016, 11h25

Spacca
A Primavera Árabe foi um conjunto de levantes ocorridos a partir de 2010 na Tunísia, no Egito, na Líbia e na Síria, entre outros países. O nome dos movimentos evoca-nos a Primavera de Praga (1968) e a Primavera dos Povos (1848), momentos de intensas lutas políticas, ainda que por motivos e fundamentos distintos.

Entre outros aspectos, não obstante simbolicamente, esses movimentos foram também traduzidos em vários textos constitucionais[1], o que além disso nos sugere o intrigante tema da islamização do direito[2]. Chama-nos a atenção, nesse contexto político e discursivo, a atual Constituição do Egito, cujo emblemático e extenso preâmbulo menciona, discretamente, o sofrimento do “camponês eloquente”, tema de um conto egípcio, da distante época dos faraós.

Essa referência pode passar despercebia para quem ler esse riquíssimo preâmbulo, mas vale uma exposição, uma reflexão, e quem sabe uma conclusão, que divido com o paciente leitor. Trata-se da estória de um camponês, muito pobre, que se descobriu senhor de uma eloquência inusitada, o que nos pode comprovar o mágico poder das palavras. Esse conto não é tão festejado (no ocidente) como os similares gregos, romanos e veterotestamentários. Cabe aqui a lembrança da ambiciosa tese de Martin Bernal, para quem a cultura predominantemente europeia do século XIX resistia a reconhecer o imenso legado egípcio, africano, em favor da cultura ática, supostamente mais europeia[3].

Vamos à narrativa. O camponês andava pelo Egito, com seu jegue, vivendo de pequenos serviços que prestava nas fazendas que passava. Ao entrar em uma determinada propriedade rural, foi surpreendido pelo administrador do local, homem mau, truculento, que pretendia tomar o animal e os pertences do infeliz campesino. Com tal objetivo, jogou um longo tecido no chão, forçando o camponês a desviar o caminho. O campesino e seu jegue seguiram então por uma plantação, destruindo inopinadamente parte do local. O administrador puniu o camponês, retendo o jegue, e os outros bens. Ainda, o agrediu; estava confiante que o proprietário das terras não o reprenderia por isso.

Inconformado, o roceiro foi até o vilarejo, onde vivia o proprietário da área; foi recebido e fez sua queixa. O proprietário encantou-se com os argumentos do camponês. Pelo prazer de ouvir tão curioso orador, adiava a solução do caso. Levou a situação ao faraó, que também encantado ordenou que um escriba copiasse os argumentos do camponês bem falante.

O caso permanecia aberto. Irritado com o proprietário-juiz o camponês deixou a cidade, desesperado, com a injustiça que sofria. O proprietário-juiz ordenou que se capturasse o campesino. Para espanto do pobre homem, o proprietário-juiz atendeu sua súplica, ordenando a devolução do jegue e dos bens sequestrados pelo injusto administrador. Determinou também que este último entregasse ao camponês tudo o que possuía. O administrador ficou pobre, como o camponês que um dia humilhou. Mais. O camponês passou a administrar a propriedade.

Esse antigo conto, lembrado simbolicamente no preâmbulo da Constituição do Egito, ilustra que a indignação com a injustiça é também recorrente na experiência humana, tanto quanto a própria injustiça. Ao mesmo tempo, de algum modo, o camponês eloquente nos ilustra o poder da palavra, quando essa deslumbra, convence e encanta.

De um ponto de vista mais sofisticado, comprova a tese de Marcelo Neves, no sentido de que textos constitucionais não transcendem da corroboração de determinados valores sociais, de compromissos dilatórios e de álibis[4] que justificam a falta de efetividade do prometido em solenidades pomposas.

 


[1] Para o tema do simbolismo constitucional e suas variáveis, consultar o admirável estudo de Marcelo Neves, A Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Martins Fontes, 2013.

[2] Nesse passo, o ensaio Constitutional Islamization and Human Rights: The Surprising Origin and Spread of Islamic Supremacy in Constitutions, de Dawood I. Ahmed e Tom Ginsburg.

[3] Conferir Martin Bernal, Black Athena- The Afroasiatic Roots of Classical Civilization-,London: Vintage Books, 1991.

[4] Marcelo Neves, cit., p. 102. 

Autores

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    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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