Direito Civil Atual

Relações de consumo na visão do Superior Tribunal de Justiça (Parte 1)

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15 de agosto de 2016, 8h53

Spacca
Humberto Martins [Spacca]Ao tratar da análise das relações de consumo no Superior Tribunal de Justiça, retomo minha participação na Coluna Direito Civil Atual, que tenho a honra de ser um dos coordenadores, ao lado dos ministros Luís Felipe Salomão e Antonio Carlos Ferreira, além dos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva.

Na coluna de hoje, vamos discutir três interessantes tópicos: a) o conceito de consumidor; b) o princípio da vulnerabilidade; c) o dever de informar nas relações de consumo.

O conceito de consumidor
Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o Direito do Consumidor é uma das mais desafiadoras disciplinas que a Corte debate em seus julgamentos.

Um dos pontos mais complexos da atuação do STJ está na definição do que seja consumidor, o que permite delimitar o âmbito de incidência das normas ao caso concreto. Há diversas acepções de consumidor, com base na legislação e na interpretação doutrinária. De rigor, quatro podem ser diretamente extraídas da Lei 8.078/1990, sendo que um deles é material e os outros três sentidos são por equiparação.  Eles podem ser assim organizados:  

a) o artigo 2º do CDC dispõe que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”;

b) o parágrafo único do artigo 2º do CDC equipara a consumidor “a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”;

c) o artigo 17 do CDC também equipara a consumidor todas as vítimas do dano causado pelo fato do produto e do serviço; e

d) o artigo 29 do CDC indica que são equiparadas a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais e que, por isso, fazem jus à proteção contratual.[1]

Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor define o que é considerado “fornecedor”, a saber, qualquer pessoa física ou jurídica, seja ela pública ou privada, nacional ou estrangeira, e os entes despersonalizados, “que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços” (artigo 3º, caput, do CDC). Essa indicação de atividades não é taxativa e pode açambarcar até mesmo situações de gratuidade na oferta de bens (amostras grátis) ou na prestação do serviço (transporte aeronáutico ou rodoviário a passageiros que são portadores de milhas obtidas em programas de fidelização).

Evidentemente que ainda persistem muitos problemas na delimitação do conceito de consumidor, mesmo na jurisprudência do STJ. A ampliação excessiva desse conceito pode gerar mais efeitos negativos do que vantagens ao próprio consumidor, na medida em que se todos são assim considerados, ao final ninguém o será verdadeiramente. Essa é uma preocupação que tem sido enfatizada pelo ministro Antonio Carlos Ferreira em seus estudos e em seus eruditos acórdãos.[2]

A vulnerabilidade do consumidor
Uma vez entendido quem seja legalmente um consumidor, sempre com a advertência para não se cair nos excessos da teoria maximalista, é importante entender o que seja o princípio da vulnerabilidade, que é central para a operacionalização das técnicas protetivas do CDC.

A desigualdade entre consumidor e fornecedor é um dado objetivo no exame das relações submetidas ao CDC. Uma das causas dessa desigualdade está no caráter vulnerável do consumidor. A vulnerabilidade “é multifária, decorrendo ora da atuação dos monopólios e oligopólios, ora da carência de informação sobre qualidade, preços, crédito e outras características dos produtos e serviços. Não bastasse tal, o consumidor ainda é cercado por uma publicidade crescente, não estando, ademais, tão organizado quanto os fornecedores”.[3]

Por um lado, observe-se que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor é necessário, visto que os fornecedores se organizam, quase sempre, em estruturas verticalizadas capazes de transformar insumos em produtos e de reduzir os custos de transação, como já demonstrou, na primeira metade do século XX, Ronald Harry Coase, laureado com o Prêmio Nobel de Ciências Econômicas, cuja obra finalmente chegou ao Brasil em língua portuguesa.[4]

Por outro lado, o consumidor não tem qualquer controle sobre essas estruturas nas quais os fornecedores se organizam, nem sobre o correspondente ciclo de produção, o que o torna desconhecedor dos meandros da relação de consumo e sujeito às regras dos titulares dos bens de produção, além de ser frágil contratual e, em tese, economicamente.

O CDC tem, por conseguinte, uma visão protetiva apta a discernir essa posição vulnerável do consumidor nas relações de consumo. Trata-se de uma proteção destinada a manter ou restituir o equilíbrio contratual nas relações estabelecidas entre fornecedor e consumidor.

