Opinião

Condenados por desembargadora deveriam entrar com revisão criminal

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15 de agosto de 2016, 15h22

Parece estranha a afirmação do título, mas aprendemos na faculdade, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e nos livros de doutrina que um magistrado deve exercer seu oficio com imparcialidade. E que ele não deve ter prejulgamentos. O que acontece quando um juiz de segundo grau, que julgou milhares de apelações e habeas corpus, diz o que pensa sobre a função de julgar e sobre acusados e colegas o que disse a desembargadora Marli Mosimann, que se aposentou recentemente no Tribunal de Justiça de Santa Catarina?

Vou falar sobre o que disse a desembargadora. No Brasil, as pessoas têm medo de falar de autoridades. Afinal, podem ser retaliadas. Por isso, cada um diz o que quer. É quase inexistente o constrangimento que a opinião pública deveria exercer sobre autoridades que dizem o que querem e sabem que podem dizê-las impunemente. Herança patrimonialista de Pindorama. Basta ler o livro de Stuart Schwarz , Burocracia e sociedade no Brasil colonial.

Na entrevista ao jornal O Sol Diário, disse coisas muito graves, vindas de um magistrado:

“— Eles (advogados) não gostam que caia na nossa [Câmara] (risos). Nós, para soltar traficante, é difícil. Apreciamos o que o juiz decide. Se há uma frase fundamentada, mantemos a prisão. Na nossa cabeça não precisa muito para fundamentar. Os liberais entendem que precisa mais. É uma forma de interpretar”.

Não, desembargadora. Fundamentação é algo que consta na Constituição e, por certo, não é o que a senhora pensava que era. E não são os liberais que entendem que “precisa mais”. Definitivamente, não. É (apenas) a Constituição que exige. E, casualmente, também o Supremo Tribunal exige mais. Há dezenas de acórdãos do STF dizendo isso. Mas parece que isso não importava muito, pois não? Afinal, segundo entendi, a desembargadora decidia como achava que devia. Bastava uma frase de fundamentação (sic) do juiz e, pronto. Não soltavam traficante. E veja-se o tom e contexto no qual a desembargadora falou nisso e disso.

Ora, soltar ou não soltar, desembargadora, não pode ser uma coisa de “formação”, como disse a senhora ao se referir à sua colega que veio da classe dos advogados. E como a desembargadora explica a frase “se eu leio o processo e vejo três ou quatro elementos já acho que dá para condenar”? A senhora não acha que isso é visível pré-julgamento? Quebra de imparcialidade? A senhora se baseava em que para dizer isso? No seu Código de Processo Penal? Na sua Constituição? Isso é regra na câmara em que a desembargadora atuava? Sempre achei que, para condenar, a prova tinha que ser robusta. Aliás, até o Malatesta, em seu Tratado escrito no século XIX, quando ainda não existiam essas coisas chatas como “dever de fundamentação”, já dizia que “prova para condenar tem de ser robusta”.

E quer dizer que o desembargador que começou a “soltar traficante” (sic) foi retirado de sua câmara porque a senhora e outros mexeram uns pauzinhos? Essa justiça… Será que ela é cega? Pelo jeito, imparcial é que ela não é.. Ao que li — e os leitores podem conferir — a desembargadora e alguns colegas não gostavam dos votos dele e o constrangeram a sair. Claramente ela disse que “mexeram uns pauzinhos”. Que coisa, não? “Mexer uns pauzinhos” é expressão típica das raízes patrimonialistas brasileiras, tão bem denunciadas em Os Donos do Poder, que, pela enésima vez, recomendo a leitura.

Nem vou falar da opinião da desembargadora sobre o juiz de Joinville, titular da Vara de Execuções, conhecido em todo o Brasil por seu trabalho humanitário.

Paradoxalmente, a desembargadora diz que isso só se acaba [corrupção, violência, impunidade, etc] com uma boa educação. Concordo totalmente: uma boa educação jurídica, com faculdades que formem juízes que cumpram a lei e a Constituição e não formem juízes que pensam que podem decidir como querem.

E a desembargadora defende a pena de morte. Bom, para quem não cumpre a Constituição no sentido de sua fundamentação, não surpreende que diga que é a favor da pena de morte, aliás, vedada na Lei Maior. A frase de sua Excelência foi inconstitucional, para dizer o menos.

