Ambiente Jurídico

Breve análise da nova lei de competência administrativa ambiental

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

6 de agosto de 2016, 11h26

Spacca
É sabido que a competência administrativa em matéria ambiental demorou mais de 23 anos para ser regulamentada. Nesse meio tempo os conflitos positivos e negativos de competência foram recorrentes: ou os entes lutavam para assumir uma atribuição, ou lutavam para não assumi-la. Haviam vários critérios normativos para a resolução de conflitos, a exemplo da Lei 6.938/81, da Resolução 237/97 do Conama e da titularidade do bem etc. Entretanto, como o parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal exigia uma lei complementar, é evidente que apenas essa modalidade de norma poderia resolver o problema.

No dia 8 de dezembro de 2011, finalmente foi editada a Lei Complementar 140, que regulamentou os incisos III, VI e VII do dispositivo constitucional citado, disciplinando a competência comum nessa seara. Essa lei foi inspirada em parte na Resolução 237/97 do Conama, e em parte foi fruto de inovações ou de adaptação de outros textos normativos. Em vista disso, o objetivo deste trabalho é analisar de forma objetiva as principais características da novel lei. Para ficar mais didático, analisar-se-á primeiro as características que remontam à citada resolução e, em seguida, as demais.

1. Manutenção dos critérios da Resolução 237/97 do Conama

a) Único nível de licenciamento ambiental
Na esteira do que determinava o artigo 7º da Resolução 237/97 do Conama, a LC 140/2011 consagrou a tramitação do licenciamento ambiental em um único nível de governo:

Art. 13. Os empreendimentos e atividades são licenciados ou autorizados, ambientalmente, por um único ente federativo, em conformidade com as atribuições estabelecidas nos termos desta Lei Complementar.

(…)

b) Participação não vinculante dos demais entes federativos no licenciamento ambiental
A exemplo do que determinavam o parágrafo 1º do artigo 4º, o parágrafo 1º do artigo 5º e o artigo 6º da Resolução 237/97 do Conama, a LC 140/2011 consagrou a participação não vinculante dos demais entes federativos no licenciamento ambiental:

Art. 13.

(…)

§ 1º. Os demais entes federativos interessados podem manifestar-se ao órgão responsável pela licença ou autorização, de maneira não vinculante, respeitados os prazos e procedimentos do licenciamento ambiental.

c) Reconhecimento da competência licenciatória dos municípios
Nos moldes do que estabelecia o artigo 6º da Resolução 237/97 do Conama, a LC 140/2011 consagrou a competência licenciatória dos municípios:

Art. 9.

(…)

XIV – observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos:

a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou

b) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);

Isso acabou de uma vez por todas com a tese de que o ente local não poderia licenciar em face da ausência de previsão legal de lei federal nesse sentido.

d) Regulamentação da possibilidade de delegação de atribuições e de ações administrativas
A LC 140/2011 procurou regulamentar a possibilidade de delegação de atribuições e de ações administrativas entre os entes federativos, tendo em vista o cumprimento dos objetivos da lei. É por isso que o inciso V do artigo 3º classifica essa delegação como um instrumento de cooperação institucional, que deve funcionar da seguinte forma:

Art. 5º. O ente federativo poderá delegar, mediante convênio, a execução de ações administrativas a ele atribuídas nesta Lei Complementar, desde que o ente destinatário da delegação disponha de órgão ambiental capacitado a executar as ações administrativas a serem delegadas e de conselho de meio ambiente.

Parágrafo único.  Considera-se órgão ambiental capacitado, para os efeitos do disposto no caput, aquele que possui técnicos próprios ou em consórcio, devidamente habilitados e em número compatível com a demanda das ações administrativas a serem delegadas.

O inciso IV do artigo 5º e o artigo 6º da Resolução 237/97 do Conama previam a possibilidade de celebração de convênio entre a União e os estados e entre os estados e os municípios, respectivamente. A redação da lei transcrita é mais ampla, a ponto de permitir qualquer transação neste sentido, seja com a União repassando atribuições aos municípios ou estes aos estados.

