Academia de Polícia

Busca e apreensão sem ordem judicial exige justa causa em branco prévia

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

16 de agosto de 2016, 11h18

Spacca
Questão que ainda pende de clareza doutrinária e jurisprudencial é do que se entende como elemento autorizante para que o Estado ingresse no domicílio de um suspeito sem ordem judicial. Pouco se debateu sobre o julgado trazido à lume no informativo 806 do STF, que perdeu a oportunidade de traçar balizas claras à busca e apreensão domiciliar sem ordem judicial pela polícia, em hipóteses de flagrante delito, em especial, de crime permanente.

Não há dúvidas de que a busca e apreensão domiciliar é permitida pelo art. 5º, XI da CR, que inclui quatro hipóteses excepcionais para o ingresso na casa e relativizá-la como asilo inviolável e uma delas é a hipótese de flagrante delito.

Outras fontes jurídicas, além de Constituição, ampliam a garantia à inviolabilidade contra ingerências arbitrárias para atos invasivos de terceiros, como por exemplo o artigo 11, item 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos e artigo 17, item 1 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, respectivamente, ipsis literis:

“11.2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio(….)”.

“17.1. Ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio (….)”.

Neste diapasão, não há nenhuma dúvida, a regra é a inviolabilidade, mas há o contraponto do permissivo jurídico, apesar de excepcional, para relativização da inviolabilidade de domicílio em hipótese de situação flagrancial de ilícitos penais, com o objetivo de impedir que o crime prossiga, bem como se preservem os elementos informativos ou probatórios importantes para a investigação criminal.

Insta salientar, que esta possibilidade prevista na Constituição brasileira se alinha com qualquer outra constituição moderna alienígena e com os tratados de direitos humanos.

Nestas hipóteses excepcionais o controle judicial se realizará posteriormente, hipótese de reserva relativa da jurisdição e não reserva absoluta (CANOTILHO, p. 584)[1]. Na reserva relativa o judiciário exerce controle posterior e na reserva absoluta o controle prévio de tomada de decisões invasivas às liberdades públicas.

A jurisprudência, ainda, não solucionou com clareza a celeuma sobre o momento da avaliação das circunstâncias da ocorrência da flagrância do crime permanente, e consequentemente, quais elementos informativos o agente do Estado estaria embasado para decidir sobre a execução da medida invasiva, sem ordem judicial, sob pena de responsabilização penal, civil e administrativa.

A doutrina apresenta o tema de forma muito simplista, resumindo-se a entender que estando o agente em crime permanente o ingresso estaria autorizado por se tratar de uma hipótese de cometimento de crime em situação flagrancial (BRASILEIRO, p. 871), verbis:

“Caso sejam encontrados elementos que caracterizem crime em situação de flagrância, como daquele que armazena em casa substância entorpecente para comercialização, estará constitucionalmente autorizada a intervenção, não em razão do mandado que tinha outro objetivo, e sim por força do art. 5°, XI, da Constituição Federal, que autoriza o ingresso domiciliar, a qualquer hora do dia ou da noite, para que se efetive a prisão em flagrante.”[2]

No mesmo sentido, (TÁVORA e ALENCAR, p. 399):

“Assim, supondo-se um delito de tráfico de drogas, na modalidade “ter em depósito”, delito de natureza permanente, no qual a consumação se prolonga no tempo e, consequentemente, persiste o estado de flagrância, admite-se, ainda que em período noturno, e sem autorização judicial, o ingresso da Polícia na casa em que está sendo praticado tal crime, com a consequente prisão em flagrante dos agentes e apreensão do material relativo à prática criminosa.”[3]

A jurisprudência do STJ[4] e o próprio STF[5] segue a mesma linha de aparente clareza.

As orientações acima não respondem que critério o agente leva em consideração para o ingresso na casa, ou seja, que critério o agente público irá considerar para a tomada de decisão para o ingresso na residência, sendo insuficientes os ensinamentos doutrinários para se dirimir esta dúvida.

A título de exemplo, imaginemos que a polícia decidisse, por sorteio, ingressar em 1.000 casas, de um total de 10.000, sem ordem judicial, como ocorreu na “tomada” do conjunto de comunidades denominada de “complexo do alemão”, no Rio de Janeiro e lograsse êxito em encontrar em 100 delas armas e/ou drogas em suas mais variadas quantidades, e prendesse as pessoas que estivessem em seu interior.

Por se tratar de guarda de arma e/ou drogas, segundo a doutrina e jurisprudência já mencionadas, estaríamos diante de um crime permanente, portanto, a pessoa no interior da residência estaria em flagrante delito.

Poderíamos entender que nas casas onde esses objetos ilícitos foram encontrados teria sido hipótese de exceção à que alude o art. 5º, XI, CR? Em outras palavras, teria sido desnecessária a ordem judicial? E nas demais casas que nada foi encontrado, os agentes responderiam por abuso de autoridade?

