Segunda Leitura

Magistratura, código de ética e decisão no Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

7 de agosto de 2016, 10h44

Spacca
Saiu em órgão da  imprensa, nesta semana que passou, notícia cujo título anunciava: Assessor de Teori que assinou texto em apoio a Lula é exonerado, seguindo-se abaixo: “Não pode parecer que, num gabinete que trata de questões criminais importantes, possa haver qualquer dúvida a respeito da isenção”[1].

O que ocorreu foi que o assessor assinou um manifesto de apoio ao ex-presidente Lula da Silva, que peticionou à Organização das Nações Unidas arguindo a suspeição do juiz federal Sergio Moro.

A incomum ocorrência envolve considerações sobre ética e magistratura. Ensina Franco Montoro que “a palavra ‘ética’, derivada do grego ‘ethos’, significa costume. Leis éticas são regras que dirigem o comportamento humano. E estabelecem deveres e direitos de ordem moral”[2]. Para Reale, “toda norma ética expressa um juízo de valor, ao qual se liga uma sanção, isto é, uma forma de garantir-se a conduta que, em função daquele juízo, é declarada permitida, determinada ou proibida”[3].

A ética tem focos diversos, sendo possível falar-se em ética nas relações pessoais, familiares, de trabalho, políticas e, também, em ética ambiental. Para Nalini, “a ameaça ao ambiente é questão eminentemente ética. Depende de uma alteração de conduta”[4].

As profissões regulamentadas e parte das carreiras públicas adotam códigos de ética ou de conduta, por meio dos quais orientam seus membros em suas relações entre si e com terceiros.

Tais regras de conduta dão à sociedade a possibilidade de saber as fronteiras dos procedimentos que regulam as profissões que os adotam. Há quem prefira, por isso mesmo, que não existam, pois, sem previsão, as ações e omissões ficam em um limbo cômodo para quem não deseja ser questionado.

Assim, por exemplo, os médicos têm suas atividades reguladas pelo Novo Código de Conduta Médica, editado pelo Conselho Federal de Medicina[5]. Os advogados possuem seu Código de Ética e Disciplina, que, por ser de 1995, já se encontra defasado em alguns aspectos[6]. No âmbito do Ministério Público, há uma proposta da criação de um Código de Ética pelo Conselho Nacional, feita em 2012 e ainda não concretizada[7].

A magistratura brasileira possui um Código de Ética editado pelo Conselho Nacional de Justiça, aprovado em 6 de agosto de 2008[8]. Referida iniciativa veio dentro de um movimento internacional capitaneado pela Organização das Nações Unidas, a partir de 2001.

No livro eletrônico editado pelo Conselho da Justiça Federal em parceria com a ONU, Dipp, na apresentação, afirma que “os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore foram elaborados pelo Grupo de Integridade Judicial, constituído sob os auspícios das Nações Unidas. Sua elaboração teve início no ano de 2000, em Viena (Áustria), os princípios foram formulados em abril de 2001, em Bangalore (Índia) e oficialmente aprovados em novembro de 2002, em Haia (Holanda)”[9].

Mas para que serve um Código de Ética da magistratura?

Muito embora muitos discutam sua utilidade, na verdade um Código de Ética fixa as balizas da conduta que se espera dos magistrados de todas as instâncias, com base nos princípios internacionais (por exemplo, a imparcialidade do juiz, adotado em todos) e nos costumes locais.

É óbvio que tais práticas não podem ser as mesmas da magistratura da metade do século passado. Portanto, não se pode exigir do juiz de hoje a conduta do magistrado dos anos 1950, quando sair às ruas da comarca sem paletó e gravata era prática inadequada.

Regras de conduta muitas vezes tornam-se lei. Por exemplo, o juiz que é amigo ou inimigo das partes ou de seus advogados deve declarar a sua suspeição nos autos (Código de Processo Civil, artigo, 145, inciso I).

