Estado da Economia

Benefícios financeiros e creditícios: esses ilustres desconhecidos

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

14 de agosto de 2016, 8h00

Spacca
Muito embora os benefícios creditícios e financeiros estejam previstos na Constituição Federal, em seu artigo 165, parágrafo 6º, a verdade é que pouco se tratou do tema do ponto de vista jurídico. Como acontece com os gastos tributários indiretos, que parecem situados em um ponto cego entre Direito Econômico, Financeiro e Tributário[1], o tema desta coluna acabou, de forma ainda mais intensa, ignorado pelo Direito Econômico, Financeiro e Administrativo.

Ao lado das renúncias tributárias (gastos tributários e previdenciários indiretos), os benefícios financeiros e creditícios são analisados como renúncias de receita (muito embora estejam mais próximos de gastos efetivos). Porém, ao contrário dos primeiros, que implicam em deixar de arrecadar valores tributários (em geral, por meio de isenções e regimes tributários específicos), os benefícios aqui estudados são gastos feitos, ainda que indiretamente, pelo governo com vistas a conceder créditos subsidiados, equalizar juros de créditos, preços subsidiados e assunção de dívidas de fundos.

Quando o governo concede créditos ou subsidia o fornecimento de produtos ou estabelece fundos com recursos subsidiados (ou até mesmo assume dívidas desses fundos), tem-se, em verdade, que o Estado, ao praticar esses valores inferiores aos de mercado (custos de oportunidade), acaba por assumir um gasto efetivo ou postergado, de forma que o beneficiário daqueles subsídios seja o tomador do crédito, o comprador dos produtos ou aqueles sujeitos que se valem desses fundos.

Mais adiante definiremos os dois tipos de benefícios ou subsídios. Por ora, alguns dados preliminares justificam a nossa dedicação ao tema:

As renúncias federais totais chegaram em um montante (projetado), em 2014, de R$ 302,3 bilhões, dos quais R$ 58,6 bilhões corresponderam a esses benefícios creditícios e financeiros (sendo, os demais, gastos tributários indiretos), de acordo com o Relatório e Parecer sobre as Contas do Governo da República de 2014[2]. Em 2015, o valor desses benefícios chegou a R$ 107,7 bilhões.

O volume de recursos financeiros, o impacto fiscal de sua utilização sobre a dívida pública e o uso desses subsídios para programas de natureza econômico-social, incluindo infraestrutura, justificam e até impõem o conhecimento e a análise de suas características por parte dos juristas de Direito Econômico e Financeiro, isso sem levar em conta o relevante tema da transparência fiscal em nossas contas.

Do ponto de vista normativo, a Constituição Federal prevê, no parágrafo 6º do artigo 165, que a lei orçamentária (seu projeto) será acompanhada de demonstrativo regionalizado do efeito dos benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia sobre as receitas e despesas[3].

Perceba-se que há, ali, tão somente a alusão a esses benefícios, sem maiores definições, delimitações ou outros pormenores (não que isso seja, em si, qualquer falha ou sequer de que se trataria de função constitucional alguma definição).

Além disso, o inciso II do artigo 5º da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF) estabelece que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) será acompanhado daquele demonstrativo regionalizado dos efeitos desses benefícios previstos acima.

A partir dessas determinações e da própria atividade de fiscalização externa do Tribunal de Contas da União (TCU), coube ao Ministério da Fazenda construir uma definição para a realidade brasileira do que seriam esses benefícios, de quais se tratariam (programas e fundos) e de como avaliar cada um.

A Portaria 379/2006 do Ministério da Fazenda atribui à Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda a competência para elaborar o demonstrativo que acompanha o PLOA, elaborar a apuração regionalizada de cada programa ou fundo para a análise do TCU e avaliar o seu impacto nos resultados fiscais e a efetividade daquelas políticas (artigo 4º)[4].

Assim, toda vez que o governo federal constrói uma política econômico-social para subsidiar créditos com juros inferiores aos de captação, com preços inferiores aos de mercado ou, simplesmente, assume dívidas de fundos, esses gastos devem ser apurados, regionalizados e estudados pelo governo, seja para informar o PLOA, seja para prestar contas ao TCU (Acórdão 1.718/2005-TCU Plenário).