Verifica-se que o critério de escolha das casas foi arbitrário, pois a justa causa fora o sorteio (denúncias anônimas, por exemplo), portanto as provas obtidas no interior das 100 casas são ilícitas, inúteis para subsidiar a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, e se quer são válidas como justa causa para uma ação penal, bem como, em todos os casos estaríamos diante de abuso de autoridade, salvo, é claro, em situações que evidenciem erro de tipo, que não seria o caso apresentado em nosso exemplo.

O critério que se deve considerar para a tomada da decisão é o prévio conhecimento e visibilidade provável sobre o interior das residências e não o conhecimento que se obtém após a execução da medida de ingresso, sob pena de resgatarmos o famigerado male captum bene retentum, afastado de nosso ordenamento em razão da vedação das provas obtidas por meios ilícitos, consoante inspiração norte americana em sua IV emenda, fundante da “exclusionary rules”, bem como os precedentes contidos nos “leading cases: Boyd v. U.S. (1886); Adams v. New York (1904); e Weeks v. U.S. (1914).”

Tais critérios de conhecimento prévio são aqueles que levariam uma pessoa em circunstâncias razoáveis (não se exige certeza absoluta) a crer que precisaria agir imediatamente para prevenir um mal a alguém ou fazer cessar um crime em andamento, pelo qual tomou conhecimento e faz com que o agente creia está em curso, ainda que posteriormente se constata o contrário, sendo plenamente possível a hipótese de estrito cumprimento do dever legal putativo.

Até mesmo esta descriminante putativa, para que se leve a efeito, o agente público precisaria tomar conhecimento de circunstâncias tais que se existissem o fariam crer estar um crime em curso, e que, portanto, precisaria ingressar na casa.

Destas premissas, chegamos à conclusão que é necessário um elemento concreto que denominamos de visibilidade provável prévia ou palpável para a decisão de ingresso ou não na casa.

Ainda não foi esta a diretriz utilizada no RE 603.616/RO, de relatoria do Min. Gilmar Mendes julgado em 5 de novembro de 2015, apesar de num trecho de seu voto, ter deixado “no ar” esta preocupação, apesar de sua conclusão ter sido no sentido oposto:

“Por outro lado, não seria a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificaria a medida. Ante o que consignado, seria necessário fortalecer o controle “a posteriori”, exigindo dos policiais a demonstração de que a medida fora adotada mediante justa causa, ou seja, que haveria elementos para caracterizar a suspeita de que uma situação a autorizar o ingresso forçado em domicílio estaria presente. O modelo probatório, portanto, deveria ser o mesmo da busca e apreensão domiciliar — apresentação de “fundadas razões”, na forma do art. 240, §1º, do CPP —, tratando-se de exigência modesta, compatível com a fase de obtenção de provas.”

Em outras palavras, os fundamentos para o ingresso em uma casa deve ser pautada em um juízo de prognose e de diagnose[6] antecipado sobre a ocorrência do crime e indícios de autoria. Podemos denominar de justa causa provável, ou de justa causa de visibilidade provável, que consiste em elementos informativos concretos compatíveis como o objeto de prova, não bastando, por exemplo, denúncias anônimas, disque-denúncia, peças apócrifas, colaboradores que participem da empreitada criminosa ou informantes que não poderão se identificar posteriormente, ou seja, elementos que não possuem força probatória para serem utilizadas em juízo, cuja licitude será imediatamente avaliada pelo delegado para legitimar ou não a lavratura do auto de prisão em flagrante.

Isto significa que não poderá ser considerada justa causa de visibilidade provável o resultado obtido às cegas, sem juízo de prognose e diagnose prévio, ou seja, após a execução da medida de ingresso na residência. Neste mesmo sentido o STF, no Inq 1957. Rel. Min. Carlos Veloso.

A questão se torna ainda mais polêmica quanto ao ingresso com consentimento do morador. Apesar de haver precedente do STF admitindo esta possibilidade, como o HC 79.512. Rel Sepúlveda Pertence, a questão não foi objeto de debate no caso concreto mais recente, citado acima.

Esse caso concreto consistiu em uma investigação criminal, com acompanhamento de diligências que resultaram em constatar o transporte de cocaína, que culminou na interceptação de um caminhão em uma rodovia federal com 23 kg de cloridrato de cocaína.

Nesta abordagem, o motorista (Tício) informou que tinha sido contratado por outra pessoa (Caio), na qual declinou seu endereço para localização, tendo a polícia se dirigido até essa residência.

Para aplicarmos nosso raciocínio desenvolvido acima, nos perguntemos: Caio está em flagrante delito?

Quando Tício foi abordado e interceptado com a droga no caminhão, o verbo “transportar” do art. 33 da lei 11.343/06, por ele praticado foi exaurido com a interrupção do transporte. Caio não está em flagrante delito que autorizasse o ingresso da polícia no interior da sua residência.

Nesse o caso, a polícia ingressou na casa de Caio sem estar visualmente em flagrante, ou baseada em elementos concretos que pudessem ser demonstrados nos autos os elementos de prova que apontasse as circunstâncias autorizadoras a encetar uma conclusão de que Caio estivesse (visibilidade provável) com drogas no interior de sua residência, ou como ocorreu no caso concreto, no interior de seu veículo estacionado na sua garagem.

