Opinião

As armadilhas penais do Regime Especial de Regularização Cambial

Autores

  • Gamil Föppel

    é advogado professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) pós doutor em Direito Penal pela USP doutor em Direito pela UFPE e membro das comissões de Reforma da Lei de Lavagem de Dinheiro do Código Penal e da Lei de Execução Penal nomeado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado.

  • Alan Siraisi Fonseca

    é bacharel em Direito (UFBA). Pós-graduando em Direito Eleitoral (Faculdade Baiana de Direito).

12 de agosto de 2016, 6h56

Seguindo[1] recomendações de diversos organismos internacionais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)[i], foi promulgada a Lei 13.254, em 13 de janeiro de 2016, que trata da regularização de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no país.

Em relação aos aspectos tributários, muito se tem discutido sobre o regime de regularização inaugurado pela lei, especialmente sobre as questões referentes à base de cálculo do imposto devido.

Entretanto, tem-se subestimado as diversas e graves repercussões de natureza penal (que, paradoxalmente, deve estar sendo o grande móvel que impulsiona as pessoas a repatriarem). Ao que parece, o âmbito de preocupação tem-se reduzido, injustificadamente, às consequências que são meramente reflexas do direito tributário (destacadamente, a indefinição dos valores objetos da regularização), bem como à matéria da prescrição da pretensão punitiva (que não será objeto de análise, eis que não parecem existir muitas reais controvérsias jurídicas).

Nesse sentido, de forma bastante objetiva, o presente ensaio busca enfrentar as possíveis armadilhas penais do regime de regularização, dando ênfase à abrangência da extinção de punibilidade nos crimes relacionados na lei — que, verdadeiramente, é muita mais restrita do que, em uma primeira análise, aparentaria ser.

A título ilustrativo, iniciemos o estudo com um exemplo, razoavelmente corriqueiro: a fim de escapar da instabilidade econômica do país (ou por qualquer outro motivo), uma família (imagine, nesse cenário, ser ela composta por quatro membros) contrata os serviços de um doleiro, a fim de promover a remessa de determinado montante para o exterior. Em 2016, preocupados com as possíveis repercussões criminais, seus integrantes resolvem aderir ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária.

Ocorre que os recursos já tinham sido totalmente consumidos antes de 31 de dezembro de 2014. Desse modo, conforme determina o artigo 4º, caput, da Lei 13.254/2016, devem promover a descrição pormenorizada das condutas praticadas que se enquadrem nos crimes objetos da anistia e dos respectivos bens e recursos que possuíram.

Agindo em boa-fé, e sem realizar qualquer ressalva quanto aos porquês de ter aderido, preenchem a declaração única de regularização, expondo detalhadamente todos os fatos concernentes à praticada evasão de divisas, convictos de que não poderiam sofrer qualquer sanção criminal em relação a esse ilícito penal.

Será?

Entretanto, em momento posterior, veem-se denunciados pelo Ministério Público Federal, que lhes imputa a prática de associação criminosa (segundo a antiga redação do artigo 288 do Código Penal), sob o argumento deste crime não ter sido abarcado pela Lei 13.254/2016. Bem, apesar de pouco crível, não seria a primeira vez que o parquet atribuiu associação criminosa a uma família… Alegam, ainda, seguindo o disposto no artigo 4º, §12, I, que malgrado a declaração de regularização não possa ser utilizada como único indício para efeitos de procedimento criminal, quando associada a outros elementos de informação, torna-se plenamente possível o seu uso.

A questão pode até ser passível de outras discussões, como o elemento subjetivo especial do crime (a associação precisa ter o fim específico de cometer crimes[ii]), mas não retira a validade do argumento. Há uma larga restrição das hipóteses de extinção da punibilidade.

A situação torna-se ainda mais grave se forem considerados outros elementos. Do mesmo modo que o delito previsto no artigo 288 do Código Penal, a Lei 13.254/2016 não prevê anistia tributária (ou extinção de punibilidade criminal) em relação ao crime de organização criminosa (ainda que tal conceito somente tenha sido positivado, enquanto infração penal, com a Lei 12.850/2013[iii]).

Da mesma forma, não é incomum a imputação de evasão de divisas em conjunto com outros crimes contra o sistema financeiro nacional ou outras figuras típicas[iv], para as quais também não se previu a extinção de punibilidade.[v]

Com efeito, a declaração de repatriação pode acabar por se tornar, inconscientemente, um robusto elemento de prova contra o próprio declarante, acabando por ferir a garantia fundamental da não autoincriminação. A esse respeito, é essencial o relevante estudo de Maria Elizabeth Queijo, que enuncia a necessidade de advertência do acusado quanto ao princípio nemo tenetur se detegere, para que ele, adequadamente instruído, decida se consente ou não na produção da prova. Nesse sentido, afirma:

Omitindo-se a advertência, tal qual ocorre no momento do interrogatório, há o risco de que o acusado, desinformado, acabe cooperando na produção de prova que possa incriminá-lo involuntariamente.