2. Inovações trazidas pela LC 140/2011

a) Adoção do critério da localização ao invés do critério da extensão geográfica dos impactos ambientais diretos como regra geral do licenciamento federal
Enquanto a Resolução 237/97 do Conama tomava como referência pra a definição do órgão licenciador os impactos ambientais diretos da atividade efetiva ou potencialmente poluidora, a LC 140/2011 adota o critério da localização da atividade. As alíneas a, b, c, d e e do inciso XIV do artigo 7º sempre se referem à promoção do licenciamento ambiental dos empreendimentos conforme sua localização ou desenvolvimento.

É que o conceito de impacto ambiental direto envolve certa subjetividade, tornando complexa a identificação do órgão licenciador, o que certamente pode gerar mais conflitos de competência. Por vezes, a delimitação do impacto ambiental direto da atividade só poderá ser feita ao longo do licenciamento ambiental, mormente quando da discussão e da aprovação dos estudos ambientais.

É por essa razão que a lei complementar optou pelo critério da localização da atividade a ser licenciada, não sendo mais relevante a extensão geográfica dos seus impactos ambientais diretos. Como o lugar de localização é onde se situa a atividade, conceito que de certa forma é autoexplicativa, cabe explicar que o lugar de desenvolvimento é aquele que é essencial à implementação ou operação da mesma, embora nele ela não se situe — o exemplo mais corriqueiro seria o de um canteiro de uma obra de infraestrutura.

Vale dizer que nem os incisos XIV e XV do artigo 8º nem inciso XIV do artigo 9º, que dispõem respectivamente sobre a competência licenciatória dos estados e dos municípios, fazem menção ao critério da localização. Contudo, o fato de o inciso XIV do artigo 7º fazê-lo no que diz respeito à competência licenciatória da União gera efeitos imediatos sobre a competência dos estados, posto que a adoção do critério da localização aumenta as atribuições estaduais e restringe as federais.

b) Possibilidade de avocação de competências por parte da União
É possível verificar o desrespeito ao federalismo cooperativo instituído pelo artigo 23 e pelo caput do artigo 225 da Constituição da República no seguinte dispositivo da LC 140/2011, que permite na prática a possibilidade de avocação de competências licenciatórias por parte da União em prejuízo dos estados e dos municípios:

Art. 7º. São ações administrativas da União:

(…)

XIV – promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades:

(…)

h) Atividades que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do CONAMA, e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento.

(…)

Parágrafo único.  O licenciamento dos empreendimentos cuja localização compreenda concomitantemente áreas das faixas terrestre e marítima da zona costeira será de atribuição da União exclusivamente nos casos previstos em tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento.

Na prática, a despeito da referência aos critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento, isso significa que o Poder Executivo federal poderá avocar atividades específicas para fazer o licenciamento (o Decreto 8.437/2015 fez isso com atividades da área de infraestrutura). É nítida a inconstitucionalidade do dispositivo, que afronta a autonomia administrativa dos estados, do Distrito Federal e dos municípios prevista no artigo 18 e no artigo 60 da Carta Magna, já que na prática isso acaba criando uma hierarquia e estabelecendo uma superioridade entre a União e os demais entes federativos.

c) Submissão da competência sancionatória à competência licenciatória
É sabido que o parágrafo 3º do artigo 17 da LC 140 abre margem para que qualquer ente federativo possa fiscalizar e aplicar sanções administrativas. Contudo, o mesmo dispositivo determina que deverá prevalecer a sanção administrativa aplicada pelo ente federativo responsável pelo licenciamento ambiental. Dessa forma, a competência sancionatória está submetida à competência licenciatória, ainda que em um primeiro momento possa ocorrer uma desvinculação.

d) Tríplice divisão da competência administrativa em matéria ambiental
A LC 140/2011 estabeleceu a tríplice divisão da competência administrativa em matéria ambiental, visto que a responsabilidade para fiscalizar, para sancionar e para licenciar passaram a seguir regimes jurídicos distintos. À primeira vista o que parece ter ocorrido é uma vinculação da fiscalização ao licenciamento ambiental, o que por certo incluiria também a imposição de sanções (embora isso não tenha ficado expresso), haja visto o que determinam o inciso XIII do artigo 7º, o inciso XIII do artigo 8º e o inciso XIII do artigo 9º da citada lei.