A concretização desse conceito tem-se dado de maneira moderada na jurisprudência do STJ:

a) O critério da vulnerabilidade tem servido para atenuar a teoria finalista para se “autorizar a incidência  do  Código  de  Defesa  do  Consumidor nas hipóteses  em  que  a  parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja  tecnicamente  a  destinatária  final do produto ou serviço, se apresenta  em  situação de vulnerabilidade”[5]

b) Não é possível admitir a vulnerabilidade de uma pessoa jurídica que “não ostenta a condição de consumidora final”, ao exemplo de “um laboratório clínico que adquiriu os produtos para insumo de  sua  atividade comercial”.[6]

c) O princípio da vulnerabilidade tem por objetivo assegurar a “igualdade formal-material aos sujeitos da relação jurídica de consumo, o que não quer dizer compactuar com exageros”.[7]

d) A vulnerabilidade, conforme entendimento doutrinário, pode-se apresentar sob três modalidades: “técnica (ausência de conhecimento específico acerca do produto ou serviço objeto de consumo), jurídica (falta de conhecimento jurídico, contábil ou econômico e de seus reflexos na relação de consumo) e fática (situações em que a insuficiência econômica, física ou até mesmo psicológica do consumidor o coloca em pé de desigualdade frente ao fornecedor). Mais recentemente, tem se incluído também a vulnerabilidade informacional (dados insuficientes sobre o produto ou serviço capazes de influenciar no processo decisório de compra)”[8]

O dever de informar nas relações de consumo
O consumidor possui direito à informação, ao passo em que o fornecedor tem o dever de informar. Trata-se de um direito e de um dever, cujos fundamentos podem ser encontrados diretamente no artigo 6º, inciso III, do CDC, quando este estabelece que é essencial a “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.

A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.364.915/MG,[9] negou provimento a recurso especial interposto por fornecedor que, sem informar claramente o consumidor, reduziu o volume de refrigerantes de garrafa PET de 600 ml para 500 ml, prática que se enquadra no conceito de “maquiagem de produto” ou “aumento disfarçado de preços”. A situação agravou-se pelo fato de envolver marcas conhecidas há anos no mercado e, por isso mesmo, detentoras da confiança dos consumidores.

Nas razões do recurso especial, o fornecedor sustentou que comercializa os refrigerantes em caráter final, não sendo seu fabricante ou distribuidor, de modo que não poderia ser responsabilizado por conduta de terceiros que, porventura, tenham deixado de informar a redução do volume do líquido. Além disso, alegou que teria tido o cuidado de diminuir o preço do produto posto à venda ao consumidor.

O acórdão da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ressaltou que, nesses casos, o Código de Defesa do Consumidor pune a existência do vício de quantidade do produto, bem como prevê, expressamente, a responsabilidade solidária entre todos os fornecedores da cadeia de produção e circulação, podendo qualquer um deles ser acionado pelo consumidor, nos moldes do artigo 19 do CDC. Acontece que são legitimados a figurar no polo passivo da relação de consumo todos os participantes que integrem a cadeia geradora ou manipuladora de bens e serviços quando existir ato ou fato, omissivo ou comissivo, que coloque em risco ou ofenda um direito do consumidor de bens e serviços.

Muito embora a fornecedora de refrigerantes tenha invocado a iniciativa de abatimento no preço dos refrigerantes como fator supostamente capaz de afastar a responsabilidade civil, é o vício de quantidade em si que frustra a expectativa legítima dos consumidores (independentemente de ser o vício explícito ou discreto), ocasionando ofensa ao supracitado caput do artigo 18 do CDC.

Embora a informação e a prevenção de danos ao consumidor estejam fortemente protegidas pela legislação constitucional e infraconstitucional, as infrações à relação de consumo são constantes, porque para o fornecedor o lucro gerado pelo dano poderá ser maior do que o custo que terá com a reparação do prejuízo causado ao consumidor.

No caso concreto, o aviso sobre a redução do volume foi posto em letras muito pequenas e na parte inferior do rótulo, o que fez com que a informação não fosse suficiente para alertar o consumidor. Além do mais, foram mantidos o antigo tamanho, a forma e o rótulo do recipiente, o que impediu o consumidor de perceber a redução de volume do produto vendido há anos no mercado.

***

Na próxima coluna, deve-se analisar um pouco mais o dever de informação e examinar-se o problema dos abusos praticados no mercado de consumo.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] LUCCA, Newton de. Direito do consumidor. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 118-119.

[2] “Ocorre que o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil adotam marcos teóricos diferentes para justificar uma eventual intervenção judicial para a revisão ou resolução dos contratos. Essa diferenciação de fundamentos não é um expediente de puro interesse acadêmico. Ela conserva grande utilidade prática e impede a inadequada aplicação dos dispositivos de ambos os códigos, além de restringir os efeitos da insegurança jurídica, tão danosa à economia dos contratos. Esse tema presta-se, de modo especialmente fecundo, ao diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, o que se tem demonstrado tão necessário quanto rarefeito nos dias atuais” (FERREIRA, Antonio Carlos. Revisão judicial de contratos: Diálogo entre a doutrina e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v. 1, p.27-39, out.-dez.2014).

[3] GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 7.

[4] COASE, Ronald Harry. A firma, o mercado e o direito. Coleção Paulo Bonavides. Tradução de Heloísa Gonçalves Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016, p. 6.

[5] STJ. AgRg no AREsp 837.871/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 26/04/2016, DJe 29/04/2016.

[6] STJ. AgRg no Ag 1299116/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 01/03/2016, DJe 10/03/2016.

[7] STJ. REsp 586.316/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 17/04/2007, DJe 19/03/2009.

[8] STJ. REsp 1195642/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/11/2012, DJe 21/11/2012.

[9] STJ, REsp 1.364.915/MG, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 14/5/2013, DJe 24/5/2013.

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