Outras constituem clara falta ética, às vezes com previsão explícita, como tratar uma das partes de forma discriminatória (Código de Ética, artigo 9º). Em outras, a existência depende do exame das circunstâncias do caso concreto, por exemplo, o dever de comportar-se adequadamente na vida privada (artigo 16 do C.E.).

Há casos sem regramento algum, como o recebimento de presentes. Por exemplo, nenhum problema haverá na doação, por um advogado que tenha ações na vara, de um bolo na festa de aniversário do magistrado, que se realizará no cartório. Bem inversa será a situação do empréstimo de um apartamento em Miami para as férias de verão, fato que, em tese, pode configurar infração ética.

As condutas que podem suscitar discussão sobre a incidência ou não de falta ética são incontáveis. Os fatos da vida superam a imaginação. Alguns são facilmente perceptíveis, estando até previstos em lei. Por exemplo, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional proíbe que o juiz revele sua posição sobre caso que irá julgar. Imagine-se, hipoteticamente, que um ministro do Supremo Tribunal Federal adotasse tal prática, perdendo a presumida isenção. Haveria uma infração ética, além do mau exemplo às instâncias inferiores. Ou então que um magistrado assumisse tantas funções (aulas, palestras, comissões etc.), mesmo que permitidas pela Constituição, que não mais lhe sobrasse tempo para julgar, deixando acumulados milhares de processos. Tal hipótese pode constituir infração ética. E há outros ainda mais nebulosos, a merecer discussão. Por exemplo, é ético fixar o valor de uma diária em quantia superior a um salário mínimo?

Na Europa, o tema tem recebido atenção. Para ficar em um só exemplo, cita-se a obra Ética Judicial: reflexiones desde jueces para la democracia, editada na Espanha, na qual se discutem os mais complexos temas, como a imparcialidade e a independência judicial[10]. No Brasil, o assunto é praticamente ignorado. O Código de Ética é desconhecido, raramente discutido e desprezado pela academia.

Volta-se agora ao início. Ao não permitir que na assessoria houvesse alguém que poderia gerar a suspeita de ações ou omissões, favorecendo terceiros em ações penais ou recursos em casos de grande repercussão (leia-se "lava jato"), o ministro Teori Zavaski deu uma lição de preocupação, respeito à opinião pública e à transparência.

O recado dado, em tema que desperta pouca atenção, foi claro: nos julgamentos, em qualquer instância ou ramo do Poder Judiciário, não pode existir a mínima suspeita de parcialidade do juiz.

Roma locuta.


[1] Jornal O Estado de S. Paulo, A6, 3/8/2016.
[2] André Franco Montoro. Justiça. Lei. Faculdade. Fato social. Ciência. 25. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 300.
[3] Miguel  Reale. Lições preliminares de Direito.10. ed.  São Paulo: Saraiva, 1983, p. 35.
[4] José Renato Nalini. Ética Ambiental. Campinas:  Millenium, 2001,  p. XXII.
[5] http://www.cremego.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=21000, acesso em 5/8/2016.
[6] http://www.oab.org.br/visualizador/19/codigo-de-etica-e-disciplina, acesso em 4/8/2016.
[7] http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Noticias/2012/Imagens/Proposta_de_resoluao_Cdigo_de_tica.pdf, acesso 6/8/2016.
[8] http://www.cnj.jus.br/publicacoes/codigo-de-etica-da-magistratura, acesso 6/8/2016.
[9] Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial / Escritório Contra Drogas e Crime; tradução de Marlon da Silva Malha, Ariane Emílio Kloth. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008. Disponível em http://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_corruption/Publicacoes/2008_Comentarios_aos_Principios_de_Bangalore.pdf, acesso em 5/8/2016.
[10] FUNDACIÓN Antonio Carretero, Madrid. Disponível em: http://www.juecesdemocracia.es/fundacion/publicaciones/af_ju_publicac_etica.pdf, acesso em 6/8/2016.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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