Isso significa que em tese os entes federativos só poderiam fiscalizar e aplicar sanções nas atividades de sua competência licenciatória, nos moldes do que determinam o inciso XIV do artigo 7º, o inciso XIV do artigo 8º, o inciso XIV do artigo 9º e o caput do artigo 17. Entretanto, a própria lei complementar no parágrafo 3º do artigo 17 aponta um caminho diferente ao determinar que todos podem fiscalizar e impor sanções administrativas, embora a sanção administrativa ou o entendimento do ente licenciador é que deva prevalecer. Com isso, a competência fiscalizatória é comum e irrestrita, a sancionatória é comum mas sujeita à definição do ente responsável pelo licenciamento ao passo que a competência licenciatória é privativa.

e) Vinculação da competência para conceder autorizações à competência licenciatória
Em compasso com o reconhecimento do único nível de competência para o licenciamento ambiental, a LC 140/2011 estabeleceu que cabe ao órgão responsável pela concessão da licença ambiental analisar o pedido da autorização ambiental. A alteração foi inteligente ao vincular a autorização para supressão de vegetação ao órgão competente pelo licenciamento ambiental, no intuito de impedir que seja suprimida a vegetação de um empreendimento cujo licenciamento ambiental não for viável.

f) Incumbência do estado para autorizações florestais nos imóveis rurais
De acordo com a LC 140/2011, as autorizações para supressão e gestão florestal são de competência do órgão estadual de meio ambiente:

Art. 8º. São ações administrativas dos Estados:

(…)

XVI – aprovar o manejo e a supressão de vegetação, de florestas e formações sucessoras em:

a) florestas públicas estaduais ou unidades de conservação do Estado, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs);

b) imóveis rurais, observadas as atribuições previstas no inciso XV do art. 7º; e

c) atividades ou empreendimentos licenciados ou autorizados, ambientalmente, pelo Estado;

É claro que o comando transcrito diz respeito apenas às situações em que não há licenciamento ambiental vinculado, o que é uma situação comum na zona rural. Caso contrário, o órgão competente será sempre o ente licenciador em função do que reza o parágrafo 2º do artigo 13 da lei citada.

g) Submissão da competência licenciatória municipal aos conselhos estaduais de Meio Ambiente
A definição da competência licenciatória municipal foi em regra delegada aos conselhos estaduais de Meio Ambiente:

Art. 9º. São ações administrativas dos Municípios:

XIV – observadas as atribuições dos demais entes federativos previstas nesta Lei Complementar, promover o licenciamento ambiental das atividades ou empreendimentos:

a) que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade;

Com efeito, inexistem garantias de que o Poder Executivo estadual não caia na tentação de estadualizar ou de não municipalizar atribuições de interesse local com o intuito de facilitar ou de dificultar o controle ambiental ou de simplesmente concentrar poder. Importa salientar que os órgãos estaduais de meio ambiente quase sempre têm a maioria no seu respectivo conselho.

