Violência contra mulher

"Em casos de revenge porn, proteção do ECA é falha e Maria da Penha não é usada"

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14 de agosto de 2016, 8h26

Spacca
Mariana Valente, Natália Neris e Juliana Ruiz, pesquisadoras do InternetLab.

A divulgação de fotos íntimas não é nem de perto o único problema que as mulheres enfrentam nos casos de revenge porn, ou vingança pornográfica, que chegam à Justiça. Em muitos casos, o homem de posse de vídeos e fotos íntimas de mulheres faz extorsão e chantagem — chegando a obrigar a vítima a fazer sexo em troca de não divulgar as imagens. Nesses casos, o Ministério Público é o propositor da ação, e a Justiça paulista tem, muitas vezes, chegado a condenações.

O mapeamento dos casos foi feito pelo o InternetLab, Centro de pesquisa em Direito e tecnologia, baseado em São Paulo, financiado por doações, principalmente da Fundação Ford. O grupo foi a campo pesquisar como a Justiça lida com casos de disseminação não consentida de imagens íntimas na internet. Para isso, analisou todos os acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo publicados entre meados de 2013 e 2015 que envolvem o tema. 

Mariana Valente, doutoranda em Sociologia Jurídica na Faculdade de Direito da USP e diretora do InternetLab e as pesquisadoras Juliana Ruiz, graduanda em Direito na USP, e Natália Neris, mestra em Direito pela Fundação Getulio Vargas, apontam que a situação muda quando o homem divulga as imagens sem fazer nenhum tipo de pedido. Aí o problema não é identificar os autores: na enorme maioria dos casos, as vítimas sabem quem vazou as fotos ou vídeo. Acontece que nesses casos o MP fica de fora. A vítima deve abrir ação por conta própria. Se não tiver recursos, como é o caso em muitas vezes, pode recorrer à Defensoria Pública, mas o órgão que já disse às pesquisadoras não ter condições de cuidar desses casos.

Na pesquisa, surgiu outra questão importante: o que fazer quando as imagens são de crianças e adolescentes? O Estatuto da Criança e do Adolescente determina que o Ministério Público deve agir para efetivar os direitos dos menores. Porém, na prática, as pesquisadoras observaram que o ECA não está preparado para lidar com esses casos, muito por ter uma definição fechada do que é pornografia.  “Essa legislação não foi feita para esses casos. Foi feita mais para conter a pornografia infantil”, ressalta  Juliana Ruiz.

Uma maneira de alargar a proteção da mulher contra a violência da divulgação de imagens é aplicar a Lei Maria da Penha nos casos, já que ela prevê violência psicológica. Porém as pesquisadoras viram que essa legislação quase nunca é usada — e seu acionamento deve ser indicado por quem propõe a ação.

O Congresso, como sempre aos trancos e barrancos, tenta lidar com o tema: “Existe um projeto de lei que prevê uma fusão na Lei Maria da Penha ao capítulo que define os tipos de violência, e aí entraria a agressão contra a liberdade sexual. Há outra proposta de inclusão no Código Penal de um crime específico e uma alteração na Lei Maria da Penha”, explica Natália Neris.

A pesquisa de Mariana, Juliana e Natália resultou no livro O Corpo é o Código: estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil, em formato digital e com acesso gratuito.

O objetivo não foi tanto propor soluções, mas tentar mostrar como a Justiça vem lidando com estes casos e ampliar o debate. Conversando com pessoas que trabalham com jovens, elas viram que todos dizem que essa difamação via imagens é um dos maiores problemas entre adolescentes nas escolas – em todas as escolas que consultaram havia pelo menos um caso.

Elas se preocupam em não defender um punitivismo do Estado, até porque lembram que qualquer ação desse tipo necessita de outros debates, como a situação carcerária brasileira.

Leia a entrevista:

ConJur —  Essa questão da revenge porn não é uma coisa nova, mas parece que a questão tem sido mais discutida nos últimos tempos. De onde veio a ideia de fazer essa pesquisa?
Mariana Valente
 —  Conversando com pessoas que trabalham com jovens, todo mundo fala que é um problema número um nas escolas. Então a gente resolveu estudar o tema e começou a justamente acompanhar os casos que chegavam à mídia, como eles eram reportados e como se desenvolviam. Só que passamos a ficar incomodadas de só acompanhar via mídia, porque ela seleciona os casos para mostrar e nós não conseguíamos acesso para mostrar como acontece de fato, os que não chegam nos jornais. E para entender como o Direito olha para esse problema, achamos que uma boa forma seria olhar para as decisões judiciais do Tribunal de Justiça.