Sobre as entidades que defendem direitos humanos, a desembargadora disse que elas “dão muito valor aos direitos humanos” (sic). Interessante. A Constituição diz exatamente isso: que devemos dar mais valor aos direitos humanos do que qualquer outra coisa. De novo, ela foi inconstitucional.

Outra coisa que a desembargadora disse e que é inconstitucional: ela nunca deu liminar. Ao que entendi, não importa a motivação do habeas corpus. Ela simplesmente não concede liminar. Ou seja, mesmo em condições totalmente ilegais, uma prisão, se o habeas caia com a desembargadora como relatora, tinha que esperar até o julgamento na câmara. Quer dizer: o STF lida com cautelares em habeas todos os dias. Mas a desembargadora, não. Bom, ela deixou bem claro o porquê de não dar liminar.

Outra questão contraria a lei e ao que determina o Conselho Nacional de Justiça: a desembargadora é contra a audiência de custódia, verbis:

“— Não precisaria haver. Chega sujeito drogado, bêbado. Já basta o que a polícia tem de segurar. O juiz tem que ler o que há no processo para decidir o que fazer. Não é olhar o réu e decidir. O réu pode se apresentar bem, dizer que é um rapazinho bom, aí vai olhar nos antecedentes e há um monte de coisa. Acho que isso não resolve nada não. Jogaram isso para ver se soltam mais, mas pelo que vi os juízes não estão soltando não”.

Pois é. Mas, a audiência de custódia é para ver os antecedentes do réu? Não seria para outra coisa?

Com relação às representações contra o juiz Sergio Moro, ela disse que ele age corretamente, fundamenta bem, suas decisões são confirmadas. Até aí, tudo bem. Respeito sua posição. Só que ela complementou: “— O povinho é sem vergonha, quem é correto…”. Referia-se a quem representou contra o juiz. O povinho “sem vergonha”, ao que se depreende, é quem entra com representação. Ela deixou claro isso. Com a palavra, todos os advogados que ingressaram com ações e representações contra o agir do referido juiz.

A entrevista da desembargadora é apenas a ponta do iceberg. Disse o que pensava. Muita gente pensa isso e não diz. Nisso até vejo um mérito na fala de sua Excelência. Mas creio que cabe uma reação da comunidade jurídica. A Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina e o Conselho Federal não podem deixar passar in albis a entrevista. Trata-se de um discurso que fere os cânones constitucionais baseados no respeito à dignidade da pessoa humana e no respeito às garantias constitucionais, além de pecar contra o dever de imparcialidade que deve ter todo e qualquer magistrado. Também é de se lamentar a atitude da desembargadora para com seu colega contra o qual ela mexeu pauzinhos no TJ-SC. Isso deve ser esclarecido. Com a palavra, o tribunal. Além dela, quem mais “mexeu pauzinhos”? Isto aqui é uma República. E exige transparência. Os jurisdicionados querem saber se alguém mexe pauzinhos para que um desembargador saia de um órgão fracionário. Gravíssimo.

Finalmente, os acusados condenados pela desembargadora poderiam ingressar com revisão criminal, alegando quebra de imparcialidade, como argumento inicial. Quebra de imparcialidade ou fundamentação precária são questões que ferem a própria Constituição. Não esqueçamos que os tratados internacionais garantem que juízes e tribunais devem ser imparciais.

E mais não precisa ser dito. Apenas lamentar que esse tipo de coisa ainda aconteça no Brasil. É, mutatis mutandis, como aquele procurador da República que, na fundamentação de um parecer, para manter uma prisão, disse que “passarinho na gaiola canta melhor”. No fundo, tudo isso é meio cinza, meio igual, meio Brasil demais. Será que é tão difícil para um acusado ter, como julgador, alguém imparcial e que não julgue segundo sua opinião pessoal ou seus preconceitos com relação a quem comete crimes? Por que esse preconceito com relação a quem defende direitos humanos? Mas não são exatamente os juízes que devem defender e proteger os direitos humanos? Mas, se uma desembargadora pensa assim, a quem vamos recorrer?

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