A Nova Constituição

O controle de constitucionalidade das Constituições estaduais

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21 de agosto de 2016, 8h00

Spacca
O controle de constitucionalidade de normas fruto do poder constituinte originário não tem sido admitido pela jurisprudência pátria. Tal é possível apenas em se tratando de normas elaboradas pelo poder constituinte derivado, seja reformando a Constituição Federal, seja na elaboração de normas constitucionais estaduais. Sobre a segunda dimensão, versará o presente estudo.

Na decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 815/DF, ajuizada pelo governador do Rio Grande do Sul contra o artigo 45 da Constituição Federal de 1988, foi afastada a possibilidade de uma norma constitucional originária ser inconstitucional, ao contrário da célebre tese de Otto Bachof. Posteriormente, nos autos da ADI 939/DF, o tribunal fez controle repressivo sobre a Emenda Constitucional 03, por afronta à cláusula pétrea do federalismo, estendendo assim a competência do Supremo Tribunal Federal à análise da constitucionalidade da manifestação do poder constituinte derivado.

Será aqui analisada a jurisprudência do Supremo sobre a segunda espécie de poder constituinte derivado: o decorrente. Para tanto, importante a análise do precedente do tribunal na ADI 486/DF, quando declarada inconstitucional Emenda à Constituição do Estado do Espírito Santo 03, com fundamento no princípio da simetria. A relevância dessa decisão no ordenamento constitucional brasileiro está em preencher o silêncio da Constituição Federal de 1988, que não trouxe consigo princípios extensíveis, para impor aos estados-membros as diretrizes básicas do sistema federal.

Na lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, cuida-se do poder que “deriva também do originário, mas não se destina a rever obra, e sim a institucionalizar coletividades, em caráter de estados, que a Constituição a preveja”[1]. Na Constituição Federal de 1988, que eleva o federalismo ao status de cláusula pétrea, o poder constituinte estadual é consequência da autonomia dos estados-membros — particularmente, da capacidade de auto-organização[2]. Dispõe o caput do artigo 25, “os estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição”.

Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, esse poder remetia exclusivamente às constituições estaduais, vez que os municípios eram carentes de autonomia. Se, antes, sua organização cabia aos estados, a inclusão dos municípios no pacto federativo levou à prerrogativa de editar e emendar a própria lei orgânica, na forma do caput do artigo 25 da Constituição[3]. A doutrina, entretanto, ainda não converge quanto à lei orgânica ser ou não a manifestação do poder constituinte decorrente[4]. Em seu favor, pesam a auto-organização municipal e a natureza rígida. Contra, a necessidade de observar as normas das Constituições estaduais.

É certo que, na condição de derivado, o poder constituinte decorrente encontra limites à sua manifestação, como encontra nas cláusulas pétreas o poder constituinte reformador. Dentre as várias categorizações, a classificação de José Afonso da Silva é uma das mais reconhecidas. Para o Medalha Rui Barbosa do Conselho Federal da OAB, a irrupção do poder constituinte deverá atentar aos princípios constitucionais sensíveis, aos princípios constitucionais estabelecidos e aos princípios constitucionais[5]. São sensíveis aqueles princípios positivados no artigo 34, inciso VII, da Constituição. Ao organizar-se, deverá o estado adotar: a forma republicana, o sistema representativo e o governo democrático, os direitos, a autonomia municipal e a prestação de contas da administração pública — a direta e a indireta. Por sua vez, são estabelecidos todos os que “revelam, previamente, a matéria de sua organização e as normas constitucionais de caráter vedatório, bem como os princípios de organização política, social e econômica, que determinam o retraimento da autonomia estadual (…)”[6].

Por fim, extensíveis são princípios que, mesmo consubstanciando regras de organização da União Federal, são aplicados aos estados-membros. A Constituição Federal de 1988 rompeu com a Constituição de 1967, cujo artigo 13, inciso II, determinava aos poderes estaduais reproduzirem em suas o processo legislativo federal[7]. Retomando a tradição da Constituição de 1946, a de 1988 praticamente erradicou os princípios extensíveis em seu texto, restando ali apenas a regra que limitava os vencimentos dos desembargadores do Tribunal de Justiça ao vencimento de ministros do Supremo Tribunal Federal — qual seja, o artigo 93, inciso V.