ConJur —  Quando acontece um caso de divulgação de imagem íntima, quem aciona a Justiça é o Ministério Público ou a própria vítima?
Mariana Valente — 
 Os casos contra adolescentes são processados via Estatuto da Criança e do Adolescente, então é o Ministério Púbico que se encarrega. Nos casos contra adultas, se a gente estiver falando da disseminação das imagens íntimas mesmo, o tipo penal para isso é o de injúria e difamação, que são ações penais privadas. Então é a vítima que tem que conseguir advogado e mobilizar a Justiça ou procurar a Defensoria para isso, se não tiver dinheiro para constituir advogado. Mas tem outros casos, no qual a disseminação da imagem não acontece, mas pode envolver ameaça, extorsão e estupro. Nesses casos o MP atua e todos que vimos chegar ao TJ acabam com condenação, penas de reclusão de liberdade mesmo.

ConJur — E nos casos em que não há essa extorsão, naqueles em que o agressor divulga as imagens sem pedir nada?
Mariana Valente — 
São casos de injúria e difamação e é onde está o maior problema, porque aí é uma ação penal privada. Só vimos duas decisões de difamação do Tribunal de Justiça de São Paulo e não eram decisões de mérito. O motivo para não chegar muitos casos desses ao Judiciário é justamente porque a vítima tem que constituir advogado ou vai para a Defensoria. Nós falamos com a Defensoria e eles disseram que esse papel de agir como acusador como um advogado numa ação privada é uma coisa que eles não conseguem fazer pela demanda enorme que já tem. A pessoa tem que conseguir um advogado dativo — e é quase impossível.

ConJur –— Então os casos de divulgação de imagens sem extorsão não chegam à Justiça?
Mariana Valente —  Esses casos vão parar no juizado especial, que tem recurso a um colegiado próprio e, assim, isso nunca chega ao TJ. Pode ser que tenha vários casos que venham sendo resolvidos ali, então não podemos falar que não tenha.  Quando vai para o Jecrim [Juizados Especiais Criminais] tem uma série de possibilidades de substituição da pena privativa de liberdade por outras penas. A própria transação penal. Se o réu é primário, vai entrar com como se fosse um acordo com a Justiça para prestar serviços à comunidade, para não passar por um processo penal.

ConJur —  É necessária uma nova lei para lidar com esses casos ou a legislação existente, caso seja bem aplicada, pode dar conta? 
Natália Néris —  É interessante que nós partimos de um primeiro diagnóstico no qual a ideia era criar um tipo penal novo, criar o crime de pornografia de vingança. Mas vimos que o problema se manifesta de uma forma muito variada, não só naqueles moldes que a mídia vinha tratando: um ex-namorado vingativo que expõe. Percebemos que todas as outras formas de se perpetrar essa violência já são crimes previstos no Código Penal. Outra coisa que me chamou a atenção é que quase 70% dos casos envolviam pessoas que se relacionavam efetivamente. Elas poderiam ser enquadradas na lei Maria da Penha, mas não foram.

ConJur —  E o Judiciário, está pronto para lidar com isso?
Natália Néris — 
 O primeiro ponto é a questão do acesso à Justiça. Se acontece um caso de injúria e difamação e a pessoa precisa constituir um advogado, será que toda vítima consegue esse advogado, uma vez que a Defensoria não dá conta?

ConJur —  Como seria uma caminho de solução para esses problemas?
Mariana Valente —  Instruções civis contra os provedores, em termos de "resolver" é um ponto bem importante da nossa pesquisa. São as ações que a vítima pode mover para evitar que a disseminação continue. Claro que isso não soluciona o problema primeiro, o problema estrutural, que é o machismo, que faz que essas imagens sejam disseminadas. Isso vai resolver de outras formas. Mas a gente vai mostrando as formas como as vítimas podem ingressar com uma ação contra o provedor, se for o caso, ou fazer uma notificação extrajudicial, para evitar, para retirar o material, evitar que ele seja indexado nas buscas, tem um capítulo todo que a gente trata disso.

