Olhar Econômico

A evolução do direito das pessoas jurídicas no período entre guerras

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

11 de agosto de 2016, 8h00

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Comparar a evolução da lei, da doutrina e da jurisprudência, relativos às pessoas jurídicas na Bélgica, na França, no Reino Unido, nos Estados Unidos da América e no Brasil é proveitoso, também no que concerne ao momento posterior à primeira guerra mundial, que, face às vicissitudes históricas, acabou por se tornar o período de entre guerras.

A jurisprudência belga asseverou expressamente que o acesso das sociedades estrangeiras ao judiciário, tinha como pressuposto serem elas constituídas devida­mente, segundo as leis de seu país; por outro lado, não poderiam ter, perante o judiciário belga, situação melhor que a reservada às próprias sociedades belgas (caso Audriesse – 1919)[1].

Inobstante parte considerável da jurisprudência francesa pós-bélica sobre sociedades dissesse respeito a sequestro e liquidação, no âmbito das regras dos tratados de paz ainda era possível verificar qual a inclinação jurisprudencial acerca da nacionalidade das mesmas.

Três foram as tendências principais:

O posicionamento tradicional era aparente em vários julgados: sociedades constituídas segundo as leis francesas são personalidades francesas (Corte de Cassação – 1919); nacionalidade de uma sociedade é a do país em que se constituiu, sendo despiciendas suas afinidades e tendências (caso Société Européenne de Publicité – 1919); nacionalidade é determinada pelo domicílio da sociedade, que é assimilável ao centro de seus negócios (caso Société Magnet – 1926); a nacionalidade é indicada pelo lugar de sua sede social, desde que real e séria (caso Société Muller – 1926); a sociedade é francesa por ter sua sede social na França, inobstante a maioria do capital empregado nesse país seja proveniente do Reino Unido (caso Rey – 1928); a sociedade é francesa por ter sido constituída na França em consonância com a lei francesa, ter nesse país seus principais estabelecimentos, direção e exploração e seguirem seus atos sociais as praxes francesas (caso L’État Français – 1930); mesmo que se trate de sociedade de pessoas, sua nacionalidade é dada pela sua sede social, isto é, pelo lugar de seu principal estabelecimento (caso Kalebdjian – 1932).

O critério do controle não foi totalmente esquecido: valorização da depen­dência financeira e contábil com relação a sociedade estrangeira (caso Vve. Reifenberg – 1921); nacionalidade dos associados ou de sua maioria indica a nacionalidade da sociedade (caso Soc. des Établissements J. J. Carnaud – 1925); sociedade não é francesa, embora tenha sido constituída na França, em virtude de não possuir seu principal centro de operação nesse país (caso Soc. Remington Typewriter – 1931).

Uma terceira tendência verificável é a que, embora reconhecendo que a sociedade possui personalidade distinta da de seus membros e que lhe é atribuída uma nacionalidade, determinada pelo local de sua sede social, não considerava possível a transposição dessa concepção para o domínio do direito público a ponto de autorizar que tais sociedades usufruíssem todos os privilégios próprios da qualidade de francês (casos J. J. Rozendal – 1933 e État c. Soc. Oschwald -1937).

Consoante tendência doutrinária francesa, a regra geral é a sede social, podendo-se tomar em consideração, subsidiariamente, a nacionalidade dos asso­ciados ou dos dirigentes, além da composição do capital. O corolário seria a existência de dois tipos de sociedades francesas: uma teria tal nacionalidade em razão de sua sede social na França, o que não permitiria o gozo da totalidade das prerrogativas destinadas aos franceses; outra, admitida à plenitude de tais prer­rogativas, seria integralmente francesa, por haver preenchido também requisitos relacionados com a origem de seu capital e a nacionalidade de seus membros.

A jurisprudência italiana, no referente à capacidade jurídica da sociedade, não apresenta grande uniformidade:

Sociedade sem sede e objeto principal na Itália e que não se conformou com os ditames do artigo 230 do Código de Comércio precisava demonstrar possuir personalidade jurídica segundo a sua lei nacional para que pudesse estar em juízo na Itália (caso Canavale – 1924).

Sociedade estrangeira, constituída legalmente conforme a própria lei nacio­nal, possuía capacidade jurídica também na Itália. As formalidades dos artigos 230 e 232 do Código Comercial eram necessárias unicamente quando se desejava abrir na Itália uma sede secundária, uma representação ou o principal estabele­cimento (caso Soc. L. Crozat – 1924).