Inobstante a falta de princípios constitucionais extensíveis no corpo da Constituição, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica quanto à aplicação do “princípio da simetria”, determinando ao constituinte estadual a reprodução do cerne do arcabouço constitucional federal, adotando postura de prudência frente às inovações institucionais promovidas à nível estadual. Na jurisprudência do Supremo, o princípio da simetria fez-se presente a partir de 1967, quando a Constituição outorgada à época limitou a atuação das Assembleias Constituintes estaduais à mera adaptação das Constituições estaduais à Constituição Federal. Nesse sentido, nos Recursos 74.193 e 70.728, do estado da Guanabara, o tribunal assentou em 1973 que “os estados, sem embargos de autonomia para sua organização e administração, já estavam adstritos, sob a C.F. de 1946, às linhas mestras do regime, devendo guardar simetria com o modelo federal em matéria de divisão, independência e competência dos 3 Poderes, assim como princípios reguladores do funcionalismo”.

Sob a vigência da Constituição Federal de 1988, a decisão do Supremo Tribunal Federal que reafirmou a simetria entre modelos estaduais e modelo federal deu-se nos autos da ADI 486, proposta pelo procurador-geral da República. Questionava-se a higidez da Emenda 03/90, que atribuiu ao artigo 62, parágrafo 5º, da Constituição do Espírito Santo uma nova redação: “A proposta [de Emenda Constitucional] será discutida e votada em dois turnos, considerando-se aprovada quando obtiver, em ambos, quatro quintos dos votos dos membros da Casa”. A EC 03, ao elevar o quorum de maioria qualificada de três quintos para quatro quintos, dificultou ainda mais a promulgação de novas emendas.

Segundo o procurador-geral da República, a nova redação da Constituição estadual era materialmente incompatível com a regra do artigo 60, parágrafo 2º, da Constituição Federal, que estabelecia em três quintos o quorum necessário à aprovação de emenda. Na medida em que caput do artigo 25 da Carta Federal determinava que a auto-organização de estados deveria observar “os princípios desta Constituição”, não poderia o poder constituinte de reforma estadual exigir maioria diversa dos três quintos, ainda que fosse para elevá-la.

Na qualidade de curador da presunção da constitucionalidade do dispositivo impugnado, o advogado-geral da União sustentou que a EC 03 fora promulgada pelo estado em adequação à sua autonomia, uma vez que a Constituição Federal de 1988 não estendeu aos estados — pelo menos não explicitamente — a disciplina do processo legislativo. No exercício do poder constituinte decorrente, portanto, poderiam regrar os procedimentos de forma diversa.

Quando a Constituição Federal de 1988 estende aos estados-membros normas dirigidas inicialmente à União Federal, estende expressa e inequivocamente[8]. Assim o fez, por exemplo, no que diz respeito às imunidades parlamentares (artigo 27, parágrafo 2º) e a tribunais de contas (artigo 75). Contudo, em relação ao processo legislativo, entendeu o Supremo que era extensível em igual medida o artigo 60, em razão do “princípio da simetria”.

Relator da ação, o ministro Celso de Mello destacou a importância da descentralização político-administrativa na nova ordem constitucional, por ser o federalismo um processo de caráter dialético e com tendência à pluralidade. Afirmou, ainda, que a autonomia dos estados-membros constitui um dos núcleos principais na configuração da organização federativa, como forma de reconhecimento das diferenças estaduais, regionais e locais que, mesmo apresentando entre si uma grande variedade, tem a possibilidade de manter a unidade de um país.