Podemos, assim, definir os benefícios creditícios como subsídios que decorrem de programas oficiais de crédito concedidos a taxas de juros inferiores ao custo de captação do governo e que são operacionalizados por meio de fundos ou programas. Em outros termos, como os créditos oferecidos a seus tomadores possuem uma remuneração de juros inferior aos juros que remuneram os títulos emitidos pelo governo, tornando-os mais acessíveis e atraentes, essa diferença é assumida pelo governo federal.

Esses gastos não aparecem, no orçamento, vinculados diretamente aos benefícios que foram concedidos, e sim a outras despesas como serviços da dívida pública[5]. Por isso, são considerados implícitos, até mesmo porque não se concretizam no instante da transferência do recurso ao fundo ou programa, mas decorrem da diferença entre a taxa de juros do programa e aquela com a qual o governo federal se financia (busca recursos para tal desiderato)[6].

Já os benefícios (ou subsídios) financeiros são transferências correntes ou desembolsos efetivos feitos pelo governo federal para equalizar juros ou preços ou para a assunção das dívidas decorrentes de saldos de obrigações de responsabilidade do Tesouro Nacional.

Mais especificamente, podem ser[7]:

  • subvenção social, mediante transferências correntes (cooperação financeira) para cobrir despesas correntes de instituições públicas ou privadas sem fins lucrativos;
  • subvenção econômica, mediante transferências correntes destinadas a empresas públicas e privadas mediante autorização legal (cobertura de déficits, equalização entre preços de compra e revenda, equalização entre a taxa de captação de instituição financeira e aquela cobrada do mutuário final e pagamentos de bonificações a produtores);
  • auxílios, mediante transferências sob a forma de despesa de capital na forma de investimento em pessoas de direito público ou privado sem fins lucrativos, independente de contraprestação e mediante autorização legal.

Os benefícios financeiros são considerados benefícios explícitos porque constam como gastos no próprio orçamento e representam efetivo desembolso do governo relacionado ao programa ou fundo a que se destina.

São exemplos de benefícios creditícios os Fundos Constitucionais de Financiamento (FNO, FNE, FCO), bem como o Fundo da Marinha Mercante (FMM).

São exemplos de benefícios financeiros (i) com equalização de juros o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) e o Programa de Apoio ao Setor Sucroalcooleiro (PASS) e (ii) com equalização de preços o Programa Garantia e Sustentação de Preços na Comercialização de Produtos Agropecuários e a Subvenção a Consumidores de Energia Elétrica da Subclasse Baixa Renda e (iii) com assunção de dívida o Fundo de Compensação das Variações Salariais (FCVS)[8].

Sobre o paradigma de comparação que permita comparar os juros e preços efetivamente praticados nos programas e fundos e o que seria devido se se fosse adotar os juros de financiamento do governo, a Secretaria de Política Econômica definiu como custo de oportunidade do Tesouro o custo médio das emissões em oferta pública da dívida pública mobiliária federal interna verificado nos últimos 12 meses[9]. Ou seja, todo crédito ou financiamento concedido com valor inferior a esse custo médio será considerado um subsídio (gasto/renúncia) do governo federal.

Com intensidade crescente o Tribunal de Contas da União tem se ocupado com a fiscalização desses benefícios, desde a provocação para a sua apuração anual e regionalizada, para a estipulação de metodologias de apuração pré-estabelecidas, até para a avaliação da efetividade de cada fundo ou programa.

A competência para todas essas atividades, como visto, é da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, que, anualmente, faz esses estudos e promove avaliações de efetividade de alguns deles, de acordo com o acompanhamento das equipes do TCU.

Uma das grandes preocupações do TCU tem sido com o valor da dívida entre o Tesouro Nacional e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sobretudo com o acúmulo de todos os valores anuais já concedidos, levando-se em conta a longa duração de alguns daqueles programas (Acórdão 3.071/2012-TCU-Plenário, itens 9.1.5 e 9.1.6).

Os valores apresentados pela Secretaria de Política Econômica foram:

Subsídio Nominal Projetado 2015-2018 em R$ milhões.