ConJur —  O Google faz jogo duro para tirar essas coisas do ar?
Mariana Valente — Desde o ano passado eles estão falando que tiram. E estão falando que tiram mundialmente. Tem um endereço — que a gente até indica isso no fim da pesquisa — que a vítima pode acessar e pedir a remoção. E o Google remove. Tem a questão também dos provedores serem obrigados por uma ação civil no Brasil a tirar esse tipo de conteúdo.A regra geral era que o provedor só vai ser responsabilizado por um conteúdo ilícito depois de uma ordem de um juiz. A exceção, no Marco Civil da Internet, é esse tipo de conteúdo.

ConJur — O Marco Civil tem funcionado bem nesses casos?
Mariana Valente — 
É difícil de dizer, porque a gente só olhou para os casos até o meio de 2015 e pouca coisa já tinha chegado ao Tribunal de Justiça depois da aprovação do Marco Civil, que foi em 2014. Mas do que chegou e das entrevistas que fizemos com os advogados, parece que a regra está funcionando bem. Ficou claro que, uma vez notificado, o provedor iria se tornar responsável se não tirar o conteúdo. Parece que está mudando a concepção sobre a responsabilidade deles em relação a isso.

ConJur – No livro fica claro que o ECA não protege os adolescentes quanto a essa disseminação de imagens. Onde o estatuto falha?
Juliana Ruiz — 
A proteção do ECA não é suficiente, porque para um adulto ser processado, é preciso provar que ele sabia que a adolescente era menor de idade. Tivemos um caso no qual uma menina que teve as fotos divulgadas fazia faculdade e tinha sido noiva. Então o desembargador falou no acórdão que como ela já tinha sido noiva era razoável o homem não saber que ela era menor. Então ele não foi condenado. E o ECA, quando fala em pornografia é bem específico, ele fala que pornografia é cena de sexo explícito ou com exposição de [órgão] genital. Então quando tem alguns casos que as autoras estavam de roupas íntimas, as pessoas não foram condenadas porque não tinha sexo explícito nem exposição de genital. Essa legislação não foi feita para esses casos de adolescentes, foi feita mais para conter a pornografia infantil.

Mariana Valente — Foi bem interessante para a gente ver que a maioria dos casos envolvendo adultas gerou condenação e, nos envolvendo o ECA, metade gerava absolvição. Nossa primeira reação foi de surpresa, pois essa era para ser uma legislação mais protetiva. Quando vai aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente, parece que o juiz pensa: “Essa punição é para um pedófilo e não é esse o caso aqui”.  Também tem aquela questão de achar que se a menina se deixou fotografar, não se está falando de uma relação de abuso.

ConJur — Mas estamos falando de coisas diferentes. A adulta sofreu uma extorsão e a jovem foi exposta, são tipos diferentes na legislação.
Mariana Valente — 
Você tem razão, a gente não consegue comparar com injúria e difamação porque a gente não viu os casos. A gente está falando de casos contra adultas e casos contra jovens. Não pegamos nenhum caso de ameaça e extorsão contra jovens. Deixou-se o ECA tão rígido, que ele ficou menos rígido. Porque se tentou cercar de todos os jeitos: definiu o que é pornografia e deixou um monte de coisas de fora. O ECA criminaliza a mera posse de imagens íntimas. Então todos os casos que a gente analisou deveriam teoricamente resultar em condenação, inclusive fotografar. Pensando na lógica da lei, se a pessoa tem uma imagem íntima da menina, ela deveria ser condenada.

ConJur — Passar uma imagem pornográfica de uma menor de idade para um amigo é crime de pornografia infantil?
Mariana Valente — 
Sim, é crime de pornografia infantil.

ConJur — Mas os desembargadores não entendem assim?
Mariana Valente — 
Eles afastam, eles falam que a vítima deixou ser fotografada.

ConJur — Então não é o texto do ECA, é a aplicação.
Mariana Valente — 
As duas coisas, eu acho. Eu acho que o texto do ECA, quando ele define, restringe o que é pornografia infantil, como o Direito Penal é sempre apresentado restritivamente, tudo que fica fora não pode ser enquadrado ali. Além disso, acho que como é um crime muito direcionado para punir o pedófilo. Nesse outro caso, estamos falando de um cara que tem uma relação com a menina e divulga a imagem. Então, na interpretação, o tipo penal ele acaba sendo afastado. Outro elemento importante é que nada impede que a vítima adolescente também ingresse com uma ação de injúria e difamação. Só que a ação penal privada tem um prazo de decadência de seis meses. Se o desembargador falar que não é o caso de pornografia infantil, muitas vezes, já passou o prazo para pedir a injúria e difamação.