Vedam-se, assim, por consequência, quaisquer métodos capciosos ou enganosos que possam ser utilizados pelas autoridades com a finalidade de obter a colaboração involuntária do acusado na produção da prova.[vi]

Essa natureza de autoincriminação ínsita à Lei 13.254/2016 deveria exigir, tal como consta na Lei 12.850/2013, no tocante aos acordos de delação premiada, por analogia, o acompanhamento de defensor, sob pena de ser declarada a nulidade da declaração de regularização, na hipótese desta eventualmente ser utilizada como elemento para instauração de persecução penal em desfavor do declarante.

Outro aspecto preocupante, também relacionado à extensão da anistia prevista pelo regime de regularização, pouco se tem discutido sobre a extinção da punibilidade do crime de lavagem de dinheiro.

A preocupação surge, da mesma forma como visto anteriormente, pela restrição constante no artigo 5º, §1º, VII, parte final, da Lei 13.254/2016. Destarte, a extinção da punibilidade somente ocorreria quando o objeto da infração for bem, direito ou valor proveniente, direta ou indiretamente, dos crimes previstos nos incisos I a VI do artigo 1º da Lei 9.613/98 (incisos que, como se verá, foram revogados). É dizer, não abarcaria a lavagem de dinheiro quando o delito anterior fosse praticado por organização criminosa (inciso VII) ou por particular contra a administração pública estrangeira (inciso VIII).

A primeira vista, não haveria maiores problemas nessa limitação. Isto porque, através da Lei 12.683/2012, foram revogados os incisos anteriormente previstos no artigo 1º da Lei 9.613/98. Por outro lado, o primeiro conceito legal de organização criminosa somente surgiu com a Lei 12.694/2012 — portanto, posterior à alteração na lei de lavagem de capitais. Assim, em tese, o antigo inciso VII não teria nenhuma aplicabilidade (no momento de sua vigência, não existia conceito legal de organização criminosa).

A questão que se põe, entretanto, é a possível interpretação — mesmo equivocada, mas que não deixa de ser factível — que os órgãos responsáveis pela persecução penal possam dar ao artigo 5º, §1º, VII, parte final, da Lei 13.254/2016. Podem entender que, ao não incluir o inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613/98, o legislador teria a intenção de não conceder a extinção de punibilidade quando o crime antecedente da lavagem de dinheiro fosse praticado por organização criminosa, ainda que o mencionado inciso tenha sido revogado.

Nesse ponto, é oportuno pontuar que o inciso VII do artigo 1º da Lei 9.613/98, em época que não existia conceito legal de organização criminosa, acabava por se tornar licença para enquadramento de toda e qualquer infração penal como antecedente da lavagem de dinheiro. Acertadamente, contudo, no julgamento do HC 96.007, o Supremo Tribunal Federal rechaçou essa hipótese, por malferimento à legalidade estrita.

Nesse caso, intensifica-se o problema: além da responsabilização pelo crime de integrar organização criminosa (artigo 2º da Lei 12.850/2012), o declarante ainda poderá ser penalizado pela prática de lavagem de dinheiro, em que pese tenha aderido ao regime especial.

E, de fato, pesa dizer, mas há pujantes prenúncios de como será a atuação dos órgãos de investigação em relação à aplicação da Lei 12.354/2016.

Com efeito, ainda na tramitação do então Projeto de Lei 2.960/2015, a Procuradoria Geral da República emitiu nota técnica opondo-se à medida legislativa. O posicionamento contrário do Ministério Público Federal, por si só, não é surpreendente, principalmente por se tratar de lei que prevê extinção da punibilidade de determinadas condutas relacionadas ao que se convencionou chamar de direito penal econômico. Entretanto, alguns de seus argumentos e, principalmente, as suas proposições mereceriam uma análise mais cuidadosa, dado o alarmante prognóstico jurídico. A propósito, confiram-se alguns dos preocupantes trechos:

A corrupção e a impunidade estão intimamente ligadas. O Projeto ora em análise prevê uma janela de impunidade que poderá ser uma verdadeira blindagem a favor dos criminosos e investigados nas grandes operações contra a corrupção em andamento no Brasil.