Cabia à lei da nacionalidade estrangeira dizer se a mesma possuía ou não personalidade jurídica. Podia a lei italiana sujeitá-la a certas formalidades (caso Nizard – 1933).

Quanto à outorga de nacionalidade, havia distinção de critérios em razão de sua teleologia. Se o intuito fosse saber a nacionalidade para a aplicação da legislação bélica excepcional, caberia a fixação à lei italiana. Assim, sociedade com sede principal na Alemanha seria tida como alemã (caso Ditta Gutermann – 1930).

Não sendo essa a hipótese, ficaria a indicação da nacionalidade a cargo da sede real ou da sede social, associada a elementos de controle.

Sede real da sociedade era o local onde se exercitava a finalidade única e exclusiva da mesma. Assim, a sede italiana imprimia tal caráter nacional à sociedade, embora tivesse ela sido constituída por estrangeiros no exterior, com sede também no exterior (caso Finanze dello Stato – 1920).

Sociedade irregular constituída na França devia ser tida como italiana e sujeita às leis italianas, em razão de todos os seus sócios e sua sede social serem italianos e ter havido opção também pela lei italiana (caso Minangoy – 1935).

No Reino Unido, passada a guerra, a teoria do controle cedeu passo, ao menos parcialmente, à tradicional lei da incorporação.

Dicey, Cheshire e Jenks consideravam como domicílio da corporação comer­cial o lugar de onde promana a sua administração. Para este último, uma corporação cujo domicílio não fosse no Reino Unido era uma corporação estrangei­ra. Para Williams e Chrussachi, se as cortes inglesas devessem resolver a naciona­lidade de uma corporação, indicariam a do país em que a mesma se houvesse incorporado.

Relevam dois casos sobre imposto de renda: para fins de tal imposto, a localidade das ações de uma companhia determinava-se não pelo lugar de sua incorporação ou registro, mas pelo lugar de residência e comércio, para se saber a residência nesse país, ao mesmo tempo que, para fins de imposto de renda, residia também no Reino Unido (caso Swedish Central – 1925).

Em 1934, publicou-se nos Estados Unidos, o Restatement of the Law of Conflict of Laws, sob os auspícios do American Law Institute, que, em suma, pretendia apresentar, de maneira ordenada, the general common law of the United States. Em seu capítulo sexto, dedicado às corporations, apresenta regras importantes sobre o assunto.

No Relatório Rundstein, sobre a nacionalidade das sociedades comerciais, apresentado ao Conselho da |Sociedade das Nações, em 1927, há regras a serem utilizadas em uma futura convenção: nacionalidade da sociedade comercial seria dada pela lei do Estado de sua constituição e pela fixação da sede efetiva da mesma em tal território. A proteção diplomática caberia aos Estados de que fossem nacionais as sociedades comerciais.

Consoante o Código Bustamante, a lei do Estado cuja nacionalidade esteja em discussão estabelecerá tanto a nacionalidade de origem da pessoa jurídica como sua eventual perda e reintegração. A determinação da nacionalidade da pessoa jurídica varia conforme a sua espécie: as corporações dependem da lei do Estado que as autorize; as sociedades não anônimas, do local de sua direção principal; e as anônimas, do local de reunião da assembleia de acionistas ou do lugar da sede de seu órgão diretivo máximo. Ficará a cargo da lei territorial a aquisição, perda e recuperação do domicílio.

O Primeiro Congresso Internacional de Direito Comparado, realizado na Haia, em 1932, concluiu que a nacionalidade de uma sociedade comercial é dada pelo lugar onde recebeu sua existência jurídica.

A Introdução ao Código Civil Brasileiro de 1916 expressamente reconheceu as pessoas jurídicas estrangeiras (artigo 19), colocou na dependência de aprovação governamental os estatutos ou compromissos das sociedades estrangeiras por ações, para que pudessem funcionar no Brasil (artigo 20, parágrafo único); e asseverou que a capacidade da pessoa jurídica é determinada pela lei nacional.