Entretanto, por mais que entenda ser a autonomia essencial, argumentou o ministro que ela carece de caráter absoluto, encontrando limites jurídicos impostos pela Constituição Federal de 1988, que é per se núcleo de emanação e restrição das prerrogativas político-jurídicas outorgadas aos estados. O poder constituinte decorrente, logo, sujeitar-se-ia a condicionamentos normativos impostos pela Constituição Federal e, no caso sob judice, o quorum para a aprovação de Emendas Constitucionais seria padrão normativo fixado, devendo as unidades estaduais obedecer ao disposto no texto constitucional.

Acompanhando o voto do ministro Celso de Mello, o ministro Maurício Corrêa destaca os comandos dos artigos 60, parágrafo 2º e 25 da Constituição Federal, bem como o artigo 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias — tais regras “bastariam” para decidir a vinculação do legislador constituinte estadual às diretrizes do procedimento legislativo federal. Para o ministro, “do contrário, o Poder Legislativo dos estados se transformaria numa verdadeira balbúrdia, cada um estabelecendo, a seu bel-prazer, regras de quóruns diferenciados dos estabelecidos pelo modelo federal”.

E, assim, o Supremo Tribunal Federal aplicou o princípio da simetria à Constituição do Estado do Espírito Santo, determinando que o quorum fosse restabelecido em três, e não mais quatro quartos, sob o fundamento de que os “estados, quando no exercício de suas competências autônomas, devem adotar tanto quanto possível os modelos normativos inicialmente estabelecidos para a União, ainda que esses modelos em princípio não lhes digam respeito por não lhes terem sido direta e expressamente endereçados pelo poder constituinte federal”[9]. Posteriormente, o princípio também seria aplicado, na ausência de regramento explícito na Constituição Federal, nos casos de ausência do governador de estado por mais de 15 dias sem a licença da respectiva Assembleia Legislativa[10], emenda parlamentar implicando aumento de despesas em projeto de lei de competência do Poder Executivo[11] e instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito no âmbito estadual[12]. Nesses três casos, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a constituição dos estados-membros deveria reproduzir os comandos dos artigos 83, 63, inciso I, e 58, parágrafo 3º, da Constituição Federal.

Portanto, a relevância da ADI 486/DF na nova ordem constitucional foi recepcionar o instituto do “princípio da simetria” para resolver aquilo que Léo Ferreira Leoncy chama de “questões federativas sem solução constitucional evidente”. Ao estender aos estados determinados princípios constitucionais sem que o próprio texto impusesse-os ao poder constituinte decorrente, o Supremo Tribunal Federal inovou no ordenamento jurídico no que diz respeito ao controle de constitucionalidade das Constituições estaduais. Ao lado da manifestação do poder constituinte reformador, também pode ser objeto de controle jurisdicional a manifestação do poder constituinte decorrente.


[1] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 34 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008. p. 28.
[2] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 609.
[3] O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos (…).
[4] Cf. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014. p. 337-339.
[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 613.
[6] Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios (…):
IV – o subsídio dos Ministros dos Tribunais Superiores corresponderá a noventa e cinco por cento do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal e os subsídios fixados dos demais magistrados serão fixados em lei e escalonados, em nível federa e estadual, conforme as respectivas categorias da estrutura judiciaria nacional, não podendo a diferença entre uma e outra ser superior a dez por cento ou inferior a cinco por cento, nem exceder a noventa e cinco por cento do subsídio mensal dos Ministros dos Tribunais Superiores, obedecido em qualquer caso, o disposto nos arts. 37, XI, 39, §4º.
[7] Os estados se organizam e se regem pelas Constituições e pelas leis que adotarem, respeitados, dentro outros princípios estabelecidos nesta Constituição, os seguintes (…):
III – o processo legislativo.
[8] SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel. Direito Constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. p. 331.
[9] Cf. LEONCY, Léo Ferreira. “Princípio da simetria” e argumento analógico: o uso da analogia na resolução de questões federativas sem solução constitucional evidente. 12 de abril de 2011. Tese de Doutorado – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011.
[10] ADI 738/DF, rel. min. Maurício Corrêa, DJ 1º/2/2011.
[11] ADI 2.029/DF, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJ 20/6/2008.
[12] ADI 3.619/DF, rel. min. Eros Grau, DJ 20/4/2007.

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