[…]

Conclui, afirmando que faz-se necessária uma eticização também do Direito Penal Fiscal, calcadas nas premissas de que o sistema não visa apenas à arrecadação, mas sobremaneira à realização — na sequência do processo — da justiça distributiva.

[…]

Tratam-se de crimes graves (lavagem de dinheiro, evasão de divisas), com profundas consequências sociais (o autor do Projeto cita que bilhões de reais foram enviados ao exterior ilegalmente), não havendo um fundamento racional para a renúncia do direito de punir.

Incorre-se no risco de haver a impressão de que não houve qualquer retribuição ao fato delituoso, justificando a expressão de que o “crime compensa”, acentuando, ainda mais, o grau de descrença da sociedade nas Instituições públicas. O fato é que, como proposto no Projeto, o instituto trará contornos de injustiça.

A bem da verdade, trata-se de discurso relativamente recorrente dentro do Ministério Público Federal, data venia. Acontece que, com esses mesmos fundamentos, a Procuradoria Geral da República propôs ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4.273, sob a relatoria do ministro Celso de Mello, ainda pendente de julgamento), questionando os artigos 67, 68 e 69 da Lei 11.941/09, que dispõem sobre o parcelamento e pagamento do tributo como causas, respectivamente, de suspensão e extinção da pretensão punitiva (em matéria de crimes tributários).

Não será surpreendente, então, que também venha a ser proposta ação de inconstitucionalidade em face de determinados dispositivos da Lei 13.254/2016, em especial aqueles relacionados a extinção da punibilidade de alguns crimes.

Ora, caso o Ministério Público, ao mesmo passo que conteste os eventuais benefícios penais da lei, utilize o diploma normativo para obtenção de declarações com conteúdo de autoincriminação, que serão posteriormente utilizadas contra o declarante, tem-se evidente obtenção de prova por meio astucioso — procedimento que é de evidente ilegalidade.

Evidentemente, na hipótese de isso ocorrer, caso haja julgamento procedente, seria o caso de se realizar uma modulação dos efeitos da decisão (o que, ao fim e ao cabo, acabaria por tornar a própria decisão inaplicável, diante da vigência temporária da lei). Repise-se que, na nossa opinião, a prova é ilícita, por ser colhida com astúcia, além de representar manifesto venire contra factum proprium. De mais a mais, é de se esperar que seguramente se o MPF, caso pretendesse acoimar de inconstitucional a lei, não aguardaria que as pessoas aderissem ao programa para, somente depois, tomar qualquer tipo de providência. 

Todavia, desde já, cabe a quem aderir ao regime de regularização algumas precauções, especialmente no sentido de consignar, expressamente, que sua declaração tem por motivo determinante a extinção da punibilidade prevista em lei, revelando sua atuação em boa-fé. Ainda que não se aceite alegações de direito adquirido à regime jurídico, a proteção da confiança, nessa situação, deverá prevalecer.

Afinal, o que não se pode aceitar é que a alegação de boa-fé do agente só valha como exclusionary rule (good-faith exception), na eventual e hipotética inconstitucional admissão de provas obtidas por meios ilícitos.

Que se diga de forma clara: aderir ao programa é, das alternativas, a menos traumática, desde que adotadas todas as cautelas, sobretudo e principalmente de aconselhamento técnico em Direito Penal. Enfim, as preocupações com o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária não podem se resumir ao valor do imposto a ser pago. Há uma significativa quantidade de consequências penais, nem sempre favoráveis, na sua adesão, exigindo-se uma maior reflexão e, destacadamente, um efetivo acompanhamento técnico-jurídico.


[1] Texto em Homenagem a Marcelo Nogueira Reis e Walter Manzi, exímios advogados tributaristas.

 


[i] Sobre os programas de “Offshore Voluntary Disclosure”, confira os estudos produzidos pela OCDE, publicados em 2010 e 2015.

[ii] A propósito, confira artigo da Conjur.

[iii] Cf. STF, HC 96.007, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 12/06/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-027 DIVULG 07-02-2013 PUBLIC 08-02-2013.

[iv] Cf. FERNANDES, José Ricardo. A evasão de divisas como estratégia do crime organizado? Razões e consequências dessa criminalização. 2010, 215 f., Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

[v] Já nos posicionamos em sentido contrário a este concurso de crimes em casos tais, por representar bis in idem. A esse respeito, ver FÖPPEL, Gamil e LUZ, Ilana. Comentários Críticos à Lei Brasileira de Lavagem de Capitais.  Rio de Janeiro, Lumen Juris.

[vi] QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003, p. 318.

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