A posição de Bevilacqua, da qual não discrepa fundamentalmente a doutrina brasileira da época, é a seguinte: são brasileiras as sociedades de pessoas constituídas em território nacional; e as estabelecidas por brasileiros no exterior, mas com contratos arquivados e firmas inscritas no Brasil; além de gerente brasileiro. Quanto às sociedades de capitais, têm a qualidade de brasileiras as constituídas no Brasil e as organizadas no exterior, desde que recebam autorização de funcionamento, transfiram sua sede para o Brasil e tenham brasileiros em sua direção.

Quanto à capacidade postulatória das sociedades estrangeiras, a jurisprudência não era pacífica: de um lado reconhecia que as sociedades estrangeiras, mesmo que irregulares ou não estabelecidas no Brasil, podiam estar em juízo (apelação de Monte Domecq – agosto de 1919 e Apelação do Banque Belge – novembro de 1925); de outro, concedia a sociedade estrangeira não autorizada unicamente a possibilidade de defender-se (apelação cível 1.924, de dezembro de 1919).

Relativamente ao domicílio, as sociedades nacionais ou estrangeiras respondiam pelas obrigações contraídas pelas suas agências e sucursais nos respectivos foros (recurso extraordinário 1.201, de maio de 1920; José Mentor & Comp., de abril de 1922).

Passada a primeira conflagração mundial, nota-se, mormente na França, Inglaterra e na Itália, uma volta aos critérios tradicionais vigentes anteriormente à mesma, embora muitas vezes permeados pela teoria do controle. Releva notar, nesse contexto, a dedução de duas espécies de sociedades francesas. A sociedade francesa, em razão de possuir sua sede social na França, que, inobstante detenha a nacionalidade francesa, não se encontra apta a gozar de todos os privilégios e prerrogativas inerentes à qualidade de francês. Reveste-se da totalidade desses privilégios unicamente a sociedade plenamente francesa, que, além de ter sua sede social na França, preenche requisitos relativos à origem do capital e nacionalidade dos membros. Quanto ao Reino Unido, onde o liame importante é o domicílio, a doutrina diverge sobre a pedra de toque a ser utilizada para se definir sociedade estrangeira. Para uns, sociedade com domicílio fora do citado país é sociedade estrangeira. Para outros, se fosse o caso de se atribuir nacionalidade a uma corporação, o indicativo seria o país da incorporação.

Embora na Itália não tenha havido mudança de legislação, passou a ser utilizado mais abertamente o critério da nacionalidade, que possui indicativos diversos em função de sua teleologia. Para fins de aplicação da lei de guerra, cabe à lei italiana defini-la. As outras hipóteses dependem da sede real ou da sede social, associada a elementos de controle.

Tanto o Relatório Rundstein quanto o 1º Congresso de Direito Compara­do inclina-se pela lei do Estado da constituição como indicadora da nacionali­dade da mesma, embora o primeiro agregue a condição de fixação efetiva naquele território. É de se deixar fora da comparação o Código Bustamante, em virtude da variabilidade de critérios apontados em função da espécie de sociedade.

Características próprias à teoria do controle continuam visíveis no Brasil. As sociedades de pessoas, para serem brasileiras, precisam ser estabelecidas no território nacional ou, se constituídas no exterior, seus contratos devem ser arquivados e as firmas inscritas no Brasil, devendo o gerente ser brasileiro. Quanto às sociedades de capitais, são brasileiras as organizadas no Brasil, bem como as constituídas no exterior, desde que recebam autorização para funciona­mento, transfiram sua sede para o Brasil e tenham brasileiros em sua direção. Lembre-se que a fixação da nacionalidade da sociedade é fundamental, pois a lei determina que a capacidade da pessoa jurídica seja dada pela lei nacional[2].

Aos poucos e acompanhando as circunstâncias históricas, o direito das pessoas jurídicas vai-se corporificando, no interior do ordenamento jurídico dos países, com forte influência tanto do direito comparado, quanto das conclusões de sodalícios e encontros internacionais.

 


[1] Sobre o direito das pessoas jurídicas de meados do séc. XIX até 1914, ver: Rodas, João Grandino,  “Lei, doutrina e jurisprudência sobre pessoas jurídicas influenciam-se na prática” e “A guerra influi no direito das pessoas jurídicas”, Revista Eletrônica Conjur, respectivamente, 14 e 28 de julho de 2016.

[2]  Rodas, João Grandino, Sociedade Comercial e Estado, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 159/229       

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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