O que se tem é um indício, concretizado pelo interrogatório de Tício, de que Caio iria adquirir a droga (por intermédio de alguém), que estava sendo transportada, o que, por si só não o coloca em situação flagrancial.

Em outras palavras, o Min. Gilmar Mendes é contraditório em seu voto, posto que afirma a necessidade de justa causa para ensejar conclusão de que alguém estivesse em situação flagrancial, como por exemplo, (imaginemos) se Tício estivesse saindo da casa de Caio com drogas em mãos e informasse que ainda haveria outra quantidade para transportar na casa de Caio, neste ponto sim, haveria sentido e coerência na tese aventada pelo STF, posto que haveria duas pessoas em concurso de agentes, que mesmo advertido de seu direito ao silêncio, teria optado por apontar corresponsável criminal, cujas declarações poderiam ser repetidas em juízo. Nestas premissas seria possível realizar um juízo de prognose e de diagnose da ocorrência de um crime e fortaleceria a existência prévia de justa causa visível ou provável de que Tício estivesse saindo da casa de Caio (Tício flagrado com as drogas), donde se concluiria que haveria, também, drogas na casa de seu comparsa, e aí sim, estaria em flagrante de tráfico, no verbo ter em depósito, como crime permanente do art. 303 do CPP ou pelo verbo fornecer ou adquirir como flagrante próprio do art. 302, II, do CPP, não obstante se configurar um crime único por se tratar de um tipo misto alternativo de conteúdo variado.

No entanto, não há similitude ao que ocorrera, no caso julgado, na qual Tício informa que foi contratado por Caio, em lugar distante, que não nos permite chegar à conclusão de que teria drogas guardadas no veículo automotor estacionado na garagem da casa de Caio.

Esta informação serviria como seria justa causa posterior e não prévio para representação de busca e apreensão, com posterior expedição de ordem judicial pelo juízo competente, mas não de ingresso sem ordem judicial.

Assim, acaso se queira evitar decisões arbitrárias de ingresso em residência a justa causa deve ser associada à visibilidade verossímil (provável) da ocorrência de um crime no interior da residência, sob pena de empregarmos a ciência da futurologia para se poder concluir intuitivamente que alguém estivesse cometendo crime.

Não havendo prévia visibilidade provável ou clara, na qual denominamos de justa causa de visibilidade provável ou justa causa em branco, por considerarmos que flagrante é a visibilidade de ocorrência de um crime. Não basta compreender como um simples suporte probatório mínimo, às cegas no escuro, mas é necessário estar às claras, dizemos então, justa causa em branco prévia.

No caso sub exame não houve justa causa às claras, mas sim em preto ou obscura, que não permitia ao agente ter visibilidade das circunstâncias que lhe permitisse inferir que no interior da casa haveria droga, e, portanto, qualquer ingresso e captação de provas nestas circunstâncias é uma prova ilícita, não autorizando lavratura de auto de prisão em flagrante delito, nem justa causa para ação penal, o que não impediria o prosseguimento da investigação criminal.

 


[1] CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Almedina, Almedina, p.584. "Esta garantia de justiça tanto pode ser reclamada em casos de lesão ou violação de direitos e interesses particulares por medidas e decisões de outros poderes e autoridades públicas (monopólio da última palavra contra actos do Estado) como em casos de litígios particulares e, por isso, carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa (monopólio da última palavra em litígios jurídicos-privados)"

[2] TÁVORA, Nestor e ALENCAR, Rosmar Rodrigues, Curso de Direito Processual Penal. 8ªed. Salvador: JusPodivm, 2013

[3] BRASILEIRO, Renato p. 871. Manual de Processo Penal. 2ª Ed.. Salvador: JusPodivm, 2014

[4] STJ, 6a Turma, HC 21.392, Rei. Vicente Leal, j. 22.10.2002, DJU 18.11.2002, p. 296. No mesmo sentido: STJ, 5a Turma, HC 35.642/SP, Rei. Min. Gilson Dipp, DJ 07/03/2005.

[5] HC – 97567, 2ª Turma, Min. Rel. Ellen Grace, Publ. DJE de 26.3.2010; (HC 82.788/RJ, Rel. Min. Celso de Mello; RHC 90.376/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO; Inq 2424/RJ. Relator Min. Cesar Peluso. Ocasiões que se debateu a interpretação ampliativa do conceito de casa como asilo inviolável, mas não aprofundaram o critério que deva o agente público considerar para identificar a justa causa que autorizaria o ingresso sem ordem judicial, limitando-se e infirmar que seria em hipótese de flagrante delito.

[6]CASTRO, Henrique Hoffmann. Juízos de prognose e diagnose do delegado são essenciais na investigação. Revista Consultor Jurídico. Disponível: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-09/academia-policia-juizos-prognose-diagnose-sao-essenciais-investigacao#_ftnref6>, acesso em: 15/08/2016.

Autores

  • Brave

    é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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