Consultor Jurídico

Criptoimputação, jusnomotetismo e o estado do concursismo no Brasil

20 de agosto de 2016, 8h01

Por André Karam Trindade

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Spacca
Lemos nas redes sociais que “caiu” em uma prova para ingresso no Ministério Público de Goiás a seguinte questão: “O que se entende por criptoimputação? Qual(ais) a(s) sua(s) consequência(s) para o processo penal? Como deve agir o Promotor de Justiça a fim de evitá-la?”

E qual foi a resposta-padrão (chamam de espelho) ofertada pela banca?

Conceito: “A doutrina denomina criptoimputação a imputação contaminada por grave situação de deficiência na narração do fato imputado, quando não contém os elementos mínimos de sua identificação como crime, como às vezes ocorre com a simples alusão aos elementos do tipo penal abstrato”.

Consequências: “A consequência primeira da criptoimputação é a rejeição da denúncia […] Se equivocadamente for recebida a denúncia eivada pela criptoimputação (quando a imputação não contém os elementos mínimos de sua identificação como crime, como às vezes ocorre com a simples alusão aos elementos do tipo penal abstrato), deverá o juiz absolver sumariamente o réu com esteio no art. 397, III, do CPP. Não o fazendo, abre-se a possibilidade de impetração de habeas corpus (CPP, art. 647 c/c art. 648, VI) em razão de faltar ao processo elemento essencial configurador de nulidade (CPP, art. 564, IV)”.

Como deve agir o Promotor de Justiça a fim de evitar a criptoimputação: “Conforme o art. 41 do CPP. Em outros termos, deve o Promotor de Justiça descrever de modo preciso os elementos estruturais (essentialia delicti) que compõem o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente, ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente. Nesse sentido é a jurisprudência pretoriana.  Fim do espelho”.

Pronto. E o Brasil não ganha o Prêmio Nobel de jeito nenhum. Por que será? As passagens para Estocolmo estariam muito caras? Enfim, examinando essa questão — que é apenas a ponta do iceberg (lembremos da pataquada do promotor de Justiça membro da banca do concurso do MP/RJ e aquela “discussão” sobre o estupro e a “parte boa” – é apenas a ponta do iceberg).

A pergunta é: as bancas são donas do conhecimento jurídico? Elas podem fabricar “conceitos” assim? Podem sair por aí a (re)nomear às coisas? Seriam os novos nomotetas (dadores de nomes, como em Platão)?

Não existe accountability? Pode-se perguntar qualquer coisa nos concursos? Quer dizer que, se o candidato não leu o livro que inventou o nome de cripto-não-se-io-quê, então não passará na prova? Isso não beira à improbidade epistêmica?

Para que não haja mal entendidos: não há problema algum em inventar coisas, palavras, teses, teorias. Aliás, isso é função da própria doutrina. O ponto é saber se um concurso público pode perguntar esse tipo de particularidades, elaborando questões dissertativas acerca de “conceitos” que não são de domínio público. Afinal, qual o ganho em trocar “inépcia” por “cripto”? Mudar o nome simplesmente por mudar não nos parece um ato de boa-fé da banca. O que isso avalia?

Em outro concurso perguntaram (não vamos dizer de qual estado) qual era cor do dolo? Qual seria? De novo: será a cor que o jusnomoteta der? Estamos cercados de nomotetas pós-modernos. Já não se aguentam. Todos os dias tem de inventar. Têm de manter os concurseiros ativos. Atentos. Ascesos. Nem que seja cantando novo funk ou forró sobre legítima defesa ou o ECA. Ou, ainda, se vestir de mulher.

Trata-se de um problema grave, que o Estado (no caso, o MEC e as instituições) entregou ao livre mercado. Deixaram que se formassem feudos. Satrapias. Concursos em que as bancas são totalitárias. Perguntam o querem. E colocam as respostas que mais “preferem”!

Num outro concurso, questionaram a mesma coisa em anos diferentes, mas os gabaritos indicados foram diferentes. O candidato recorreu… e adivinhem. A banca disse que não havia problema nenhum em o espelho apresentar respostas diferentes para a mesma pergunta. Afinal, a banca mudou.

Já, de há muito, acendeu uma luz amarela, puxando para vermelho, sobre essa questão do ensino jurídico que fica em uma zona cinzenta entre cursinhos e faculdades. E as Instituições (PJ, MP, PJ, DP, OAB etc.) ainda terceirizam os concursos. Quais são os critérios para isso? Notória especialização? Isso que está aí é notória especialização? Quem fiscaliza toda essa indústria? No caso do MP de Goiás, a própria instituição promove um concurso que pergunta o que é criptoimputação? Ora, inépcia, desídia do promotor virou criptoimputação? Não nos esqueçamos que o termo cripto (do grego, Kryptós) significa codificado, cifrado, oculto, escondido, secreto…

A banca pergunta: qual é a solução? A solução é o promotor de Justiça que faz essa criptoimputação estudar mais, bem mais! Parar de ler livros simplificadores e pesquisar. Um agente político do Estado que ganha o que ganha jamais poderia produzir uma criptoimputação. Sim, porque para ser cripto deve ser tão ruim que até o nome da pataquada precisou ser alterado. E assim vai o ensino e o concursismo no Brasil.