ConJur — A evolução da tecnologia, smartphone e internet móvel, deve ter aprofundado muito esse problema…
Mariana Valente —
 A gente estava até pensando que com a tecnologia ficando tão comum, as pessoas iam aprender a conviver com ela e os problemas diminuiriam, mas parece que não. A toda hora ouvimos histórias de meninas que mudaram de cidade, de escola, ou que ficaram em depressão dentro de casa.

Natalia Néris — E o estigma atinge necessariamente as mulheres e por muito tempo. Tem sete casos que envolvem homens [como vítimas] e dois deles são casados. Ou seja, estamos falando de uma questão de gênero.

ConJur — Então para vocês é importante esses tipos de crimes, esses tipos de agressões sejam associados à Lei Maria da Penha né?
Mariana Valente –
 É bem impressionante ela não estar sendo utilizada. Quando a gente começou a fazer a pesquisa, vimos que tinha um projeto de lei para incluir internet na Maria da Penha e pensávamos que isso não era necessário. Durante a pesquisa, fomos entrando mais em contato com pesquisadores da Maria da Penha e estamos vendo que não é só o caso de internet, tudo que cai fora da lesão corporal é super difícil de processar via Maria da Penha. Seja porque a delegacia não vai entender que não teve violência doméstica, seja porque as instituições estão assoberbadas…

ConJur — Seria o caso de uma mudança na Lei Maria da Penha?
Mariana Valente — No lançamento do nosso livro, fizemos um debate com a promotora Silvia Chakian. Uma das coisas que defendíamos é que talvez fosse interessante que a Lei Maria da Penha fosse alterada para incluir esses casos e deixar explícito, porque aparentemente as pessoas não estão percebendo que dá para aplicar a Maria da Penha. Até advogadas amigas minhas tinham falado que não tinham pensado na aplicação da Maria da Penha para isso. Mas a promotora apontou, que se a gente abrir uma brecha para mudar a Maria da Penha agora, com esse Congresso super conservador, não se sabe o que pode vir. Então é melhor militar pela aplicação da Maria da Penha.

ConJur — Como?
Mariana Valente —
Temos que começar a levar para o debate de que a Lei Maria da Penha tem que ser aplicada nesses casos de divulgação de imagens. Isso tem que ser falado para quem move essas ações, como advogadas e promotoras. Vemos que às vezes nem está nos pedidos.

ConJur — Existe proposta legislativa falando sobre reveng porn?
Natália Néris — 
Até o momento em que a gente encerrou a pesquisa, existiam dez projetos de lei. Desde projeto que define o crime de pornografia de vingança, com pena de três meses a um ano, até aquele que propõe colocar no Código Penal um capítulo com os crimes de liberdade sexual.

ConJur — O projeto de vocês tem mais uma ambição de propor um debate do que punição não é?
Mariana Valente —
Não fomos muito propositivas, porque achamos que esse debate tem que ser tomado por outras posições e não só por quem estuda o problema específico. Precisa pensar na questão do encarceramento, por exemplo. É um debate mais amplo que a gente não vai resolver numa pesquisa. Uma coisa bem complicada é o fato de isso ser apontado como crime de calúnia e difamação, contra a honra. No capítulo dos crimes contra a honra, o objeto jurídico, o bem protegido juridicamente é a honra da mulher, o que é um pouco esquisito. Num Código Penal que já foi reformado para tirar o conceito de mulher honesta, ter que defender que a honra foi agredida quando as imagens são espalhadas abre para um monte de coisas como comentários que a gente ouviu durante as pesquisas e entrevistas, como gente falando que uma mulher que não tem honra, não pode querer defender a sua honra. Vira uma discussão moral. Mas por que não estamos falando de um crime que esteja no capítulo contra a liberdade sexual? A gente está falando efetivamente de liberdade sexual, mas de um jeito progressista de olhar para isso. É um debate que está sendo feito no Legislativo também. Foi a liberdade sexual da mulher que foi ferida e prejudicada, não a honra dela.

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