Ano Saldo inicial BNDES Subsídio (3/2015)
31/12/2015 448.739,45 25.459,01
31/12/2016 471.148,15 25.702,18
31/12/2017 492.858,34 23.242,51
31/12/2018 513.472,22 23.123,84

Mais uma vez, os valores envolvidos e a natureza não só fiscal, mas também jurídica desses instrumentos de política econômica, impõem o estudo da governança e efetividade desses benefícios concedidos pelo governo federal.

Outra grande preocupação do TCU, no acompanhamento dos resultados dos benefícios, está no Programa Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR). O nosso texto de hoje pretendia apenas introduzir esse complexo tema no debate jurídico. Na próxima oportunidade, daremos continuidade ao assunto, tratando da governança, transparência e efetividade desses benefícios.


[1] Ao menos quando se trata de ir além de sua definição jurídica ou do uso de isenções fiscais como instrumentos de indução econômica e eventuais desdobramentos de controle de validade (inevitavelmente em torno da igualdade e proporcionalidade).
[2] http://portal.tcu.gov.br/tcu/paginas/contas_governo/contas_2014/index.html. Convém anotar que os números do TCU são sempre um pouco distintos dos da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, que leva em conta todos os valores, incluindo os negativos (em geral, quando o retorno do programa superou o custo de oportunidade do governo e, portanto, não houve efetivo subsídio), ao passo em que os números do TCU levam em conta apenas aqueles programas em que houve valor a ser renunciado/gasto. Dessa forma, em geral, os números da SPE são um pouco menores, já que levam em conta também todos os programas, independentemente se o resultado do cálculo do subsídio foi positivo ou negativo. Veja os valores da SPE em http://www.spe.fazenda.gov.br/assuntos/politica-fiscal-e-tributaria/beneficios-financeiros-e-crediticios
[3] […] “§ 6º O projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia”.
[4] http://www1.fazenda.gov.br/portugues/legislacao/portarias/2006/portaria379.asp. Essa competência também está no Regimento do Ministério da Fazenda. Ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7482.htm.
[5] Quanto a este último aspecto, ver Charles Mathusalém Soares EVANGELISTA, Eunice Lemos Rosal DAROS, Leonardo Rodrigues ALBERNAZ, Virgínia de Ângelis Oliveira DE PAULA. “Perspectivas do Controle sobre os Benefícios Fiscais: Avaliação da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR)” in Revista do Tribunal de Contas da União, num. 121, 2011, p. 47, disponível em http://revista.tcu.gov.br/ojsp/index.php/RTCU/issue/view/12/showToc. Ver, ainda, Francisco Carlos Ribeiro de Almeida. “Uma Abordagem Estruturada da Renúncia de Receita Pública Federal”, in Revista do Tribunal de Contas da União, vol. 31, n. 84, abr/jun 2000, pp 24-5, disponível em http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2055468.PDF.
[6] Veja explicação, bem como a categorização de cada programa ou fundo como explícito e implícito em http://www.spe.fazenda.gov.br/assuntos/politica-fiscal-e-tributaria/beneficios-financeiros-e-crediticios/demonstrativo2015_sitespe_v3.pdf.
[7] Seguiremos de perto, aqui, a classificação de Francisco Carlos Ribeiro de ALMEIDA. “Uma Abordagem Estruturada da Renúncia de Receita Pública Federal”, in Revista do Tribunal de Contas da União, vol. 31, n. 84, abr/jun 2000, p. 24, disponível em http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2055468.PDF.
[8] Exemplos presentes em: http://www.spe.fazenda.gov.br/assuntos/politica-fiscal-e-tributaria/beneficios-financeiros-e-crediticios/demonstrativo2015_sitespe_v3.pdf.
[9] A Portaria 57 do Ministério da Fazenda, de 27 de fevereiro de 2013, que delimita o conceito de custo de oportunidade do Tesouro Nacional utilizado no cálculo dos benefícios creditícios, especifica os critérios de regionalização dos benefícios financeiros e creditícios apurados, bem como atualiza a lista de fundos e programas constantes no demonstrativo e suas respectivas metodologias de cálculo. Ver http://www.spe.fazenda.gov.br/assuntos/politica-fiscal-e-tributaria/beneficios-financeiros-e-crediticios/portaria-no-57-do-ministerio-da-fazenda-de-27-de-fevereiro-de-2013

Autores

  • é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente em Direito Econômico e doutor em Direito Econômico e Tributário pela USP. Foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique, na Alemanha.

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