Embargos Culturais

Quando Shakespeare insinuou que o ódio poderia ser mais forte que o amor

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

7 de agosto de 2016, 8h00

Spacca
William Shakespeare (1564-1616) revelou-nos muito da condição humana, que de algum modo também inventou[1]. É até óbvio lembrar que Shakespeare construiu personagens que exprimiram dores, alegrias, desejos, frustrações, inquietações, sempre universais. A experiência existencial foi tratada com uma aguda visão, que transcendia no tempo e no espaço político. A descrição de instituições jurídicas, de seu tempo elisabetano, e dos tempos romanos heroicos explorados nas tragédias históricas, qualificam preciosas fontes para uma compreensão ilustrada da história do Direito[2].

O tema do ódio, destrutivo e irracional, foi também tratado no drama do acaso, vivido em Verona, por um casal destemido, Romeu e Julieta[3]. Cuida-se, quem sabe, do único caso de amor que nunca tenha se acabado, verdadeiramente eterno, justamente porque os heróis apaixonados morreram muito jovens: talvez Romeu tivesse 15 anos, e quiçá Julieta tivesse um pouco menos, quando o acaso de uma sequência de mal-entendidos resultou no suicídio desses jovens enamorados. O ódio entre duas famílias engendrou todo o drama.

Um coro anunciou a tragédia, que consumiria duas famílias, inimigas, marcadas por um ódio recíproco, cuja explicação se encontra na leitura intuitiva de algum manual renascentista de Ciência Política, a exemplo da certeza do diplomata florentino: melhor buscar ser temido do que procurar ser amado, na lição de Maquiavel, no mais assustador capítulo de O Príncipe[4]. Romeu, idealista e romântico, era o herdeiro dos Montequio. Julieta, corajosa e cheia de força, era a filha dos Capuleto, prometida para Paris, símbolo do educado príncipe da Renascença, inspirado por uma ética da audácia e por uma estética que evidenciava ideais greco-romanos do platonismo popularizado pelo cristianismo e pela escolástica.

Em torno do casal circulavam Benvolio, um desgraçado primo de Romeu, enfrentado pelo arrogante Teobaldo, primo de Julieta. Uma serva ama, debochada, cobria Julieta de mimos, inclusive facilitando as visitas de Romeu. Este, por acaso, conhecera Julieta numa festa dos Capuleto, um baile de máscaras, do qual participou, dissimulado de conviva. Ainda havia o príncipe de Verona, que a todo custo pretendia manter a ordem na cidade, ameaçada pelos recorrentes embates entre os Capuleto e os Montequio.

O padre Lourenço articulou unir o casal, arranjo que não se realizou, porque uma mensagem para Romeu não fora, também por acaso, entregue no tempo devido. O padre revelou o plano que tinha, simulou a morte e o enterro de Julieta, que apenas tomou uma poção que a induziu a longo sono. E porque Romeu não foi avisado a tempo, estava exilado, suicidou-se na câmara mortuária. Julieta acordou do sono combinado, viu o jovem esposo morto, suicidando-se em seguida. O príncipe de Verona perdoou o padre. Montequio e Capuleto se reconciliaram. As famílias ergueram estátuas de ouro para os respectivos filhos precocemente desaparecidos.

Romeu e Julieta é peça que explora também o tema do destino, que Shakespeare construiu a partir da tradição da dramaturgia grega. Há uma inegável indagação a propósito de nossa responsabilidade para com os pecados de nossos pais, de quem herdamos a vida, e suas circunstâncias também tenebrosas. O poder do amor, tão intensamente vivido pelo jovem casal, foi insuficiente para enfrentar o ódio que antagonizou duas famílias da Itália quinhentista.

O tema do ódio, e de seu discurso, é, infelizmente, universal e atemporal. O Direito Contemporâneo busca soluções para esse sentimento, do qual decorrem preconceitos fundados em lugares comuns, que opõem raças, religiões, opções pessoais, ideias e projetos de vida. No contexto do discurso triunfante do ódio, os pregadores da paz e os que convocam para que reflitamos honestamente sobre nossos temas são confundidos com inimigos imaginários e jogados numa vala comum. Nessa vala, apodrecem os Romeus e as Julietas vitimados pela incompreensão.


[1] Essa percepção de Shakespeare como inventor do humano é o tema do estudo de Harold BLOOM, Shakespeare – The Invention of the Human, New York: Riverhead Books, 1998.
[2] Nesse tema, em língua inglesa, por todos, BARTON, Dunbar Planket, Shakespeare and the Law, New Jersey: The Lawbook Exchange, 1999. Em português, há o maravilhoso estudo de NEVES, José Roberto de Castro, Medida por Medida: o Direito em Shakespeare, Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2016, talvez o mais bem acabado e elabora estudo sobre o Direito em Shakespeare publicado em língua portuguesa.
[3] SHAKESPEARE, William, The Complete Works, Romeo and Juliet, Oxford: The Shakespeare Head Press, 2007.
[4] O capítulo (XVII) é entitulado “De crudelitate et pietate: et na sit melius amari quan timeri, vel e contra”.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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