A citada lei complementar desrespeitou o pacto federativo e resvalou em inconstitucionalidade ao colocar em xeque a autonomia administrativa dos municípios. Ressalte-se também a falta de legitimidade política, porque não caberá ao parlamento estadual liberar, e sim a um órgão integrante do Poder Executivo estadual.

h) Adoção dos instrumentos de cooperação
A LC 140/2011, no intuito de colaborar para a concretização do federalismo cooperativo em matéria ambiental, dispôs sobre os instrumentos de cooperação institucional. A ideia é que os entes federativos possam discutir e celebrar compromissos diretamente, notadamente para levar em consideração as peculiaridades estaduais e locais:

Art. 4º. Os entes federativos podem valer-se, entre outros, dos seguintes instrumentos de cooperação institucional:

I – consórcios públicos, nos termos da legislação em vigor;

II – convênios, acordos de cooperação técnica e outros instrumentos similares com órgãos e entidades do Poder Público, respeitado o art. 241 da Constituição Federal;

III – Comissão Tripartite Nacional, Comissões Tripartites Estaduais e Comissão Bipartite do Distrito Federal;

IV – fundos públicos e privados e outros instrumentos econômicos;

V – delegação de atribuições de um ente federativo a outro, respeitados os requisitos previstos nesta Lei Complementar;

VI – delegação da execução de ações administrativas de um ente federativo a outro, respeitados os requisitos previstos nesta Lei Complementar.

i) Regulamentação da atuação subsidiária
O inciso III do artigo 2º da LC 140/2011 classifica a atuação subsidiária como a “ação do ente da Federação que visa a auxiliar no desempenho das atribuições decorrentes das competências comuns, quando solicitado pelo ente federativo originariamente detentor das atribuições definidas nesta Lei Complementar”. A matéria foi disciplinada da seguinte maneira:

Art. 16.  A ação administrativa subsidiária dos entes federativos dar-se-á por meio de apoio técnico, científico, administrativo ou financeiro, sem prejuízo de outras formas de cooperação.

Parágrafo único.  A ação subsidiária deve ser solicitada pelo ente originariamente detentor da atribuição nos termos desta Lei Complementar.

j) Regulamentação da atuação supletiva
Pela leitura do artigo 10 da Lei 6.938/81, somente o Ibama era distinguido com esse tipo de competência. O inciso II do artigo 2º da LC 140 conceitua a atuação supletiva como a “ação do ente da Federação que se substitui ao ente federativo originariamente detentor das atribuições, nas hipóteses definidas nesta Lei Complementar”. A matéria foi disciplinada da seguinte maneira:

Art. 15.  Os entes federativos devem atuar em caráter supletivo nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, nas seguintes hipóteses:

I – inexistindo órgão ambiental capacitado ou conselho de meio ambiente no Estado ou no Distrito Federal, a União deve desempenhar as ações administrativas estaduais ou distritais até a sua criação;

II – inexistindo órgão ambiental capacitado ou conselho de meio ambiente no Município, o Estado deve desempenhar as ações administrativas municipais até a sua criação; e

III – inexistindo órgão ambiental capacitado ou conselho de meio ambiente no Estado e no Município, a União deve desempenhar as ações administrativas até a sua criação em um daqueles entes federativos.

l) Atribuição de responsabilidade à Comissão Tripartite Nacional
A LC 140/2011 atribuiu à CTN a condição de instrumento de cooperação institucional:

Art. 4º.  Os entes federativos podem valer-se, entre outros, dos seguintes instrumentos de cooperação institucional:

(…)

III – Comissão Tripartite Nacional, Comissões Tripartites Estaduais e Comissão Bipartite do Distrito Federal;

A lei em questão atribuiu à CTN o poder de propor tipologias para deslocar ao âmbito federal casos de licenciamento ambiental de competência estadual:

Art. 7º. São ações administrativas da União:

(…)

XIV – promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades:

(…)

h) Atividades que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do CONAMA, e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento.

(…)

Parágrafo único. O licenciamento dos empreendimentos cuja localização compreenda concomitantemente áreas das faixas terrestre e marítima da zona costeira será de atribuição da União exclusivamente nos casos previstos em tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento.

Daí se atribuir à institucionalização da CTN a tentativa de enfraquecer o Conama, que teria mais legitimidade para desempenhar esse papel. Por outro lado, cabe dizer que no âmbito estadual essas comissões ficaram sem um papel de importância.

Autores

  • Brave

    é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor do livro “Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos” (5ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015).

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